segunda-feira, junho 25, 2012

O Brasil debate mal

O Brasil é ruim de debate. Vemos isso na Política, na Filosofia e na universidade em geral. Por muito tempo, vi um hábito nada elogiável - falar bem pela frente, mal pelas costas. Isso está diminuindo. Mas não porque tenhamos aprendido a discutir, frente a frente, ideias. Continuamos com sérias dificuldades nesse tocante. Basta ver que, de vez em quando, alguém lamenta a falta que fariam célebres polemistas. Não faz muito tempo, o educadíssimo Fernando Henrique Cardoso lastimou a falta de Carlos Lacerda. Mas, se foi o tribuno da antiga UDN um dos maiores defensores do fim do regime democrático, da sua substituição por um regime militar? Lacerda passou 15 anos clamando pelo golpe de Estado e apenas se voltou contra a ditadura quando esta, em vez de levá-lo à presidência, reservou-a aos próprios generais. Outra falta que ora e vez vejo lamentarem é a do polemista Paulo Francis. Mas, um como político e outro como jornalista, ambos se especializaram em ofender seus adversários, em convertê-los em inimigos. Esse procedimento consistia na pura negação da democracia, no caso de Lacerda, e do intelecto, no caso de Francis. Eu e meus amigos, jovens, líamos Francis, no Pasquim. Mas nos incomodava sua ligeireza, sua superficialidade no trato intelectual. Os dois compensaram, na agressividade, o que lhes faltou em equilíbrio. É pena, porque poderiam, homens inteligentes, ter cumprido um papel melhor em nossa cultura. Há passagens, no Afeto que se encerra, de Francis, belíssimas.

Por que temos tão pouco empenho na discussão respeitosa? Talvez porque nos falte a convicção - insisto, democrática - de que não somos donos da verdade. Isso vem junto com algo que surge no fim da Idade Média, a cortesia. Ela nada tem a ver com a cordialidade, que Sérgio Buarque de Holanda reivindicou para nossa cultura. Cordial é quem age segundo o cor, isto é, o coração. Cortês é quem segue a corte, lá onde vive o rei. As boas maneiras surgem em torno dos poderosos, para mostrar- lhes respeito. Porém, surgem maneiras urbanas (de urbs, cidade), que expressam respeito, mas sem a hierarquia que subordina todos ao rei. Na cidade, somos todos cidadãos. Ora, haverá forma mais digna, mais bela, para manifestar isso, do que dizer que todos nós somos falíveis? Que todos falhamos, erramos? Minha especialidade mais antiga é a Política. Conheço gente que brigou por Política - tanto ela instiga as pessoas a viverem no mundo da paixão, não no da razão. Mas pode alguém dizer que sempre acertou? E quantos não brigaram, até com amigos, por algo que é do mundo da fantasia?
Proponho assim dois princípios éticos. Primeiro: somos iguais, por isso devemos nos tratar educadamente. Um debate não deve ofender. Deve se inspirar na preocupação de acertar - e essa preocupação deve ser coletiva, não individual. Se eu acertar, será junto com quem discordou de mim. Segundo: a melhor base para dizer que somos iguais não são as declarações da ONU, mas o fato simples de que erramos. Erramos muito, até. Mas isso não deve nos impedir de continuar na grande, magnífica, humana experiência que é pensar. É pelo ensaio e erro, pela tentativa de encontrar um caminho - mas moderada pela modéstia que nos faz reconhecer quanta bobagem já foi dita, quanta dizemos e quanta ainda diremos - que é possível avançar. Talvez a maior conquista da democracia tenha sido o direito ao erro. Nas autocracias, supõe-se que quem manda sempre acerta. Sabemos que não é nada disso... Numa democracia, podemos errar. O importante é que não tenhamos poder para impor nossos erros aos outros; e que tenhamos uma diversidade de opiniões tão ampla que seja viável, sempre, nos corrigirmos. É por isso que o melhor debate é o mais educado.

Renato Jenani Ribeiro
Fonte: Portal Ciência & Vida


segunda-feira, junho 18, 2012

Sobre o discurso biográfico


Um amigo poeta costuma dizer que as únicas grandes biografias que ele conhece são as de Ulisses por Homero, de Sócrates por Platão, de Dom Quixote por Cervantes, de Ahab por Melville, e assim por diante. Os verdadeiros biógrafos são os escritores. Grifo a palavra porque ela está empregada em sentido rigoroso: afinal, o que significa escrever a vida?

