quinta-feira, agosto 20, 2009



  • Primeira Aula
  • 18 de agosto de 2009


Neste semestre começamos o quarto curso vinculado ao Grupo de Estudo de Arte, Filosofia e Psicanálise. A proposta desse grupo, desde o início do projeto, é abrir um diálogo entre este saber – a filosofia –, e os dois processos de criação, ou melhor, de invenção (pois, inventar é dar uma nova forma a algo que já existe), que são o trabalho do artista e o trabalho do psicanalista.
Relaciono o trabalho do psicanalista ao trabalho do artista, por acreditar que o que está em jogo no divã, se aproxima muito mais do procedimento de invenção de um saber, do que de um procedimento epistemológico. Podemos dizer: Assim como Marcel Duchamp, inventou um vaso sanitário como objeto de arte; em uma análise, inventamos um nome para objeto a. Essa nomeação vai gerar uma série de efeitos sobre a forma do gozo e no modo de operar o desejo de um sujeito.


Sobre o curso desse semestre, eu gostaria de iniciar apontando três intenções: Em primeiro lugar, esse curso dá continuidade ao do ano passado - Sujeito, Desejo e Discurso. No curso de 2008, nos propomos a falar do sujeito, do desejo e do discurso a partir do texto de Lacan, Subversão do Sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, de 1960. Quem fez o curso sabe que trabalhamos bastante a noção de sujeito, e passamos muito rápido pela noção do desejo e do discurso. Então, nesse semestre, resolvemos voltar ao tema do desejo, sob outra perspectiva.

Em segundo lugar, demos um nome para esse curso na forma de questão: "O que causa o teu desejo?". Já está posto nessa nomeação, um modo de apreender o desejo na psicanálise lacaniana. O desejo, diz Lacan, é sempre uma questão, uma incógnita. Uma primeira leitura, dessa proposição lacaniana sobre o desejo, pode ser compreendida de uma maneira bastante simples. Por exemplo, se vamos para um texto, para um curso, para um projeto de mestrado ou doutorado sem uma questão, não vamos muito longe. Lacan diz assim: Se vamos para um texto com amor, ficamos embevecidos, extasiados, arrebatados, colados a ele; não aprendemos nada. Se vamos com desejo, nós o interrogamos, o esburacamos, percebemos seus furos, as pontas que não se amaram, provocamos e somos provocados por ele. Aí sim, começamos a aprender algo.

Essa é uma direção para pensar a importância do desejo do analista. Se o analista vai escutar o texto, a narrativa do analisando com amor; ele corre o risco de ir pela via da compaixão, da ajuda, do terapêutico. O que, no mínimo, é um risco ético. Já, se a escuta é sustentada pelo desejo ela vai provocar trabalho.
E, finalmente, a terceira intenção é demonstrar, através do significante causa, o que caracteriza e diferencia de outros saberes, a noção de desejo em Lacan. Essa construção do objeto como causa de desejo Lacan desenvolve no capítulo VIII, intitulado “A causa do desejo”, do Seminário X – a angústia, de 1962-63. Antes desse Seminário, a leitura lacaniana do desejo seguiu a trilha do saber estabelecido. No primeiro momento do seu ensino, Lacan se apropria da noção de desejo de Freud. Num segundo momento, sofre a influência da teoria do desejo de Hegel, através da leitura de Alexandre Kojève. No terceiro momento, o Seminário da ética, foi buscar na teoria de Kant as ferramentas que permitiram a construção da ética do desejo. E finalmente, no Seminário X, quando se propôs a pensar a angustia, já tinha construído a noção de objeto a, que lhe permitiu dar uma reviravolta, um novo passo de sentido na relação entre desejo e objeto.

Conforme o programa, nesse curso nossa proposta é percorrer esses vários momentos da noção de desejo no ensino de Lacan. Só não iremos nos debruçar sobre o Seminário VII – a ética. Não situei esse Seminário em nosso programa, porque, neste Seminário, Lacan associa a noção de desejo com as questões da ética; e essa articulação merece muito mais tempo de estudo. Portanto, falaremos dele quem sabe, no próximo ano.

Podemos dizer que para a clínica psicanalítica o desejo é um conceito fundamental. A proposta de trabalhar o gráfico do desejo, no ano passado, foi mostrar que naquele gráfico Lacan apresenta o percurso de uma análise. Podemos dizer, que se a clínica freudiana teve como foco o complexo de Édipo, a clínica lacaniana articula-se aos circuitos do desejo.

Mas, tratando-se do desejo, os caminhos nunca são curtos nem fáceis. Como posição subjetiva, é muito mais fácil o caminho da queixa: a queixa é coletiva. Como diz Jorge Forbes, os sindicatos estão aí para provar como é fácil nos constituirmos em grupo pela queixa. Outro caminho, que parece bem mais fácil do que o do desejo, é o da demanda. Veremos, no transcorrer do curso, que o neurótico toma com muita facilidade o desejo por demanda. Nós nos estafamos para responder as demandas dos outros, e nos estafamos também em criar demandas para os outros. Nossa ilusão primeira é que ao responder as demandas, estamos respondendo ao desejo. Pobre ilusão.

