sábado, junho 29, 2013

A mulher, de Lacan, que não existe




Desde o início da civilização até hoje, vemos uma impropriedade comum no tratamento da mulher

O que Lacan sabia das mulheres? É a pergunta, em título, do Colóquio de Miami, em junho de 2013.

Nós todos conhecemos a resposta, Lacan a deu inúmeras vezes nos últimos anos de seu ensino. Ele a sintetizou em quatro palavras.

Lacan sabia das mulheres que: A MULHER NÃO EXISTE.

O que está condensado nessa oração aforismática é uma radical revolução no laço social, pois aponta a uma mudança de paradigma com implicações fundamentais na clínica e na vida em geral da pós-modernidade. É a isso que vou me dedicar a analisar nesse breve artigo:

a. como a mulher era vista;
b. o que há de novo quando a mulher não existe;
c. a possibilidade de um novo amor: a ressonância;
d. a segunda clínica: a consequência;
e. “a mulher de Lacan e a mulher de hoje”, tema dessa mesa.

Como a mulher sempre foi habitualmente vista? (*)

Começou como sempre, no começo. No Gênesis, quando Deus diz à mulher que levara o homem a comer o que não devia: “Multiplicarei teus trabalhos e misérias em tua gravidez; com dor parirás os filhos e estarás sob a lei de teu marido, e ele te dominará”.

De lá até aqui, numa longa e inacabada história, a lista de impropriedades sobre a mulher só fez crescer. Os autores, paradoxalmente, são da melhor qualidade. Senão, vejamos.

"Uma mulher estéril deve ser substituída no oitavo ano; aquela que perdeu todos os filhos, no décimo; a que só dá luz a filhas, no décimo primeiro; aquela que é azeda, imediatamente" (Código de Manu, século XIII A.C.).

"A mulher é má. Cada vez que tiver ocasião, toda mulher pecará" (Buda, 600 A.C.).

"As mulheres, os escravos e os estrangeiros não são cidadãos" (Péricles, 450 A.C.).

Eurípedes, o dramaturgo, na mesma época: "Os melhores adornos de uma mulher são o silêncio e a modéstia".

Um pouco depois, o pai da lógica, Aristóteles, saía-se com esta: "A mulher é por natureza inferior ao homem; deve, pois, obedecer... O escravo não tem vontade; a criança tem, mas incompleta; a mulher tem, mas impotente".
"A mulher deve aprender em silêncio, com plena submissão. Não consinto que a mulher ensine nem domine o marido, apenas que se mantenha em silêncio" (São Paulo, século I).

"Os homens são superiores às mulheres, porque Deus lhes outorgou a preeminência sobre elas. Os maridos que sofram desobediência de suas esposas podem castigá-las: deixá-las sozinhas em seus leitos e até mesmo golpeá-las" (Maomé, século VII).

"Para a boa ordem da família humana, uns devem ser governados por outros mais sábios do que eles; em decorrência, a mulher, mais débil em vigor da alma e força corporal, está sujeita por natureza ao homem, em quem a razão predomina. O pai há de ser mais amado do que a mãe e merecerá maior respeito, porque a sua concepção é ativa, e a mãe simplesmente passiva e material" (São Tomás de Aquino, século XIII).

"Você não sabe que sou mulher? Quando penso, tenho de falar" (Shakespeare, século XVII).

"Ainda que o homem e a mulher sejam duas metades, não são nem podem ser iguais. Há uma metade principal e outra metade subalterna: a primeira manda e a segunda obedece” (Molière, século XVII).

"Uma mulher amavelmente estúpida é uma bendição do céu" (Voltaire, século XVIII).

"A mulher pode, naturalmente, receber educação, porém, sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas artes" (Hegel, século XIX).

"Todas as mulheres acabam sendo como suas mães: essa é a tragédia" (Oscar Wilde; século XIX).

"... de quem, de fato, aprendemos a volúpia, o afeminamento, a frivolidade total, e outros muitos vícios, senão da mulher? Quem é o responsável por perdermos tantos sentimentos inerentes a nossa natureza, como o valor, a fortaleza, a prudência, a equidade e tantos outros, senão a mulher?" (Tolstoi, século XIX).

"A mulher parece resolvida a manter a espécie dentro de limites medíocres, a procurar que o homem não chegue nunca a ser semideus" (Ortega y Gasset, século XX).

Nosso contemporâneo, Elias Canetti, búlgaro, Prêmio Nobel de Literatura de 1981: "Sua confusão era tal que começou a piorar mentalmente, como uma mulher".

Finalmente, fora da ordem histórica, o epitáfio que o poeta inglês John Donne (século XVII) inscreveu na tumba de sua esposa: "Enquanto você repousa, eu descanso".

Saltando de século em século, do início da civilização até hoje, por meio desses flashes pinçados ao acaso, vemos uma impropriedade comum no tratamento da mulher, um conjunto de desaforos, literalmente: um conjunto de "fora de lugares". Historiadores, filósofos, teólogos, dramaturgos, políticos, enfim, a inteligência, os que pensam, pensam muito mal a mulher. Razões culturais, sim, não há dúvida, mas o que provoca essa quase desrazão cultural?

A mulher não existe quer dizer que falta à civilização, à cultura, um nome apropriado à satisfação feminina, à essência da mulher. Quando se tenta classificá-la, como vimos, é um desastre, acaba-se por degradá-la, mudar de grau. É diferente do homem que, este sim, encontra conforto nos braços da cultura e aí dormiria em berço esplêndido se não fosse a mulher acordá-lo de seu sono narcísico e homossexual da civilização, de tempos em tempos.
O homem adora estar no mundo, na ordem unida; quanto mais todos forem iguais, melhor. O exército, a igreja e as legiões de executivos são bons exemplos da vontade de ser uniforme: todos de farda, de batina, de terno cinza, gravata escura, sapato preto, no máximo, marrom.