Blanchot argumenta que Kafka sentiu pela primeira vez “a fecundidade da literatura (…) desde o dia em que soube que a literatura era esta passagem do Ich ao Er, do Eu ao Ele”. “Não basta escrever: Eu sou infeliz”, prossegue. “Enquanto não escrever nada além disso, estou perto demais de mim, perto demais de minha infelicidade para que esta infelicidade se torne realmente a minha no modo da linguagem: ainda não estou realmente infeliz. Somente a partir do momento em que chego a essa substituição estranha: Ele é infeliz, é que a linguagem começa a se constituir em linguagem infeliz para mim, a esboçar e a projetar lentamente o modo de infelicidade tal como se realiza nela”.

Peço licença ao leitor para continuar citando algumas passagens, pois são as pistas (senão as provas) de que necessito para conduzir meu argumento. Assim, Lukács observa o seguinte. “Paramos em frente a um retrato de Velázquez e dizemos: ‘Que maravilhosa semelhança’, e sentimos que dissemos efetivamente alguma coisa sobre a pintura. Semelhança? Com quem? Com ninguém, é claro. Não fazemos ideia de quem ela representa, talvez nunca venhamos a saber; e se soubéssemos, pouco ligaríamos. E no entanto sentimos que há uma semelhança”.

No mesmo sentido, Deleuze e Guattari denunciam o “equívoco com o vivido” que ocorre em certos gêneros de escrita: “Muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepções e suas afecções, suas lembranças ou seus arquivos, suas viagens e seus fantasmas, seus filhos e seus pais, os personagens interessantes que pôde encontrar e, sobretudo, o personagem interessante que é forçosamente ele mesmo (quem não o é?), enfim suas opiniões para soldar o todo”. Mas obras de arte não são feitas de percepções e afecções, e sim de perceptos e afectos: “O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações”. Isto é, para a arte, trata-se de transportar, para um meio qualquer (a linguagem verbal na literatura, a tinta na pintura a óleo etc.), o imediato, de modo que o imediato viva, no meio, enquanto o meio se conservar. Trata-se de transportar a chama do imediato para o frio do meio, onde ela sobreviverá a si mesma. Numa palavra, trata-se de congelar o fogo – a arte já inventara a crônica muito antes de os homens sonharem congelar os próprios corpos para sobreviverem a si mesmos.

Em suma, todas as citações acima – às quais se poderia juntar muitas outras – convergem no sentido de uma passagem do pessoal ao impessoal, de um apagamento das origens, da sobrevivência de um ser relativamente a quem o criou. Kafka só começa a escrever quando a sua dor não é mais sua, quando ela passa à linguagem, sobrevivendo a suas afecções e transformando-se em afectos (para usar os termos de Deleuze e Guattari). O retrato de Velázquez é uma cópia perfeita, não de alguém particular, mas de ninguém, isto é, da vida impessoal e comum a todas as vidas particulares. Como disse um poeta, trata-se de capturar não o pássaro, mas seu voo.

Ponto cego

Decorre daí a fraqueza constitutiva do discurso biográfico. Para o gênero biográfico, em sua quase totalidade, escrever a vida consiste em escrever a vida de alguém, e não a vida de ninguém. Ora, a vida de alguém nunca interessa; é a vida de ninguém que interessa. O biógrafo é aquele sujeito que, preocupado em relatar, minuciosamente, a vida de alguém, deixa escapar a vida de ninguém. Quase sempre, o discurso biográfico é um modo de perder a vida.

Não digo que a biografia é um gênero totalmente inútil ou desinteressante. Mas é, no meu entender, na melhor das hipóteses, um gênero ancilar. Serve como matéria-prima para outros modos de escrita capazes, esses sim, de escrever a vida. Tome-se, como exemplo, alguns excelentes biógrafos brasileiros. Ruy Castro é um pesquisador notoriamente obsessivo, cujo trabalho produziu obras de referência sobre grandes artistas, como Nelson Rodrigues e Carmem Miranda. João Máximo e Carlos Didier realizaram uma pesquisa rigorosa e abrangente sobre a vida de Noel Rosa, descrevendo desde as notas de seu histórico escolar até as muitas composições que ele criou mas não assinou. São contribuições – mas limitadas pelas limitações do próprio gênero. Pois a escrita da vida de um artista jamais nos revela a razão pela qual esse artista é grande, seja ele quem for. Afinal, que alcance tem saber que Noel Rosa era um adolescente irreverente e zombeteiro, ou que Carmem Miranda findou seus dias completamente viciada em remédios para dormir e acordar? Quaisquer características pessoais, por si sós, não revelam aquilo que torna um grande artista o que ele é.

