quinta-feira, julho 31, 2014

Interface entre Psicanálise e Literatura


Psicanálise e Literatura são dois discursos autônomos e delimitados. Desse modo, procuramos sempre respeitá-los em suas diferenças, tendo como hipótese de trabalho a proximidade entre ambos, proximidade nascida tanto da íntima relação que Sigmund Freud manteve com o texto literário, como do fato de ele revelar-se exímio escritor ao narrar seus casos clínicos à maneira de romances. O texto literário foi seu objeto de estudo, pois nele percebia antecipadamente aquilo que eram os fundamentos de sua descoberta. É o contar das histéricas, e sobre as histéricas que marcam a história, também narrada por Freud, o que firmou a dimensão da fala e da escrita como fundamental para a elaboração do saber psicanalítico.

Partindo da consideração de que existem duas modalidades de construção narrativa em Freud, ele opta por privilegiar uma leitura do texto psicanalítico, que focaliza a “escrita do sintoma” em detrimento do esforço de elaboração e explicação metapsicológicos que buscam acompanhar os postulados da ciência. É o contar, o contar das histéricas e sobre as histéricas que marcam a história, também contada por Freud, da psicanálise. Seria na verdade um romance do sintoma sobre o qual a psicanálise apoia-se e se funda (TEIXEIRA, 2005, p. 116).

Assim sendo, a fala impõe-se como instrumento a ser utilizado pela psicanálise na investigação dos males que afligem aqueles que procuram tal modalidade de cura, e a escrita impõe-se como modo de circunscrever o real que escapa e insiste nesta fala. “Atenção aos detalhes é consubstancial a uma conduta científica preocupada em ouvir as palavras exatas de um paciente, em saborear o discurso preciso de um escritor” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 19).

Os sonhos, os atos falhos, os sintomas, os chistes, as fantasias, enfim as formações inconscientes são produto de um trabalho de elaboração psíquica que lhes confere seu aspecto enigmático e a consequente necessidade de interpretação para serem decifrados. Tais formações têm como função fazer valer um desejo inconsciente, que, por ter sido recalcado, ou seja, excluído dos investimentos narcísicos do sujeito, busca nessas formações satisfação e reconhecimento, uma vez que, segundo Freud, o ser falante a nada renuncia, apenas troca uma satisfação por outra. Tais formações ganham significação através da linguagem e das palavras com as quais o ser falante conta a sua história. É entre essas formações inconscientes que Freud situa a atividade do escritor.

O escrito assim como as formações inconscientes são o retorno do recalcado, portanto é o desejo inconsciente que produz o texto. Em seu trabalho “Escritores criativos e devaneios” (1908/1907), Freud compara o escritor criativo com o homem que devaneia, portanto compara o escrito com o fantasiar. “A linguagem da criança que brinca, do homem que sonha, do ‘louco’ é uma linguagem obscura, que o inconsciente habita e distorce permanentemente” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 36). É a essa linguagem truncada, distorcida que a escuta do psicanalista está atenta, e é também ela que ele encontra nos escritos literários, quando se debruça sobre eles para analisá-los criticamente com os pressupostos psicanalíticos. Assim, tal como as formações inconscientes, no texto literário não é o sentido literal que importa, mas sim a lógica dos significantes que compõem a narração. Uma lógica que só pode ser decifrada com os elementos do próprio texto, claro que aqui nos referimos a uma análise do texto, tendo como ponto de partida a produção de um novo saber que poderá fazer avançar a teoria, e a suposição de que há ali um sujeito, que é o autor, neste caso, uma função e não uma pessoa.

Barthes (1982) diz que uma possível definição da literatura está no fato de ela não ser o sentido literal da frase. Para ele, a literatura é um sistema que não tem a função de comunicar um significado objetivo, exterior e preexistente ao sistema, mas criar somente um equilíbrio de funcionamento, uma significação em movimento. Desse modo, podemos inferir que é isso que confere peso e importância à literatura para a análise crítica psicanalítica, uma vez que a linguagem inconsciente também não tem como função a comunicação, mas sim a possível revelação de um saber sobre o desejo inconsciente.

É na dimensão dessa linguagem distorcida, sem intenção de comunicar que trabalham o escritor e o psicanalista, com a diferença de que o escritor utiliza-se dela constituindo, com o ato de sua escrita, um saber inconsciente que desconhece, enquanto o psicanalista, com sua escuta, objetiva a elaboração do saber sobre as leis que regem o inconsciente. Enquanto o escritor tem acesso singular a essa linguagem que não tem tempo, nem intenção, nem significação pré-determinada, o psicanalista tem que se debruçar por sobre suas investigações clínicas, tendo como sustentação de seu desejo a crença no inconsciente. E é aí que Freud avisa-nos do respeito que devemos ter para com o escritor, uma vez que este pode ensinar-nos muito a respeito do saber inconsciente. “Seus comentários indicam o artista, justamente pelo comércio especial com o inconsciente, como um precursor da psicanálise, que deve colocar-se na posição respeitosa de aprender com ele” (SOUZA, 2002, p. 268).

