quarta-feira, maio 13, 2015

Psicanalise e Arte



Freud e a arte


João A. Frayze-Pereira

“Não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo (…). Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte (…). Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito. Onde não consigo fazer isso, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer.” É com tais palavras que Freud (1914) se dirige aos seus leitores, tentando assegurar indulgência para o resultado de suas incursões no campo das artes. Na posição de espectador, confessa seus limites e suas afinidades estéticas, sugerindo uma diferença de estatuto entre as artes que constituem os pólos de referência da Psicanálise – literatura e artes plásticas.

Tragédia e pintura
Nascida entre a medicina e a literatura, a Psicanálise tem lugar garantido no campo da construção ficcional, encontrando na tragédia uma chave para o trabalho de interpretação, uma vez que ela já oferece uma representação privilegiada do que é posto em jogo em uma Psicanálise: a relação do desejo com a castração (Lyotard). É diferente a situação da pintura. No pensamento de Freud, a questão principal é a seguinte: a tela, assim como uma cena onírica, representa um objeto ou uma situação ausentes que, censurados, só se dão a ver por meio de seus representantes simbólicos.

Como o sonho, o objeto plástico é pensado segundo a função de representação alucinatória e de ludíbrio. Aproximar-se desse objeto com palavras que permitem a apreensão de seu sentido significa dissipá-lo, assim como a conversão da imagem onírica em discurso conduz a significação para o espaço da racionalidade, rasgando o véu das representações sob o qual essa significação se ocultava. O objeto plástico, enquanto construção muda e visível, situa-se no espaço de realização imaginária do desejo. E é nisto que reside a função da arte, conforme aparece no ensaio Escritores Criativos e Devaneio (1908), quando Freud distingue dois componentes do prazer estético: um prazer propriamente libidinal que provém do conteúdo da obra à medida que esta nos permite realizar nosso desejo (o que fazemos por identificação com o personagem ou com algum elemento do assunto tratado na obra) e um prazer proporcionado pela forma ou posição da obra que se oferece à percepção não como um objeto real, mas como uma espécie de brinquedo, de objeto intermediário, a propósito do qual são permitidos pensamentos e condutas com os quais o espectador pode se deleitar sem auto-acusações nem vergonha.

Essa função de desvio com relação à realidade e à censura é uma característica das obras de arte. E, considerando que o interesse de Freud pela arte relaciona-se à leitura dos significados reprimidos e inconscientes, o trabalho artístico é entendido como uma atividade de expressão sublimada de desejos proibidos. E o artista, nessa medida, é concebido como um ser talentoso o bastante para transformar os impulsos primitivos, sexuais e agressivos, em formas simbólicas, isto é, culturais. Como os sonhos e os jogos de linguagem, o trabalho artístico facilita a expressão, o reconhecimento e a elaboração de sentimentos reprimidos, tanto para os artistas quanto  para os espectadores que, por sua vez, compartilham com os primeiros a mesma insatisfação com as renúncias exigidas pela realidade e, por intermédio da obra, a experiência estética. Assim, o vínculo entre psiquismo e arte pode chegar a ser concebido de um modo tão direto ou imediato que a singularidade da obra é perdida de vista, ao mesmo tempo em que o psiquismo passa a ser simplesmente ilustrado pela obra.

A partir dessa concepção de arte, duas são as perspectivas analíticas possíveis: privilegia-se o conteúdo, isto é, o motivo na pintura, e compreende-se o enquadramento plástico, conforme a função representativa, como um suporte atrás do qual se desenvolve uma cena inacessível; ou, então, busca-se, escondido sob o objeto representado, uma forma supostamente determinante do imaginário do pintor. Entretanto, através dessas análises, corre-se o risco de identificar efeito estético e efeito narcótico. Se a forma estética é uma espécie de véu destinado a subornar as defesas do destinatário, somos obrigados a admitir, paradoxalmente, que o efeito estético é anestésico (Thévoz).

E, nesse sentido, no tocante à ordem social, tal visão da arte é conservadora.

Psicanálise e arte moderna
Não é um exagero pensar que tudo o que importa em matéria de pintura, pelo menos após Cézanne (1839-1906) – ao contrário da facilitação do adormecimento da consciência e da realização do desejo inconsciente do espectador –, é produzir no suporte uma espécie de análogo do próprio inconsciente, suscitando inquietude, revolta, perplexidade, interrogação. Desde o começo do século 20, a situação das obras parece não mais satisfazer as condições propostas por uma estética derivada de Freud. E isto porque o sinistro e o vazio descaradamente assaltam as formas. Se, ao ser comparada à arte clássica, a arte moderna mostra-se diferente é porque a angústia a perfura, subvertendo a sua função: a obra desublima as formas culturais, abrindo-as às forças disruptivas. E talvez seja esta uma razão pela qual Freud suspeitava da arte de seu tempo, contrária às suas convicções. Porém, se a análise freudiana parece inadequada à pintura é que não só a pintura diferenciou-se, mas no próprio tempo dos escritos freudianos (1895-1938), a arte já mudara de maneira e de temática.

Principalmente com as vanguardas, o espaço pictórico construído no Quattrocento decai e com ele a função da representação que ocupava o centro da concepção freudiana da arte. Assim, compreender a arte moderna com a noção de representação e sua correlata – a sublimação – é ignorar a modernidade das artes. Ora, desde a primeira década do século 20, a Psicanálise coexiste com o modernismo. As obras de Klimt, Schiele, Moser e Kokoschka convulsionaram a Viena moderna de Freud, embora este nunca tenha se referido a tais artistas e nem mesmo a algum outro seu contemporâneo.