Uma vida agitada, repleta de lances aventureiros, não garante a existência de um artista (do contrário, todo traficante de drogas ou todo surfista de ondas gigantes seria um grande escritor). Mas não. Um grande artista é um grande artista por ser capaz de transformar sua vida pessoal, suas percepções pessoais, em arte, ou seja, em um ser de vida independente, que conseguiu capturar a vida e a oferece a quem quer que o visite (e tenha por sua vez a grandeza de abri-lo).

Ora, essa transformação se dá num ponto cego, necessariamente irrecuperável, incompreensível, insondável mesmo. Se fosse possível penetrar nos domínios dessa passagem, descobrir-se-ia uma fórmula científica da arte, e não haveria mais grandes artistas. No discurso biográfico permanece aberto um fosso entre a vida de alguém e a vida de ninguém, entre a vida do sujeito civil que se relata e a vida impessoal que ele foi capaz de capturar e oferecer à humanidade como espelho de si mesma. Esse fosso se converte em gênero propriamente ridículo nas obras que se propõem relatar, como uma confissão privada, a um incauto leitor, em que circunstâncias se deu a gênese de tais e tais canções de um astro da música, ou de tais e tais livros de um escritor consagrado. Oferecem-se, então, explicações banais no lugar do que é uma transcendência por definição incognoscível. Os discursos que ignoram deliberadamente a dimensão biográfica são sempre os que mais se aproximam de revelar o que um artista pôde fazer com a vida: compreende-se muito melhor um grande autor lendo seus melhores críticos do que lendo seus biógrafos.

Falsas biografias
Posso, então, retomar a observação de meu amigo, com que iniciei esse percurso, e, mantendo-me fiel a seu espírito, afirmar que as únicas verdadeiras biografias que conheço são as falsas biografias, aquelas que contêm, explícita ou implicitamente, uma crítica ao discurso biográfico (crítica que costuma faltar nos biógrafos mais rigorosos sob a perspectiva factual: ocorre que, do fato à sua interpretação, vai um salto qualitativo, e é esse salto, objeto necessariamente de uma reflexão teórica, que deveria ser pensado por todos os biógrafos).

A biografia de Genet por Sartre, por exemplo, é verdadeiramente uma biografia. Isso porque ela é dotada de força conceitual, e o conceito se caracteriza, tal como os perceptos e afectos, por um movimento de transcendência: trata-se de haurir, de uma multiplicidade concreta, a abstração que a define e elucida. O conceito também é uma passagem do imediato concreto ao meio que o eterniza. Mas para tanto, para haver uma biografia como essa, é preciso antes haver um filósofo como Sartre.

Barthes, ao ser convidado a escrever um livro autobiográfico, Roland Barthes por Roland Barthes, aceitou com a condição de escrevê-lo sob a perspectiva de uma cláusula ficcional: “Tudo isso deve ser considerado como dito por um personagem de romance”. E referiu-se a si mesmo em terceira pessoa. “Si mesmo”, no caso, são no livro quase sempre os seus escritos, e não aspectos de sua vida pessoal (que ele apresenta apenas para questionar a validade dessa apresentação). Com isso, Barthes esquivou-se da ilusão de proferir o que seria uma espécie de última palavra, de verdade final sobre si mesmo. Sua autobiografia nada mais é que um novo elo na cadeia de seus escritos. Já o discurso biográfico, a meu ver, é sustentado por uma esperança, ilusória, de verdade, de decifração de um enigma: agora compreenderei por que fulano é um grande artista, a sua vida o revelará. Mas não há chave, apenas o olhar interdito de Orfeu para Eurídice – e toda obra de arte é o eco ou o reflexo do que esse olhar pôde ver.

Devo ainda indicar, para concluir, que a obsessão pela vida privada que caracteriza boa parte do mundo contemporâneo serve ao menos para confirmar a tese central do que foi dito até aqui: a crítica fundamental que deve ser feita ao programa Big Brother não é ao fato de ele ser invasivo (nele dá-se antes evasão de privacidade), nem sexualmente apelativo (e daí?), mas de ele, inversamente ao que acredita, não ser capaz de mostrar a vida de ninguém.