Se você elogia um homem, tipo: “Você é inteligente”, ele fica contente e, se nesse elogio se acrescenta uma comparação com outro homem – como, por exemplo, "Você é inteligente como Churchill", tanto melhor.  Já as mulheres questionam o coletivo e a ordem unida. O elogio a uma mulher há de ser específico. Jamais diga, por exemplo: "Você é sensual como Gloria Estefan, pois se arrisca a ouvir: "O quê? Aquela cubana, de Miami, cantora de salsa?". Melhor restringir o elogio, tal como: “Você é de uma sensualidade jamais vista”.

Pois bem, seja para homens ou para mulheres, uma análise se propõe a escutar e a inventar um nome para o que se exclui da linguagem; daí dizer, com Lacan, que uma análise deve ser conduzida ao território da inexistência da mulher, além do Édipo, lembrando que "complexo de Édipo" é a maneira da psicanálise conceituar a articulação do sujeito com a cultura.

Ir além do Édipo é forçar a palavra onde normalmente nada poderia ser dito. Lembremos do final do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: "Do que não se pode falar, melhor é calar-se". Contrariamente a essa assertiva do filósofo, a psicanálise insiste no mais além, convida ao excesso: onde nada pode ser dito, tal como faz o poeta, há de ser inventado um significante novo.

Inventar um significante novo e se responsabilizar por sua passagem no mundo. Invenção e responsabilidade são dois movimentos fundamentais da clínica do sujeito da pós-modernidade, a segunda clínica de Jacques Lacan. Nesta, onde na primeira se buscava o sentido a mais, aqui o que importa é a consequência. Nada a esperar que uma mulher venha a existir. É por que ela não existe que podemos inventá-la e inventar-nos.

Essa série de impropérios sobre a mulher, que listei, é sinal de um tempo em que a norma era masculina. Muito tempo, dois mil anos. Tempo no qual o amor, para voltar ao tema referido na primeira mesa, se realizava sempre em nome de um bem maior: a família, a religião, a tradição etc. Hoje, no novo amor da pós-modernidade, se estou com alguém é porque eu quero, sem justificativa outra, logo é por minha conta e risco. E não há como degradar uma mulher, posto que ela não existe.

A clínica mudou, o mundo mudou também. Seremos capazes de viver esse mundo da ressonância, não da compreensão, na medida em que suportarmos efetivamente o que Lacan sabia das mulheres, ou seja, que ela não existe. Mais que nunca, nos novos tempos da globalização, a mulher de Lacan é a mulher de hoje.


by: Jorge Forbes
Miami, 2 de junho de 2013

(*)Nota: retomo aqui, em parte, o que desenvolvi em artigo anterior: “A mulher e o analista, fora da civilização.”, publicado em livro por mim organizado: “Psicanálise: problemas ao feminino”, artigo que pode ser lido em: http://migre.me/eZqbq





domingo, junho 23, 2013

Movimentos Populares: Mais uma análise



O psicanalista Contardo Calligaris aproxima as relações amorosas das relações políticas, na tentativa de analisar os movimentos populares no Brasil.

Sonhos de calor humano

Na sexta-feira passada, estreou o último filme de Richard Linklater, "Antes da Meia-Noite", que eu estava aguardando. Mas, enquanto as ruas pegam fogo, é difícil escrever sobre o amor.

As manifestações que se espalharam (e seguem se espalhando) por São Paulo e por outras cidades do país me impressionaram pela rapidez com a qual o protesto, supostamente motivado pelo aumento das passagens de ônibus, tornou-se expressão de outras insatisfações, profundas e cruciais --contra a má qualidade e a má gestão do que é público, contra a insegurança de nossas ruas, contra a corrupção, contra o mistério nacional que resulta em produtos caros e salários baixos, contra os políticos com sua falta de competência e seu excesso de promessas, contra o desperdício da Copa que vem aí, contra a lentidão e a ineficácia da Justiça, que parece que late e nunca morde etc.

Domingo, num café de família, verifiquei, aliás, que as passeatas da semana passada não eram mais (se é que foram no começo) a manifestação de uma geração ou de uma classe social (e ainda menos de um partido).

Todos parecem cansados de uma cantilena ufanista que quase nos adormeceu: o discurso do Brasil que dá certo, que cresce (?), que está no caminho, que resistiu à crise enquanto os outros se deram pior, que acabou com a miséria (?) etc.

Levantando a cabeça atordoada pela propaganda, a gente pergunta: isso aqui é mesmo tudo o que conseguimos ser, como sociedade?

As manifestações da semana são frutos de um descontentamento bem justamente brasileiro. Ao mesmo tempo, elas pertencem a uma voz popular que se expressa, mundo afora, há tempo --e não só desde Seattle, em 1999.
Paradoxalmente, foi assistindo ao filme de Linklater que me pareceu entender por que somos (e não estamos) insatisfeitos com as sociedades nas quais vivemos.

Linklater filmou uma trilogia: no primeiro filme, "Antes do Amanhecer" (1995), Jesse e Céline descem do trem onde se encontraram para passear por Viena, até eles terem que voltar, no dia seguinte, cada um para seu lugar. No segundo, "Antes do Pôr do Sol" (2004), Jesse está promovendo, em Paris, o livro que ele escreveu sobre seu encontro em Viena com Céline; Céline vai ao lançamento, e eles se reencontram.

Em "Antes da Meia-Noite", agora em cartaz, Jesse e Céline se juntaram no fim do filme anterior, tiveram duas filhas e estão de férias na Grécia: o charme das conversas passadas se transformou num pesadelo, em que uma oposição estéril, abstrata e inexplicável parece ser o destino a longo prazo de qualquer conversa de casal.

Ou seja, o amor é o encanto de um encontro, um sonho: quando ele se realiza como convivência, ele pode durar, mas será facilmente cômico e sempre insuficiente.