Por que damos tantas voltas em torno do desejo? Porque assumir a posição de sujeito desejante é, em primeiro lugar, parar de se queixar e assumir a responsabilidade pelas nossas escolhas. A ética da psicanálise proposta por Lacan no Seminário VII é: aja em conformidade com o teu desejo. Mas não se enganem, essa posição ética não tem nada de egocentrismo, individualismo ou de hedonismo. Desejo, para psicanálise, tem pouco haver com prazer.

Se fosse provocá-los com uma metáfora, eu diria que o desejo tem a cara do diabo. É Menfistófoles para Fausto de Goethe: o diabo cínico, de acordo com Peter Sloterdijk. É o diabo do conto O diabo enamorado, de Cazotte, de quem Lacan destaca a questão colocada no ápice de seu gráfico: “Que queres?”. São as sereias para Ulisses. É preciso tapar os ouvidos e se amarrar no mastro, para não ser atraído por seu canto.

Essa é uma boa via para começar a compreender as dificuldades de agir em conformidade com o seu desejo. Homero nos presenteia com duas grandes figuras que não cedem de seu desejo: Ulisses e Aquiles.

Se olharmos para Ulisses como uma figura civilizatória, podemos inferir que o que causa o desejo de Ulisses é a civilidade. Para sorte de Penélope, que acaba sendo tomada como representação desse objeto causa. Então, podemos dizer que o objeto do desejo de Ulisses é Penélope, porque nela se inscreve a causa de seu desejo.

Sabemos que Penélope ocupa com maestria esse lugar. Ela é a esposa fiel que espera, pacientemente, por longos anos, o regresso de seu marido. Enquanto espera se ocupa com o bordado da mortalha do seu pai, para ludibriar as expectativas de seus pretendentes. Durante o dia borda, a noite desmancha o bordado, para no dia seguinte novamente iniciá-lo. Conforme alguns comentadores da Odisséia, durante esses longos anos seu pai permanece insepulto.

Ulisses é o herói da civilidade. Por isso mesmo, um grande orador. Conhece toda a sorte de ardis e planos astutos. Representa a centralização do poder – defensor ferrenho de Agamenom na Ilíada -, a disciplina, a ordem e a ação conjunta.

Durante todo o longo período da Odisséia foi tentado pelo amor de mulheres poderosas e belas. Verdadeiras deusas tentaram conquistá-lo. Circe e Calipso chegaram a levá-lo para a cama. Calipso lhe ofereceu a imortalidade, uma ilha paradisíaca e o seu amor eterno, dádiva irrecusável para qualquer ser humano. Mas nenhum desses dons foi capaz de tirar Ulisses de sua posição desejante. Os circuitos do seu desejo inscrevem uma outra cartografia: Voltar para casa, reassumir o trono de Ítaca e o lugar de esposo de Penélope, era, para nosso herói, não se deixar aprisionar por imagens narcísicas que quando absolutizadas elidem a posição desejante.

Por outro via, se constrói o desejo de Aquiles. O objeto causa de desejo de Aquiles é o heroísmo do guerreiro. Por essa via, podemos entender que quando teve que escolher entre uma vida longa e obscura e uma vida breve e heróica, não cedeu um milímetro sequer de agir conforme seu desejo.

Pobre Briseida. Aquiles a amou? Penso que sim. Sua ira, quando Agamenon roubou-lhe Briseida foi sincera. Sofreu, entrou num processo de luto, revoltou-se, desistiu de ir para o campo de batalha. Por certo tempo, chegamos acreditar que o amor tinha suplantando o desejo. Mas, a morte de Pátroclo reconfigura sua posição subjetiva. Tendo que escolher entre o amor de Briseida e a vingança pela morte do jovem amigo, Aquiles responde a partir de seu desejo: opta pela vingança. Volta para batalha, e morre como herói. Escreve-se na história – da Ilíada – como o guerreiro dos guerreiros.

Para concluir o texto e, no mesmo ato, dar início a esse Curso. Podemos supor, a partir da construção proposta por Lacan no Seminário X - que eleva o objeto a, enquanto causa de desejo, a categoria de fetiche -; que, para Ulisses, Penélope adquiriu o estatuto de objeto fetichista. Enquanto para Aquiles, o brilho fetichista vinha-lhe da espada.
Maria Holthausen

Um comentário:

Clóvis Domingos disse...

Maria, muito elucidativo e provocativo o teu texto. Quero saber mais sobre a ética do Desejo. Um abraço, Clóvis. ( N3PS ).

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