 Francisco Bosco
FONTE: Revista CULT

quarta-feira, junho 13, 2012

CONVITE


NOITE DE AUTÓGRAFOS E PRÉ-LANÇAMENTO

Dia: 20 de Junho de 2012

Horas: 20H00

LUGAR: Nomuro Lounge Temakeria
Arte Shop Center
Av. Afonso Delambert, 103
Lagoa da Conceição - Florianópolis


Entrevista com o filósofo francês Luc Ferry, por Andrei Netto.



ESP: O senhor refletia sobre o livro há muito tempo, até 40 anos. Por que se trata de uma obra tão pessoal e importante?
LF: Eu me sinto como se estivéssemos entre amigos, ao fogo de uma lareira na serra. Sim, este livro é de longe o mais importante a meu ver entre todos os que escrevi. É o primeiro que no qual eu emprego minha própria filosofia, minha análise do tempo presente, que me parece caracterizado por três grandes traços: a desconstrução dos valores tradicionais, a emergência da globalização liberal e o nascimento do casamento por amor e da família moderna. Estes três traços são ligados entre eles, e formam uma paisagem coerente. É nesta paisagem que nossas vidas vão tomar sentido. Sim, também é verdade que se trata de um livro de toda uma vida.
ESP: Sobre A Revolução do Amor, comecemos por sua ideia de base: algo de revolucionário teria acontecido há alguns séculos: a invenção do casamento por amor na Europa. Qual é a amplitude desta revolução?
JF: É imensa! O que eu chamo de "revolução do amor" é o nascimento da família moderna, ou seja, a passagem do casamento arranjado pelos pais e pelos vilarejos, ao casamento escolhido livremente pelos jovens imbuídos de amor. Esta revolução na vida privada chacoalhou nossas existências. Ela aportou um novo princípio de sentido, que exige uma nova filosofia. Mas, ao contrário do que poderíamos crer, ela não chacoalha apenas nossas existências privadas, mas toda a nossa relação com a coletividade. É o que eu chamo de "segundo humanismo". O primeiro foi o humanismo da lei e da razão. Era o do Iluminismo e dos direitos humanos, dos Republicanos franceses e de Kant. O segundo humanismo é um humanismo da fraternidade e da simpatia. Minha convicção é que existe desde então uma única visão do mundo movida por este sopro de uma utopia possível. Porque o ideal que ela visa a realizar não é o dos nacionalismos, nem as ideias revolucionárias. Não se trata mais de organizar os grandes massacres em nome de princípios mortíferos que se acreditava serem exteriores e superiores à humanidade, mas de preparar o futuro para os que nós amamos mais, o das gerações futuras.
ESP: Essa revolução produziu efeitos sobre a arte e a moral, mas há efeitos ainda em progresso, como a evolução da condição da mulher e dos homossexuais, por exemplo. Quais são os indícios desta revolução hoje?
JF: Antes de mais nada, é preciso dizer que esta revolução do casamento de amor, escolhido e não imposto, começa na Europa e depois se estende a todo o mundo cultural ocidental. Isso quer dizer que no resto do mundo o casamento tradicional, imposto pelos pais e pelos vilarejos continua a ser a regra. No Ocidente, nós temos vivido desde o século 20 uma formidável desconstrução dos valores tradicionais. Ela às vezes teve efeitos negativos, em especial na escola, mas também formidavelmente positivos, em especial para os homossexuais e para as mulheres. Observe que em um país como a Suíça, no coração da Europa, o último cantão a conceder o direito de voto às mulheres o fez, pense bem, em 29 de abril de 1991! Isso quer dizer que, até então, as mulheres ainda eram vistas como crianças. Na França, foi um pouco mais cedo, mas, enfim, foi preciso esperar o fim da Segunda Guerra Mundial para que as mulheres tivessem o direito de voto. Quanto aos homossexuais, lembre-se o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) definia a homossexualidade como uma doença até 1990! Sim, nosso mundo ocidental mudou mais nos 50 anos da segunda metade do século 20 do que nos 500 anos anteriores! E eu não falo nem mesmo das revoluções científicas, da genética, do digital, etc.
ESP: Falemos sobre a destruição dos valores tradicionais. No seu entender, parte desse processo vem do fato de que as ideias não merecem mais sacrifício, só o humano. É isso o retorno da "sacralização", do reencantamento do mundo?
JF: Como a "consciência infeliz" da qual falava Hegel, nós temos sempre a tendência de nos dar conta na história do que se destrói e morre, quase nunca do que surge, toma forma e vida. Logo, temos uma propensão ao pessimismo, propensão tão forte que dá asas ao pensamento negativo. Ao contrário do otimismo, sempre um pouco simplório, ele confere à primeira vista uma presunção de inteligência. Às vésperas do século 21, é verdade, a maior parte dos valores tradicionais, em especial a nação de direito e a revolução de esquerda, desmoronaram, ao menos na Europa. Logo, devemos constatar, pelo menos na Europa, que os motivos tradicionais do sacrifício coletivo, violento e maciço, foram liquidados. Quem desejaria nos dias de hoje, ao menos nos países que vivem da cultura europeia, morrer por Deus, pela pátria ou pela revolução? Não muita gente, ou pelo menos mil vezes menos do que no início do último século. Mas, ao encontro da morosidade ambiente, eu defendo que esta é uma grande notícia, não do século, mas do milênio. Champanhe! No que diz respeito às guerras nacionalistas, como eu poderia lamentar, eu que estudei na Alemanha, o tempo em que meu pai atacava meus professores (e reciprocamente)? Quanto às estupidezes mortíferas do maoismo, com suas dezenas de milhões de mortos em condições atrozes, quem, fora alguns intelectuais senis corroídos pelo desejo de se pretender interessante, poderia não se felicitar da sua liquidação?
ESP: Isso não quer dizer que nós vivemos a era do desencantamento do mundo? Há mesmo lugar ainda, hoje, para alguma espiritualidade?