Ora, essa verdade do amor talvez valha para qualquer projeto de convivência social. A sociedade que nos parece certa, que desejamos, existe na mágica do encontro e do sonho (o momento da manifestação, da militância). Como acontece com o amor, a realização dessa sociedade é sempre insatisfatória --claro, às vezes ela é um pesadelo absoluto e totalitário, outras vezes ela é parecida com aqueles casamentos que continuam porque ninguém acredita que a coisa possa melhorar e porque ninguém está a fim de ficar sozinho.

Ao longo de alguns séculos, o indivíduo se tornou para nós mais importante do que a comunidade. Esse período teve seu ápice no começo da modernidade. Paradoxalmente, logo quando o indivíduo passou a encabeçar nossos valores, a gente começou a idealizar o amor romântico como doação perfeita de cada um ao outro.

Da mesma forma, quando começamos a inventar as regras e as formas de uma sociedade de indivíduos separados e autônomos, logo naquele momento começamos a sonhar com o abraço de comunidades unidas e fraternas.
Ou seja, quanto mais prezamos o indivíduo, tanto mais sonhamos com o amor e o ideal comunitário.

Esse paradoxo nos define. Estamos em conflito permanente entre nossa aspiração individual e nossos sonhos amoroso e comunitário. Em matéria de amor, a consequência parece chata (nunca dá certo).

Mas em matéria de sociedade, sorte nossa: de vez em quando, podemos nos acomodar, mas nunca somos satisfeitos com a sociedade que conseguimos construir.

Melhor assim.
Contardo Calligaris
Fonte: Site Jornal Folha de São Paulo


sábado, junho 22, 2013

"A democracia não está realizada"



A democracia que não veio

 Vladimir Safatle


Normalmente, aqueles que mais têm a palavra “democracia” na boca são os que, no fundo, menos acreditam nela. Eles se portam como defensores dos valores democráticos apenas para conservar desesperadamente as imperfeições que a versão atual da democracia é incapaz de superar. Na verdade, quando repetem que “a democracia é o pior sistema, mas o único possível”, é porque amam suas distorções. Pois a única posição realmente fiel ao conteúdo de verdade da democracia consistiria em dizer: a democracia não está realizada, ela é uma ideia por vir.

Isto não significa que a realização imperfeita de uma ideia seja completamente falsa. A democracia por vir não é a negação simples, a recusa absoluta da democracia que temos atualmente. Mas ela é a mudança qualitativa de seus dispositivos e construção de novas dinâmicas de poder.

Podemos mesmo dar três razões que nos permitem compreender por que esta democracia por vir ainda não veio. Uma delas é a confusão deliberada entre o jurídico e o político. A verdadeira democracia admite situações de dissociação entre o ordenamento jurídico e exigências de justiça que alimentam as lutas políticas. Esta dimensão extrajurídica própria à democracia nos lembra que há uma violência eminentemente política que sempre apareceu sob a forma do direito de resistência e do reconhecimento do caráter provisório das estruturas normativas do direito. A estabilidade institucional da democracia não significa a perenidade absoluta do ordenamento jurídico atual. Ela significa que a instabilidade da violência política, uma violência que não é a simples eliminação simbólica do outro, será reconhecida no interior mesmo das instituições sociais.

O segundo ponto é o medo atávico da participação popular direta. As estruturas representativas da democracia parlamentar foram criadas para suprir a impossibilidade material da presença física da população no processo de deliberação legislativa cotidiana. Hoje, com o desenvolvimento tecnológico e com o advento das sociedades de alta conectividade, foram dadas as condições materiais para o início de uma verdadeira democracia digital. Vários processos deliberativos podem passar para a esfera da deliberação plebiscitária.

O terceiro ponto diz respeito à relação de reconhecimento entre Estado e cidadão. Não é possível pensar o campo da política sem o Estado. É ele que permite a ampliação de escala de processos gerados na esfera local. É ele que permite a implementação institucional da universalidade. No entanto, vivemos em uma época de esgotamento do Estado-nação com suas exigências de conformação identitária e sua capacidade de gerir processos econômicos em sua fronteira. Este fim do Estado-nação pode dar lugar a dois fenômenos: o retorno paranoico a identidades profundamente ameaçadas ou o abandono da identidade como operador político central. Isto significa não a anulação deliberada de toda e qualquer demanda identitária, mas a construção de um espaço político de absoluta indiferença às identidades; de uma política da diferença à implementação política de zonas de indiferença. Isto implica um estado capaz de socializar sujeitos em seu ponto de indeterminação. Ou seja, a função do estado não pode ser a determinação completa dos sujeitos através da gestão de processos disciplinares e de controle. Sua função é a gestão da indeterminação. Isto pode se dar, por exemplo, através da eliminação de aparatos jurídicos ligados à perpetuação de hábitos e costumes. 

Por fim, não é possível pensar problemas ligados à democracia sem pensar os riscos advindos da consolidação de grandes conglomerados globais de mídia. Eles têm tendência a monopolizar discussões sobre liberdade de expressão sem nunca discutir as redes de interesses econômico-financeiros que permeiam tais conglomerados e direcionam sua expressão. Da mesma forma, eles tendem a não discutir como setores da opinião são, muitas vezes, marginalizados

FONTE: Site Revista Cult



domingo, junho 16, 2013

Lacan: Um percurso

Jacques Lacan – por Gilles Lapouge 

publicado no Caderno Cultura do jornal O ESTADO DE SÃO PAULO,
 em 18/10/1981







Em seus últimos dias de vida, Jacques Lacan era um homem triste, frágil e cansado. Era um velho. Mas a morte jogou-o novamente no primeiro plano, obrigando a uma reapreciação do uso que fez da linguística para a decifração de Freud. Gilles Lapouge refaz a trajetória desse intelectual e recorda a curta, porém marcante, convivência que teve com LACAN.