Ao discorrer sobre as abordagens psicanalíticas do texto literário, Bellemin-Noël (1978) especifica três tipos: (1) aquela abordagem cuja aproximação acontece por intermédio da investigação sobre as categorias: as narrativas exemplares, os tipos e motivo, os gêneros literários, os modelos formais. “Todas essas categorias de fatos que poderíamos batizar de transliterários, na medida em que textos e escritores se valem delas, exploram-nas, recorrem a elas com um modo ou uma intensidade originais” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 53); (2) aquela que ocorre a partir do interesse no autor, em que podemos identificar várias vertentes, dependendo do enfoque da análise. Assim, temos a patografia, a psicobiologia, a psicocrítica, as psicanálises textuais. “Entre aqueles que visaram, e ainda visam ao autor, constatamos que o interesse deslocou-se do indivíduo (digamos: o gênio com sua neurose) para o escritor [...]” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 67), e (3) aquela que pode dar-se por meio da leitura do texto, excluindo o autor. “[...] é uma atividade que se choca com nossos hábitos críticos e que suscita obscuras resistências mesmo naqueles em que menos se espera; todavia, parece que é aí que reside o futuro das pesquisas em ‘psicanálise literária’” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 83).

Souza (2002), ao tecer comentários sobre as complexas relações do psicanalista com o texto literário, sublinha que a psicanálise é uma prática que não se separa da teoria. Desse modo, faz-se necessário que o psicanalista delimite sua prática clínica e sua relação com o texto literário a partir dos pressupostos psicanalíticos. Para situar as diferenças dessas posições assumidas pelo psicanalista, podemos começar a delimitar os textos aí em jogo, pois do que se trata em um caso como noutro são textos cujo sentido é inconsciente. O texto apresentado pelo analisando na prática clínica são seus sintomas, seus sonhos, suas fantasias, aos quais acrescenta elementos em um processo de associação livre, os quais possibilitam a continuidade do discurso, portanto do deslocamento significante. Ao psicanalista cabe fazer valer a barra que separa o significante do significado, isso nos momentos de interrupção das associações, apenas com o intuito de dar continuidade à fala. Portanto o psicanalista nada acrescenta ao material do analisando. Ao dirigir suas associações e seus textos ao psicanalista, o analisando espera deste uma resposta sobre aquilo que o aflige. Assim, é sob transferência que se dá a relação do texto do analisando e o psicanalista.

Diferentemente do texto do analisando, o texto escrito por um autor, sobre o qual se debruça o psicanalista, não tem a presença daquele para realizar as associações. A essa ausência, o psicanalista deve fazer suplência. De acordo com Souza (2002, p. 286) “[...] eis aí o ponto em que as diferentes abordagens, ainda que originadas na psicanálise, podem divergir e seguir caminhos distintos”. Assim, caso ele faça suplência a essa ausência com elementos do próprio texto, temos uma análise crítica que exclui o autor, como a textanálise; se ele busca na biografia do autor, portanto fora do texto literário os elementos para as associações, essa é uma análise cuja abordagem é psicobiografia ou patografia.

Sobre o texto literário, podemos dizer, ainda, que ele não é, ao menos de forma geral, dirigido ao outro na busca de respostas, de um saber. De tal modo, não há constituição de um sujeito suposto saber, pois não é sob transferência que a relação do psicanalista com este texto se dá. Tal como o texto do analisando, ele porta um saber, mas que só poderá ser decifrado a partir de seus próprios elementos. Segundo Souza (2002), enquanto na clínica o psicanalista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que promove o surgimento do sujeito entre um significante e outro, num processo metonímico e metafórico próprio à técnica psicanalítica, o crítico psicanalista ocupa o lugar que podemos aproximar ao lugar ocupado pelo analisando, já que é a ele que cabe fazer suplência a ausência deste nas associações livres. Essa suplência é feita sobre um texto que não é de sua autoria e sim de um outro. Ainda, de acordo com Souza (2002), é a crença de que há no texto literário um saber que pode fazê-lo avançar na teoria psicanalítica, que possibilita ao crítico psicanalista sustentar esse lugar de suplência, que advém da ausência de um suposto sujeito que seria o autor.


Não devemos esquecer que o texto literário é fundamentalmente linguagem, uma linguagem que visa representar o real, portanto não podemos ter a ilusão de que ele possa ter uma única interpretação, porque “O real não é representável, e é porque os homens querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da literatura” (BARTHES, 2007, p. 21). Assim sendo, tanto para o crítico como para o escritor só lhes resta fazer borda ao real pelo simbólico. Trata-se da função criativa do significante, que sempre nos remeterá à outra significação, cujo limite é necessário tanto num caso como no outro elaborar.

By: Leda Mara Ferreiro
In: Entrelinhas, Revista do Curso de Letras – Univ. Vale do Rio dos Sinos

Referências
BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007. 95 p.
BELLEMIN-NÖEL, Jean. Psicanálise e Literatura. Tradução de Álvro Lorencini e Sandra Nitrini. São Paulo: Cultrix, 1978. 101 p.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio. Tradução sob a Direção-Geral e Revisão Técnica de Jayme Salomão. In: _____. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. IX, 1969. 281 p.
SOUBBOTNIK, Olga Maria M. C. Souza. A psicanálise e as letras. In: MORAES, Alexandre (Org.). Modernidades e pós-modernidades: literatura em dois tempos. Vitória-ES: Edufes, 2002. p. 264-291.
TEIXEIRA, Leônia Cavalcante. O lugar da Literatura na constituição da clínica psicanalítica de Freud. Psyche (São Paulo), São Paulo, v. 9, n. 16, dez. 2005. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382005000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 25 abr. 2011.


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