JF:
Não creio nisso que vivamos uma era do desencantamento do mundo. Aí está até mesmo a ilusão arquetipal desta consciência infeliz que adora tanto não adorar. O que nós vivemos não é de forma alguma a liquidação do sagrado, o eclipse dos valores (da espiritualidade), mas sua encarnação em nova face, a da humanidade. Questione-se honestamente: por quem ou pelo que você estaria pronto a arriscar sua vida? Em outros termos, o que você considera sagrado no sentido próprio, como digno de sacrifício? A resposta para a imensa maior parte seria: é o homem que é sagrado, o próximo, mas também o seu contrário, o seguinte. Em todo caso, não são as abstrações vazias da religião e da política tradicionais. Vivemos o nascimento de uma nova face do humanismo, que não é mais aquele de Voltaire e Kant, dos direitos do homem e da razão, desses iluminismos que portaram, é verdade, um vasto projeto de emancipação, mas que conduziram também ao imperialismo e à colonização. Trata-se, ao contrário, de um humanismo pós-colonial e pós-metafísico, da transcendência do outro e do amor. Precisaremos, então, dessas novas categorias filosóficas (uma espiritualidade sem Deus) para refletir sobre suas armadilhas e perspectivas.
ESP: O senhor diz que a globalização tem um papel na desconstrução dos valores. Estamos na era do consumo de massa e da economia global, o que gera um impacto social e altera nossa maneira de ver o mundo, certo?
JF: Sim, é isso. O verdadeiro motor da desconstrução dos valores tradicionais foi o capitalismo moderno. Marx já tinha compreendido isso de forma genial quando dizia que o capitalismo era a revolução permanente. Por quê? Porque a competição, sobretudo quando é mundial, leva inevitavelmente à lógica da inovação permanente, da inovação pela inovação. Uma empresa que não inova o tempo todo está fadada a morrer. Mas há mais do que isso. Os que desconstruíram os valores tradicionais no século 20 eram com frequência de esquerda, mais ou menos boêmios ou anarquistas, como em Maio de 68. A verdade do século é que esta grande desconstrução serviu aos interesses do capitalismo.
ESP: Fale mais sobre isso.
JF: Foi necessário que os valores e as autoridades tradicionais fossem desconstruídas pelos boêmios, pelos jovens de cabelos longos, libertários, anarquistas, republicanos e antiburgueses para que o capitalismo, ele também moderno e fadado à inovação pela inovação, pudesse fazer entrar nossos filhos na era do grande consumo de massa sem o qual seu enfraquecimento e seu futuro globalizado simplesmente não teriam sido possíveis. Eis o que me parece uma das verdades mais profundas do século passado, verdade que vai crescer no século que está aí. Se nossos filhos tivessem os mesmos valores que nossos avós, eles não comprariam um telefone celular por ano, ou um MP3, ou um novo videogame. Do contrário, se nossos antepassados pudessem ver um grande centro comercial ao estilo americano, eles acharia provavelmente que estes novos templos edificados ao deus do consumo escoam besteiras e obscenidades. Eles talvez pensassem que estas bugigangas absurdas que transbordam das vitrines nós distanciam dos verdadeiros valores, como os deveres em relação ao próximo, mas também em relação a si mesmo. Logo, foi necessário que as visões tradicionais do mundo fossem desconstruídas totalmente para que, enfim livre dos velhos freios, nós pudéssemos nos consagrar ao consumo sem complexos, ao menos no limite de nosso poder de compra.
ESP: Sua ideia de reencantamento é um paradoxo à de Max Weber, que falava no início do século 20 do desencantamento do mundo. Minha questão é: o reencantamento é só positivo, ou também tem sua "parte do diabo"?