Ele não realizava mais seminários. Depois de tanto barulho, tudo em torno dele era silêncio. Não era mais visto nas ruas de Sant Germain des Près. Ou, quando se aventurava fora de casa, nestes últimos meses, não mais era aque¬le personagem suntuoso, o "magnífico", envolvido em peles, mas sim um homem triste, frágil, cansado, que caminhava lentamente arrastando os pés. Um velho.
Em torno dele os rumores ferviam: discípulos, inimigos e aduladores davam as notícias mais desencontradas sobre Lacan, como um telégrafo que assinalas¬se a posição de um navio perdido no Ártico ou, ao contrário, anunciasse que esse navio descobrira novas terras: "Ele está empenhado em um último combate, o mais perigoso de sua vida, está procu¬rando formalizar a teoria psicanalítica através da matemática, e precisa de solidão", diziam uns — a que respon¬diam outros: "Ele está liquidado, não pode mais nem falar. Ficou louco, vai ser internado." E comentavam: "Belo símbolo, o mais célebre dos psicanalistas acabando sua vida em um hospício...". Ou ainda: "O clown, o bufão, o histrião chegou ao fim. Representou todos os seus números, fez-nos rir durante muito tempo, apaixonou-nos — mas era tudo vento. Seus bolsos agora estão vazios, não há mais pó, dentro deles, para que ele o atire nos nossos olhos. Hoje ele é apenas um acrobata que não consegue mais fazer seu número".
Eis que de repente o gênio, ou o liquidado, ou o acrobata, morre. E todo mundo se espanta. Sua morte surpreende. E, no entanto, Lacan era um homem muito velho, nascido em 1901, partícipe dos mais ativos do grupo surrealista, com Breton e Aragon, desde 1918. Mas a celebridade só chegou muito tarde, mais precisamente em 1966, quando ele já estava com 65 anos e decidiu-se a publicar seu primeiro livro, composto pelas aulas que dava em seu seminário, o Écrits, editado pelas Editions du Seuil. (Vale um parêntese: este homem que seus inimigos denunciavam como vaido¬so, esperou chegar aos 65 anos para se colocar finalmente sob os refletores da publicidade).
É verdade que, antes de 1966, não é que Lacan fosse um ninguém: ele era conhecido, reverenciado e adulado, embora apenas por um restrito círculo de psicanalistas e filósofos. Os outros, o grande público culto sabia que existia e oficiava em Paris, há 30 anos, um perso¬nagem enigmático, fascinante, uma es¬pécie de xamã — Jacques Lacan — que distribuía o seu saber, um pouco à maneira de Sócrates, apenas por meio da palavra: um saber devastador, cortante, temível, graças ao qual a psicanálise, edulcorada pelas modificações da escola anglo-saxônica, pôde finalmente se transformar naquilo que Freud queria que ela fosse, "uma peste".
Foi durante esse longo período de segredos, sussurros e inconfidências que se forjou a lenda de Lacan, lenda que, a seguir, a partir de 1966, quando virou moda, transformou-se num verdadeiro câncer. Diga-se, aliás, que o próprio Lacan nada fez, jamais, para impedir sua proliferação. Estranhamente, desse homem, que se tornara uma vedette mundial há 15 anos, a rigor nada se sabia. Enquanto se conhecia tudo sobre Freud, sua família, sua infância, no que dizia respeito a Lacan estava-se na mais completa escuridão. Sabia-se apenas que ele nascera em Paris, de família rica, em 1901. Nos anos 20, jovem psiquiatra brilhante, interessava-se tanto pela poesia como pelas doenças mentais, convivendo ora com os loucos ora com os escritores surrealistas. Loucos ou, de preferência, loucas, já que Lacan tinha uma acentuada predileção pelo discurso delirante das mulheres, fossem elas místicas ou assassinas.




Seus seminários são assistidos por uma multidão

A partir de 1966, inaugura-se um novo período. Primeiro com a publicação dos Écrits, fazendo com que Lacan seja louvado não só na França como nos meios cultos do mundo inteiro. Segundo, seu seminário muda de sede: do hospital de Sainte Anne vai para a Escola Normal Superior — o templo da cultura francesa — local de formação dos mais brilhantes intelectuais parisienses.
Os seminários de Lacan tornam-se, a partir daí, um acontecimento ao mesmo tempo intelectual e mundano. São frequentados por uma multidão: jovens filósofos, psicanalistas — e senhoras do tipo chic, as dames cultivées.
Para conseguir lugar sentado é preciso chegar uma ou duas horas antes. Na assistência reconhecem-se com frequência nomes como Michel Foucault, Philippe Solers, escritores de vanguarda.
O mestre chega: entra caminhando devagar, instala-se cuidadosamente à sua mesa. Olha a sala vagamente, respira, suspira — como um atleta se concentrando — e começa a falar. Em uma voz inicialmente quase inaudível, aos arrancos, aos sussurros, faz paradas súbitas, hesita, gagueja. Com frases subitamente invertidas, leves, aéreas, uma rápida incursão pela filosofia de Hegel mais um jogo de palavras, uma grosseria inominável e um silêncio interminável — ele dá a impressão de que não conseguirá continuar nunca mais, calou-se para sempre, a platéia aguarda fascinada, corações batendo, respiração presa — e ele recomeça a falar, com doçura, fluência, o discurso sobe, sobe alto, e plana finalmente.
Nem há dúvida que tudo isso era composto, montado, como no teatro. Tudo improvisado, mas nada ao acaso. Tudo artifício — mas qual o orador que não é um homem de artifícios?
E somos forçados a reconhecer que Lacan foi o mais extraordinário mágico da palavra que já nos foi dado escutar.
Ao mesmo tempo, ele continuava a dirigir a Escola Freudiana de Paris, reunindo, agora, tudo o que havia de mais brilhante entre os psicanalistas franceses. Mas — e como em toda instituição psicanalítica — os dramas são constantes. Há expulsões, tempestades, brigas, e Lacan provoca, desafia, detestando e desprezando tanto os que o adulam da mais beatífica das maneiras como os que não se lhe submetem.
Aos poucos, em pequenos grupos, os psicanalistas vão saindo da Escola Freudiana, e outros os substituem — mas Lacan vai ficando amargo. Tem o sentimento, cada vez maior, de que sua palavra não é ouvida, que os seus ensinamentos terminam em malogro, e num belo dia de 1980, aos 79 anos de idade, estoura a novidade, chocante: Lacan resolveu dissolver a Escola Freudiana de Paris, o edifício mais importante de sua vida.
Pânico. Agitação. Insultos e denúncias. Há quem o ataque, há quem cerre fileiras em torno do mestre. Ele fundará outra instituição, sem dúvida — mas a partir desse momento começa como que a apagar-se, deixa de ser visto, fala pouco, não reina mais, no interior da psicanálise, a não ser como uma ausência devorante, um vazio em torno do qual o ar turbilhona alucinadamente.