JF: Você tem razão, há uma verdadeira parte do diabo. Não sou ingênuo. Quando eu falo da revolução do casamento escolhido, do casamento do amor em nossas vidas, não quero dizer que nós entramos no mundo ideal, no qual todo mundo se ama, ou todo mundo é bonito e gentil. Antes de mais nada, porque o reverso da medalha do amor, é o ódio. Não há rosas sem espinhos, nem amor sem ódio. Além disso, o amor dos seus, dos próximos, pode levar a um egoísmo louco. Nós estaríamos prontos a tudo pelo sucesso de nossos filhos, inclusive a sacrificar o dos outros. Tudo isso é verdade. Mas também é verdade que o amor que dá sentido a nossas vidas não é mais o amor pela nação, nem pela revolução. A questão que as gerações futuras vão definir, como os ecologistas já compreenderam, é cada vez mais crucial: que mundo vamos deixar a nossos filhos? Eis essa nova e grande questão política não diz respeito só à ecologia, mas à dívida pública, ao futuro da proteção social na época da globalização, à regulação financeira ou ao choque de civilizações. Não é porque o amor dá sentido a nossas vidas que os problemas desaparecem. Mas nós podemos observá-los em uma perspectiva de sentido novo, em relação às gerações futuras.
ESP: Quando falamos em um mundo no qual o casamento de amor está no centro de uma revolução, como devemos ver as civilizações em que o casamento ainda é determinado por interesses financeiros, políticos ou diplomáticos?
JF: Sem defender o eurocentrismo, é preciso reconhecer que nosso velho continente inventou algo de único e de precioso, de singular e de grandioso: uma cultura da autonomia dos indivíduos como nenhuma outra, uma exigência de pensar por si mesmo, de sair dessa "menoridade" infantil - como dizia Kant sobre o Iluminismo - mantida por todas as civilizações religiosas, todas as teocracias e todos os regimes autoritários. Este movimento caminha em direção à autonomia, como aconteceu primeiro com a arte, desde o século 17, quando ela deixou de ser exclusivamente religiosa, depois se infiltrou em toda a civilização europeia, da filosofia, racionalista, à política, laica e democrática, passando pela ciência, hostil aos dogmatismos clericais, e pela vida privada, quando o casamento decidido pelo amor substitui o casamento racional imposto pelos pais e pelos vilarejos. Este é o gênio da Europa que acabaria por si mesmo por abolir a escravidão e a colonização, por se desfazer dos totalitarismos e, enfim, reconhecer a alteridade. Nada, nesta valorização da civilização europeia, implica o menor racismo, a menor tendência neocolonial. Outras civilizações são igualmente grandiosas, mas sim, é inegável, a civilização europeia inventou a autonomia política, como a democracia, assim como a autonomia privada, como o casamento por amor e a família escolhida. E, francamente, como não se apegar a isso?
ESP: O senhor diz que o sagrado reencarna na cultura ocidental. Mas e as revoluções no mundo árabe, marcada por princípios modernos, como a liberdade e a democracia? Devemos esperar um dia uma nova onda de revoluções? A dinâmica do Ocidente é válida para todo o mundo?
JF: Sim, eu estou convencido disso. As revoluções árabes, embora corram o risco de serem apropriadas pelo islamismo radical, são apesar de tudo uma novidade magnífica. Observe como o mundo evoluiu nos últimos 50 anos. Quando eu era criança, a velha Europa estava tomada por ditaduras. Franco ainda era vivo, a revolução dos cravos em Portugal não tinha acontecido e a Grécia ainda sofria o regime fascista dos coronéis! A Rússia e os países do leste viviam na pior tirania, e a América Latina estava povoada de ditaduras. Tudo isso mudou para melhor, e apesar do delírio pessimista que reina hoje, esta é a verdade. Mesmo a China é cem vezes mais democrática do que no tempo de Mao e da Revolução Cultural que deixou 70 milhões de mortos em circunstâncias atrozes. O paradoxo é: nós vamos viver um declínio econômico e social na Europa, mas ao mesmo tempo uma formidável vitória dos valores da democracia europeia. Estou certo que, como aconteceu aqui, um "segundo humanismo" vai se seguir ao primeiro.
FONTE: JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO – 08/06/2012