Depois, a morte.

Esta é a carreira visível de um homem que faz parte da lenda parisiense desde 1968. Uma lenda, diríamos, histérica. Em que ele é vítima dos piores rumores. Lacan teria dado de presente um chicote de ouro à atriz Jeanne Moureau. Teria insultado o embaixador francês em Roma. Teria... teria... Só que nenhum dos rumores se confirma.
A única coisa certa que ele tem, realmente, caprichos de grande coquette, de "diva". Gosta, realmente, do perfume de escândalo, de provocação, que o acompanha sempre. É certo também que ele exige que os seus pacientes, seus analisandos, lhe paguem regiamente, preços exorbitantes, por sessões que, dizem, são cada vez mais curtas — às vezes de apenas alguns minutos — em que, com frequência, ele não diz uma só palavra.
Circulam em Paris histórias sobre seu mau caráter, sua fatuidade, vaidade, orgulho, estranhas maneiras. Eu o conheci: e nele vi, apenas, sempre um homem muito simples, um homem que lutava, com uma coragem assombrosa, contra o enigma da psicanálise, um trabalhador encarniçado.
Conheci-o em 1966, quando publicou seus Écrits. Pedira-lhe uma entrevista para uma publicação semanal, Le Figaro Littéraire. Inicialmente ele me submeteu, por telefone, a uma espécie de pequeno exame, para ver se eu tinha algumas noções, ainda que vagas, sobre psicanálise. Ao que parece passei no exame, e ele me marcou encontro para uma das noites seguintes, às dez horas — estranha hora.
Chego, e encontro um personagem muito amável, muito cortês. Oferece-me charutos e whisky, e pede-me que lhe faça minhas perguntas. Ouve atentamente, a cabeça inclinada. Suspira profundamente, e começa a responder. Utilizando a linguagem mais simples, mais clara do mundo, nada tendo em comum com a prosa preciosa, à La Mallarmé, erudita, dos Écrits.
Fala durante muito tempo. Já são quatro horas da manhã quando ele me acompanha até a porta do seu prédio. Revi-o oito dias mais tarde, para alguns esclarecimentos. De noite, novamente, e por volta da meia-noite ele me propôs que fôssemos a um restaurante, para jantar.
Encontrei-o mais duas vezes, e jamais sua gentileza, seu respeito pelo outro foram desmentidos. Mas ele tinha realmente manias, destinadas sem dúvida a alimentar a lenda. Uma manhã, por exemplo, às seis horas, meu telefone tocou. E era o doutor Lacan, me contando uma história sem grande interesse, e absolutamente não urgente.


Quanto às suas teorias, seria uma impertinência tentar resumi-las.

A teoria lacaniana foi elaborada ao longo de 30 ou 40 anos de prática clínica e de reflexão teórica sobre essa prática, complicada ao máximo, sofisticada ao último grau, fazendo referência a toda a cultura do mundo, desde a História e a mitologia, a poesia e a pintura, até Hegel, Kant ou Sade e às formas mais áridas da matemática moderna, sem esquecer a etnologia, a linguística, e todos os recursos daquilo a que chamamos retórica.
Assim, vamos nos limitar a indicar, de um lado, o que essa teoria não é, e, de outro, qual o eixo, a espinha dorsal dessa teoria. Primeiro poderíamos ser levados a acreditar que um homem tão cheio de som e fúria, provocador, iconoclasta, tivesse virado as costas ao "pai" fundador, a Freud. Pois nada disso: Lacan nunca mudou. O que ele pretendeu foi um "retorno a Freud". Empenhou-se em sua leitura, com cuidados ciumentos, meticulosos, sem em momento algum traí-lo — ou, pelo menos, sem ter o sentimento de traí-lo.
Poderíamos compará-lo, se quiséssemos, a Lutero, o fundador do protestantismo, que quis efetuar um "retorno aos Evangelhos", libertando-os da ferrugem que lhes fora acrescentada pela Igreja de Roma. Assim fazendo, Lacan visava especialmente dois desvios do discurso freudiano: de uma parte, o desvio pela hermenêutica religiosa, efetuado por Jung e seus discípulos, e, de outra, o esmaecimento sofrido pela psicanálise, ao atravessar o Atlântico, reduzindo-se de ano em ano, cada vez mais a uma simples psicoterapia, e ao esforço de meramente "normalizar" os doentes, tornando-os aptos a ocupar seu lugar na sociedade, a funcionar, a produzir.
Lacan estava tão longe dessas práticas que sequer ousava dizer que o tratamento psicanalítico destinava-se a curar. O tratamento, para ele, destinava-se muito mais a fazer com que o paciente "reentrasse em sua própria casa", ou seja, restabelecesse as comunicações cortadas entre o consciente e o inconsciente, sem nem por isso ser obrigado a descobrir, forçosamente, a "serenidade" ou a "felicidade", palavras que não faziam parte do seu vocabulário.
A palavra-chave para ele era "verdade", ainda que essa verdade fosse devastadora, cáustica, impiedosa.
Segundo erro a não cometer: fazer de Lacan um filósofo. Em 1966 e nos anos seguintes, no auge da glória, ele tornou-se um mago, um mestre-pensador — e houve quem quisesse içá-lo às alturas dos antigos mestres, particularmente ao lugar de Sartre, exigindo-lhe portanto uma filosofia, uma metafísica. Tentação de que ele se defendeu com horror. Clínico e teórico, sim. Filósofo nunca.
Ele é um homem de ciência, dessa ciência que é, segundo ele, a psicanálise de Freud — e é precisamente o estatuto científico dessa psicanálise que ele quer estabelecer em sua obra. Não há dúvida que o seu discurso é sobrecarregado de filosofia, e que inspira os filósofos — mas este é um efeito secundário, indireto, pelo qual Lacan se recusa definitivamente a se interessar.
Portanto, a idéia é conferir à psicanálise o estatuto de ciência. E é aqui que intervém o uso da linguística — que também passou a ser ciência, desde os trabalhos de Saussure — uma ciência-serva, se assim quisermos, fiadora e tela de fundo da ciência psicanalítica. E como é que a linguística entra nisso?
Lacan volta a Freud, mas lê-o com óculos que não existiam no seu tempo, os óculos da linguística, fundada por Saussure precisamente com base em Freud. Para Lacan, Freud não descobriu o inconsciente: os homens já o haviam reconhecido há centenas de anos. Basta pensar nas pítias, na mitologia, em Hamlet, Leonardo da Vinci, Sófocles. Os homens sabiam que por baixo do pensamento coerente, "acordado", estendem-se imensos arquipélagos submersos, censurados, que formam o inconsciente. Donde, Freud não descobriu o inconsciente: aprendeu somente a escutá-lo, a decifrá-lo.
Lacan costumava fazer uma bela comparação: antes que Champollion, no começo do século XIX, decifrasse os hieróglifos egípcios, os hieróglifos já estavam lá há muito tempo. E falavam — só que ninguém entendia o que eles diziam. Champollion encontrou a chave, e, de súbito, toda a antiguidade egípcia nos foi devolvida.
Freud fez o mesmo, e a comparação vai ainda mais longe, já que o seu golpe de gênio segue exatamente o mesmo método do golpe de gênio de Champollion. Antigamente, quando se capturava uma palavra do inconsciente, uma imagem de um sonho, por exemplo, procurava-se compreender o sentido daquela palavra, daquela imagem. Da mesma forma, antes de Champollion, procurava-se compreender o sentido isolado de cada desenho de uma tábula egípcia— um íbis, por exemplo, ou uma balança — e não se chegava a parte alguma. Champollion teve a ideia de interpretar a série dos símbolos, sua sequência, seu inter-relacionamento, sua ordem, por ter compreendido que um símbolo nada quer dizer se retirado da cadeia significante. Para traduzir uma língua desconhecida ele usou não um dicionário, mas uma gramática e uma sintaxe. Freud fez o mesmo: e trabalhou sobre todo o sonho, ou todo o discurso do inconsciente, observando como cada uma das suas diferentes secções, suas imagens sucessivas, se organizam umas em relação às outras, se entrecruzam. Em suma: ele examina não mais o discurso palavra por palavra, mas em sua estrutura completa. E traduz esse discurso como se traduz um texto do grego ou do latim, reencontrando sua sintaxe e sua gramática.
Assim fazendo, Freud descobriu que esse discurso do inconsciente, longe de ser desorganizado, incoerente, anárquico, obedecia a leis rigorosas, estáveis, permanentes — leis precisamente iguais às da linguagem consciente, só que "disfarçadas" pela censura. O que nos leva a pensar na censura no domínio político.



Um regime tirânico decreta a censura. Que se passa então?

Todo o discurso do país é cortado, proibido. Ainda assim, não se interromperá, não parará. O país continua a falar, mas clandestinamente, como o inconsciente, apesar da tirania do consciente, que continua a falar "sob" o discurso oficial (o discurso consciente, no caso do indivíduo, o discurso do senhor, no caso da ditadura). E fala de modo que o tirano não o entenda, disfarçando-o.
Um jornalista, por exemplo, em lugar de denunciar claramente esta ou aquela prática, vai fazê-lo por meio de um símbolo complexo. O mesmo para o indivíduo: um desejo sexual me atormenta, por exemplo, mas minha formação, minha educação, impedem-me de falar nele, e até de reconhecê-lo. Assim, o desejo não desaparece, mas vai expressar-se em linguagem camuflada, clandestina, incompreensível.
A psicanálise é portanto a arte de descobrir as leis que esse desejo utiliza para se manifestar sem se trair — leis que são as mesmas que as da nossa linguagem quando acordados, com sua gramática e sua sintaxe, mas torcidas, disfarçadas.
Lacan dá muitos exemplos desse decifrar-se, mostrando, por exemplo, que formações bem conhecidas do sonho, a que chamamos "condensação", seguem exatamente as mesmas regras das formas de retórica, a metonímia, a metáfora, etc. Assim, pela primeira vez, com Freud, os hieróglifos do inconsciente podem ser lidos. Pela primeira vez, o formidável Egito antigo que cada um de nós guarda no inconsciente torna-se perceptível, pode ser ouvido, e conseguimos pôr-nos em comunicação com esse território submerso.
A tudo isso faz-se uma objeção: isto é Lacan. Não pode ser Freud, já que as leis da linguística que Lacan aplica para decifrar o inconsciente eram ignoradas na época de Freud. "Prova — retruca Lacan — da genialidade de Freud. A linguística ainda nem existia e ele já forjara um instrumento de decodificação que só podia funcionar com a linguística! Profético, Freud estava muito à frente de todos os outros — mas foi preciso a linguística para que pudéssemos apreciar e utilizar plenamente a revolução copérnica que ele realizou." E Lacan costumava acrescentar ainda que todos os textos de Freud, se lidos com atenção, mostrariam um combate áspero, violento, com a linguagem.
O que é rigorosamente verdade. Basta citar, por exemplo, a importância dada por Freud ao calembur (refúgio privilegiado do discurso do inconsciente), ao trocadilho, ao lapso, ao ato falho, etc. E, enfim, o que é realmente a cura psicanalítica de Freud? Uma cura da linguagem pela linguagem. O paciente fala. O psicanalista escuta, decifra esta ou aquela palavra. Decifra o discurso. Do começo ao fim, a psicanálise é questão de linguagem.
Claro que esse nosso resumo é indigente. Reduz e empobrece terrivelmente o texto de Lacan — mas não nos é possível ir além disso. Teríamos de introduzir aqui muitas outras noções: o estágio do espelho, as três instâncias do real, do simbólico e do imaginário, o objeto pequeno a, o outro. Mas tudo isso é de um tal refinamento, de uma complexidade tão vertiginosa, que não é possível incluí-lo em um artigo de jornal. Falta só afirmar que tudo se deriva dessa constatação original: "O inconsciente é estruturado como uma linguagem".
A psicanálise permite traduzir o discurso do inconsciente, para rearticular o indivíduo sobre essa radical dele mesmo que é inconsciente, a fim de reintegrar sua própria verdade.
Esta palavra — "verdade" — retorna de maneira obsessiva, em Lacan. O que até surpreende. Como se houvesse uma verdade, como se, admitindo que a verdade existe, o espírito do homem pudesse capturá-la, subjugá-la. Mas a força de Lacan consiste exatamente em fazer, de uma impossibilidade, um formidável trampolim teórico para ir mais longe. Assim com a noção de "verdade", com a qual ele se exibe "como um pavão", segundo os seus inimigos, ou "como um homem em busca do Santo Graal", segundo os admiradores.