quarta-feira, junho 06, 2012

Editora Zahar


Caros alunos e amigos,

Vocês já navegaram no novo site da Editora Zahar?

Para quem ainda não foi lá, informo que o site está muito bom e muito prático. Você coloca, através de uma palavra chave, o assunto que interessa pesquisar e o site relaciona uma grande bibliografia sobre o tema: com nome do livro, o autor e a página da referência. Neste novo formato, além de ser uma “santa ajuda” para qualquer pesquisa, você pode ler várias páginas dos livros relacionados na pesquisa, com apenas um clique. Ou seja, você pode decidir, através de uma rápida leitura, se o modelo de textualidade do autor corresponde ao interesse do seu texto.

Editora Zahar, obrigado pelo belo trabalho.

Parabéns!

sexta-feira, junho 01, 2012

Ensaio

Francisco Bosco


Numa entrada de 18/11/1956, Susan Sontag anuncia em seu diário o projeto de escrever “Notas sobre o Casamento”. Não conheço muito de sua obra, tendo lido apenas um punhado de ensaios de sua autoria, logo não sei se ela levou adiante o projeto. Em entradas anteriores e posteriores do primeiro volume de seus Diários – 1947-1963 (Companhia das Letras, 2009), entretanto, há algumas observações que deveriam constar dele. Com base nelas – faz parte da admiração intelectual herdar o desejo do outro , tomo para mim, aqui, a tarefa de escrever algumas notas sobre o casamento. É oportuno esclarecer que as observações de Sontag que vou comentar (servindo-me delas apenas como ponto de partida para outras percepções que lhes são independentes) dizem respeito à experiência da autora com Philip Rieff, com quem se casou aos 16 anos (e de quem se separaria seis anos depois), e, o que é mais importante, num momento de confusão e angústia com a própria sexualidade. Apesar de estar vivendo no Estado mais liberal da Califórnia, esse momento de sua adolescência situa-se nos anos 1950, portanto antes da explosão da revolução sexual, e fica claro que Sontag ainda lutava consigo mesma contra a estigmatização da homossexualidade. Acredito que a unilateralidade de seus julgamentos, cujo pessimismo incorre quase sempre em generalizações e reducionismos, deva-se decisivamente aos tormentos psicossociais que estão no cerne de sua resolução intempestiva de realizar um casamento heterossexual. Resolução assim relatada em seu diário (3/1/1950): “Casei com P. com plena consciência + medo de minha própria vontade apontada para a autodestrutividade”.

As observações de Sontag sobre o casamento convergem para dois juízos principais: o de que o casamento se resume a um movimento inercial, preso a uma lógica da repetição, e o de que ele, em vez de aguçar, embota os sentimentos. Esses dois aspectos podem ser conferidos na entrada de 4/9/1956: “Quem inventou o casamento foi um torturador astuto. É uma instituição destinada a embotar os sentimentos. Toda a questão do casamento se resume na repetição. O melhor que ele almeja é a criação de dependências fortes e mútuas”. Um pouco adiante, na entrada de 18/11/1956, Sontag prossegue no registro veemente: “Casamento se baseia no princípio da inércia. Proximidade sem amor”. Para mim, contudo, Sontag não poderia estar mais equivocada.

Há uma obra da fotógrafa norte-americana Nan Goldin que me ajudará a argumentar em outro sentido. Essa obra, Heartbeat, apresenta-se como cinco séries de fotos que, projetadas sobre uma tela, vão dispondo, cada uma, dezenas de instantâneos, à maneira de um filme drasticamente ralentado. Cada série leva o nome dos membros do casal que a protagoniza e um subtítulo (que é um comentário de Nan Goldin sobre o que ela considera a experiência desse casal: por exemplo, Joanne et Aurelie – French Kiss). As fotos, trazendo o olhar característico de Nan Goldin, mostram cenas banais da intimidade, do cotidiano dos casais. Em composição com elas, e duplicando o fluxo temporal em que elas vão se sucedendo, ouve-se uma magnífica – solene, pungente, pode-se dizer mesmo sacra – canção interpretada por Björk. À medida que as fotos vão passando, ocorre uma verdadeira (aqui lamento o trocadilho) revelação.