0 homem é um ser fabricado pela linguagem

Há três anos, aproximadamente, a televisão francesa, não sem coragem, emprestou suas câmeras a Lacan. E vimo-lo, então, na pequena tela. Suas primeiras palavras foram: "Eu digo sempre a verdade". Os espectadores prenderam a respiração. Quem era, afinal, aquele pretensioso, aquele homem que avançava, tocha flamante na mão, usando a linguagem de um profeta, ou de um deus?
"Eu sou a verdade." E, depois de um silêncio, "mas não toda a verdade, porque não é possível dizê-la toda. Faltam-nos as palavras. E é exatamente por causa dessa impossibilidade que a verdade se torna verdadeira".
Perfeito: em três frases cintilantes, ele disse tudo: que o homem é um ser da linguagem, um ser fabricado pela linguagem e fabricante de linguagem, mas que a linguagem é impotente para revelar a totalidade do mundo, e que é desta falha, deste abismo que separa as palavras e as coisas, que o real emerge. A isso acrescentaremos que essa tentativa sacode os fundamentos de toda a filosofia, portanto do ser, do Ocidente.




Formalizar o inconsciente segundo a matemática

Freud, repetido ou explicado por Lacan, opera um putsch filosófico, um golpe de Estado. "Descentraliza" o "eu" cartesiano. Abole a fórmula real, fundadora do Ocidente, o "Penso, logo existo", de Descartes. Com Descartes o homem só é pensando, e pensa a partir do centro de si mesmo. Com Lacan e Freud tudo isso é dilapidado, tudo é jogado para o alto. Não podemos mais dizer hoje em dia "Penso, logo existo", mas, mais dramaticamente — e aqui deixamos o texto em francês —, "Je pense où je ne suis pas, je suis où je ne pense pas", frase em que a palavra où, com seu acento grave, passa a significar advérbio de lugar — onde — e não a alternativa ou, do famoso "Ser ou não ser". O que traduz, em outros termos, a ruptura, o corte, a separação que corta cada um de nós entre essas duas instâncias, radicalmente estrangeiras uma a outra, mas influenciando-se mutuamente, que são o "consciente" e o "inconsciente".
E percebemos assim as convergências, os encontros passíveis de serem anotados entre o pensamento de Freud, Lacan e o de outros mestres das ciências humanas, Lévi-Strauss ou Michel Foucault, que também anunciam o fim do homem, a morte do homem — pelo menos no mundo ocidental —, do "eu" cartesiano.
Mas não prolonguemos demasiadamente as considerações filosóficas que o próprio Lacan negligencia, ainda que elas alimentem há dez anos as mais vivas reflexões francesas. Voltemos, antes, a essa existência em parte clownesca e infatuada, de outra. E é a única que nos interessa reter, genial, patética e heróica. Pois que, se a genialidade de Lacan é desde já irreversível, se ele já pertence à história da cultura, ainda que só por causa das rupturas, das descobertas que o seu discurso obscuro e soberbo causou nas gerações de homens de 20 a 40 anos, foi ao preço de um trabalho desesperado, de um combate mortal que Lacan o fez.
Já quase no fim da vida, esse incorrigível viajante quis ir ainda mais longe em sua formalização. O modelo linguístico não mais lhe parecia suficientemente sutil ou rigoroso para dar conta dos meandros do discurso do inconsciente, e ele passou a formalizar o inconsciente segundo o modelo matemático. Lacan já estava velho, e sobretudo cansado. Seus seminários eram dados cada vez com mais dificuldade. Continuavam sendo seguidos por um núcleo de fiéis, mas nada que se comparasse às multidões extasiadas dos anos 70.
Não assisti a nenhum deles, mas ouvi repercussões. Agora, Lacan subia ao estrado, desenhava em um quadro-negro gráficos, fórmulas matemáticas de uma aridez cada vez mais austera. Já não falava quase, ficava por muito tempo parado diante dos seus gráficos como que paralisado ou fulminado, tentando avançar, compreender as suas próprias fórmulas, e às vezes — nem sempre — o discurso renascia, soberbo como antes — e depois ele tornava a se calar.
Às vezes, segundo me disseram, durante toda uma longa sessão sequer uma palavra era dita.
Além disso, ele levava sempre nos bolsos cordões de cores diferentes, com os quais montava modelos matemáticos que deveriam reproduzir a topologia do discurso do inconsciente. Mas também com os cordões ele se embaraçava — e uma vez, até, segundo me contou um dos seus mais fiéis adeptos, em um dos últimos seminários que realizou, até com os gráficos ele se atrapalhou, não sabia mais o que pretendia, e lá ficou, mudo, vencido, desfeito. A reação dos seus alunos, espontânea, comovida, foi assegurar-lhe: "Nós o amamos, o amamos muito".
Lacan: talvez, realmente, um homem cheio de traços contestáveis. De um orgulho provavelmente exagerado, como sua violência e seu gosto pelas disputas — mas o gênio é sempre exigente, o gênio é um devorador. E, de qualquer modo, o que desejaríamos guardar disso tudo, no momento em que a sua imensa voz, às vezes balbuciante, se calou para sempre, é a imagem de um velho frágil, que perdeu toda a soberba, parado diante de um quadro-negro com seus cordões coloridos, como uma criança que esqueceu a resposta. Um velho imperador, não decaído, porque ninguém foi mais longe do que ele — mas vencido pelo seu próprio gênio, a quem tudo o que os alunos encontraram para dizer, no fim, foi que o amavam.

FONTE: Site da IPLA

terça-feira, junho 04, 2013

Questões sobre o tempo



O rio e a flecha do tempo.

O futuro é sempre diferente ou sempre o mesmo?



by: Francis Wolff
Em certo sentido, ele não para de mudar. Já não somos tão jovens quanto éramos ontem ou há dez anos: por isso não vemos o nosso futuro como o víamos ontem ou como pensávamos que seria, há dez anos atrás. O mundo não é mais o mesmo. As promessas de anteontem quanto ao fim da exploração do homem pelo homem, ou as de ontem, quanto ao desenvolvimento sustentável não foram cumpridas. É verdade que todos os dias abrem-se outras esperanças, outras expectativas, outras aspirações. Estamos sempre reinventando o futuro, o nosso ou o do mundo, em função da maneira como nos pensamos no presente e imaginamos o mundo de hoje. Portanto, o futuro não é mais o que era e o que nunca foi. No fundo, o mesmo se dá com o passado. À medida que nos distanciamos dele, recriamos os seus encantos e seus tormentos. De fato, a memória não é melhor guardiã do passado que a imaginação, do futuro. Assim, a visão que temos do século 20 muda sem cessar. A ideia que temos da história varia constantemente. Os povos inventam a cada dia as tradições que imaginam perenes. E nem o passado é mais o que era.
E no entanto, num outro sentido, futuro, presente e passado são, também, sempre os mesmos. Se nos abstrairmos de seu conteúdo concreto para pensarmos seus conceitos, essas três dimensões do tempo têm uma definição imutável: o presente é sempre o que é real; o passado é o que não é mais real e que é, no entanto, necessário, pois ninguém pode fazer com que o que foi feito não tenha sido feito; e o futuro é sempre o que ainda não é real e que é apenas possível.
É este futuro invariável que tentaremos compreender. O que é o futuro? O que é esse estranho tempo que nunca alcançamos? Pois nunca estamos no amanhã e nem mesmo no daqui a pouco: estamos sempre no agora.
Podemos conceber esse futuro imutável de duas formas, porque dispomos de duas imagens para representarmos o tempo. Há o rio e há a flecha. Podemos nos imaginar imersos no “rio do tempo”. O tempo flui à nossa volta sem que possamos paralisá-lo. O futuro está à nossa frente, o passado, atrás. E nós, imóveis, sempre no presente, sem nunca conseguirmos sair deste “agora”. Dizemos coisas como: “E pensar que já estamos no ano de 2012!”. Ou: “ainda nem são quatro horas”. Pensamos, então, que o ano de 2012, o qual ontem, era futuro, é hoje, presente e será amanhã, passado.

Por vezes também acontece que pensemos no tempo como uma flecha. Imaginamos que o tempo passa como um trem que veríamos passar sempre na mesma direção e à mesma velocidade, irreversivelmente, com a única diferença de que o tempo não passa da esquerda para a direita, mas do antes em direção ao depois, irrevogavelmente. O tempo, pensamos então, é isso mesmo, aquilo que faz com que o posterior se siga sempre e necessariamente ao anterior. Pensamos coisas como : 2013 se segue a 2012. Ou: os Jogos Olímpicos do Rio virão depois dos de Londres. Ou ainda: “a batata estava crua, colocamos na água fervendo e, vinte minutos depois, estava cozida”. O que é “antes” precede o que vem “depois” – do crú ao cozido, de 2012 a 2013, etc.

Ora, o extraordinário é que essas duas imagens do tempo parecem nos dizer o contrário uma da outra. No primeiro caso, segundo a imagem do rio, o tempo parece vir do futuro: um dado acontecimento (por exemplo, a Copa do Mundo no Brasil) ainda não existe, é portanto futuro, será; a seguir, esse futuro aproxima-se para finalmente tornar-se presente, ele é; e enfim, distancia-se de nós, torna-se passado, foi. No segundo caso, segundo a imagem da flecha, o tempo parece correr no sentido contrário ao do rio, para o futuro: a Copa de 2010 precede à de 2014; o crú sempre precede o cozido; o nascimento dos seres precede a sua morte; ao envelhecerem, todas as coisas caminham para o seu fim (futuro). De um lado, com o tempo, as coisas parecem mover-se em direção ao passado; de outro, com o tempo, as coisas parecem mover-se em direção ao futuro. É estranho. O tempo seria, então, como o rio, em que nos encontramos ou como a flecha, que vemos passar? O futuro seria o que nos precede ou o que se segue ao nosso tempo? Este paradoxo espantoso talvez nos desvende uma das chaves do mistério do tempo.
 Sinopse do texto apresentado no Congresso O futuro não é mais o que era.
Fonte: Site do Congresso: http://ofuturonaoemaisoqueera.com.br/?

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

  (O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema   “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de m...