A sucessão dos instantâneos não produz uma narrativa para a frente, no tempo, mas sim para baixo, fazendo surgir outra dimensão, de uma profundidade vertiginosa, profundidade que também não se situa no espaço. Mais precisamente, do eixo horizontal da narrativa emana um eixo vertical cuja dimensão, nem temporal nem espacial, é, justamente, aquela da experiência amorosa no casamento. Esse eixo vertical é característico da experiência do casamento porque resulta da repetição unida à intimidade. Assim, a verdadeira consequência da repetição, no casamento, é produzir uma diferença de radicalidade muito maior do que as diferenças que se situam em seu plano horizontal, e que ele, pode-se dizer, até certo ponto barra ou dificulta. A repetição, assim, gera e sustenta um eixo vertical e vertiginoso que é a um tempo o lugar da salvação e do trágico.

Tentemos compreender isso. Toda relação erótica configura uma passagem. O verso do poeta emerge de uma abertura do mundo à sua linguagem (ou, talvez mais exatamente, dentro dela), assim como o desejo sexual é um canal aberto que conduz uma pessoa à outra. Eros se deixa reconhecer (também) por essa passagem. Mas o eixo vertical a que me refiro é outra coisa. Sua existência depende, seguramente, de manter-se aberta uma passagem, mas o que caracteriza seu ser não é o desimpedimento, a liberdade da passagem, e sim seu poder gravitacional, sua força que impele para baixo. Esse “para baixo”, é preciso compreendê-lo num sentido ontológico (não importa que ilusório): sua gravidade alivia-nos da leveza insustentável de nossa condição ontológica, de seu absurdo irredimível (é esse também o sentido do romance de Kundera). É, portanto, a meu ver o amor, e não o erotismo, o que nos ilude de nossa descontinuidade fundamental, para usar o conceito de Bataille. Eros, como disse, é, sim, uma passagem – mas que leva, um a outro, por uma súbita abertura, dois seres descontínuos, sem que sua descontinuidade essencial seja abolida por essa passagem. É somente no eixo vertical da experiência amorosa, nessa sua dimensão específica, que o outro se revela como capaz de doar um sentido, uma espécie de gravidade ontológica, atando o ser, que é solto, a algo que o transcende e justifica. É a isso que creio que Guimarães Rosa se referia ao dizer que o amor “é um descanso na loucura”.

E é à luz disso que se deve entender, num sentido não neurótico, a dependência produzida pelo casamento, a que Sontag se refere. A dependência não tem necessariamente caráter neurótico, tampouco reduz-se ao problema da redistribuição libidinal (tópica freudiana do luto). A dependência tem a ver, numa instância superior, com o trágico: perder o ser amado é perder essa gravidade ontológica sem a qual imediatamente nos transformamos em uma espécie de astronautas da terra – flutuando, sem “descanso”, no infinito da existência.

Um casamento sem Eros, ou com Eros debilitado, deve, apesar de tudo, ser desfeito. Eros, é claro, não se reduz ao sexo; sua presença verifica-se em tudo que, no outro, pelo outro, nos vitaliza, contribui para o aumento de nossas potências. O contrário de Eros é a neurose, a repetição sem diferença, sem transformação, a manutenção de laços paralisantes, a dependência, em suma, por covardia existencial.

Voltando à obra de Nan Goldin, nela um único verso, insistente, é entoado por Björk: “Lord, Jesus Christ, son of God, have mercy upon me”. Ouvimo-lo repetidamente, enquanto vemos as fotos. Seu sentido está ligado ao trágico da experiência amorosa (e a um deleuziano modo de ser atravessado por forças maiores do que se pode aguentar), à possibilidade de perda do outro. A obra de Nan Goldin, em tempos de superficialidade e anestesia afetivas, revela-nos, para dizer de forma quase obscena – e certamente cafona –, o que significa, ou significou, morrer de amor. Significa, justamente, a perda desse fundamento ontológico que se torna o outro. “Have mercy upon me”: à mercê de Cristo é tanto a doação do amor quanto a súplica para que não nos seja retirado. Barthes, ao perder a mãe (com quem, e só com quem, foi, de certo modo, casado), imprecava: “Quem foi o Lúcifer que inventou o amor e a morte ao mesmo tempo?”. Mas, talvez, sem a morte não houvesse o amor: os anjos têm amor pelos mortais, não por outros anjos.

 FONTE: REVISTA CULT

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