E, no entanto, é possível visualizar algumas aproximações entre arte moderna e Psicanálise: o fascínio pela origem e o valor atribuído aos sonhos, às fantasias e à sexualidade; a sensibilidade à mulher, à criança e ao louco; a reflexão sobre o estranho, a alteridade e a intersubjetividade. Além disso, os surrealistas inspiraram-se na Psicanálise para elaborar suas ideias no campo visual e muitos outros incorporaram termos psicanalíticos em seus próprios discursos críticos como, por exemplo, repressão, sublimação, fetichismo… E, mesmo que a compreensão da arte tenha se diferenciado com os chamados pós-freudianos, a tese da leitura simbólica permanece, como se a obra de arte fosse sempre análoga ao sonho a ser decifrado, como se ela fosse a codificação de um enigma ou a representação de complexos estados mentais a serem decodificados. Trata-se de um modo de interpretar a arte que curiosamente pode se aproximar da crítica moderna da arte.

Psicanálise como perspectiva crítica
Diferentemente da crítica moderna, entretanto, na vertente inaugurada por Baudelaire que põe o crítico como intérprete entre público e artistas, a crítica da arte contemporânea não se aproxima das obras sabendo o que elas são, pois tais obras resistem à crítica armada de valores estéticos pré-estabelecidos para interpretá-las e legitimá-las como arte. Nesse sentido, um aspecto importante da crítica contemporânea é a abertura a outras perspectivas com origens diversas – na Filosofia, nas ciências humanas e até nas ciências naturais. E muitos dos estudiosos que contribuem para esse campo não se consideram especialistas em estética, mas, antes, filósofos, antropólogos, teóricos da linguagem e, evidentemente, psicanalistas. No caso da Psicanálise a questão é particularmente interessante porque, no século 20, constatamos a emergência de um sentir definido no âmbito da afetividade e da emoção que não se deixa reconduzir com facilidade às referências clássicas da estética, desenvolvidas na passagem do século 18 para o 19. Nessa medida, Freud é considerado um autor importante pela crítica de arte contemporânea.

Com efeito, considerando que o discurso psicanalítico não é normativo e que a Psicanálise compatível com a arte não pode ser “aplicada”, mas implicada – isto é, derivada da arte ou engastada nela, pois não é uma forma pré-moldada a se aplicar à matéria exterior, não é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas exigências teórico-conceituais –, a Psicanálise reivindicada pelas artes não é método de investigação da cultura, mas um modo de pensar que busca escapar da repetição ao infinito daquilo que teoricamente já se sabe. É a esse modo de pensar inventado por Freud que os analistas são obrigados a se referir, se pretendem estar fazendo Psicanálise e se pretendem expressar os sentidos de uma obra – clássica, moderna ou contemporânea.

A obra no lugar do analista
São basicamente dois os estudos de Freud que abordam as artes plásticas – Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) e Moisés de Michelangelo (1913). Se, no primeiro, Freud já tentava operar a partir do cruzamento entre dois pontos de vista, o endopoiético e o exopoiético – isto é, o que considera os constituintes internos à obra e o que considera os fatores provenientes do contexto que a sustenta –, na leitura do Moisés, a primeira perspectiva fica mais clara, aprofundando o campo compreendido pelas estruturas subjetivas do artista que não se confundem com os dados biográficos do criador. As estruturas subjetivas não são da ordem dos acontecimentos, mas resultam da transformação das relações entre exterior e interior. Nesse sentido, o crítico que toma o partido das estruturas subjetivas não pode excluir de sua pesquisa sua própria estrutura subjetiva (André Green). E, devido à implicação do sujeito no objeto, a interpretação será sempre arriscada, pois o intérprete está livre de um lado exatamente porque está ligado ao outro, podendo acontecer que as descobertas afetem sua relação com seu próprio inconsciente. E talvez seja este o tributo a ser pago por esta transgressão epistemológica mediada por um outro – o universo oculto do artista implicado na obra.

Quando se trabalha com obras de arte, é preciso reconhecer este risco e aceitá-lo. No entanto, não é fácil manter-se aberto à alteridade que nos interroga, uma vez que as obras estão sempre a exigir de nós criação para delas termos experiência. É uma experiência propriamente estética que Freud elabora na relação com a peça de Michelangelo. Livre de todo jogo de projeções teórico-conceituais, Freud se deixa guiar pela obra ao analisar os seus detalhes plásticos e a sua fortuna crítica, dispondo-se a uma percepção nova: a obra como momento de uma história invisível a reconstruir. E, a partir da hermenêutica formada no campo entre seu olhar e a obra, rompe com a ideologia artística da verdade universal, fixada anacronicamente. Diferente foi seu trabalho com Leonardo da Vinci. Embora a estética da criação esteja pressuposta, o artista não é tratado como “divino”, mas como um homem comum. Nesse caso, não é a estética a questão principal, mas a temática da vida.

O que Freud faz é apontar para a troca contínua entre passado e futuro, mostrando que cada vida sonha enigmas cujo sentido final não está fixado em parte alguma, e exige liberdade criativa para a fiel retomada de si mesma. É, portanto, um equívoco eleger o Leonardo como modelo da aproximação psicanalítica das artes plásticas. Ao contrário, é a análise do Moisés que legitima essa relação, levando o analista a repensar noções constituídas no campo da interpretação: o contato com a obra suscita no espectador questões a analisar. Mas, apesar de diferentes, os dois ensaios contestam o falado conservadorismo de Freud. Ao tratar um gênio clássico como homem comum, nosso autor reafirma a vocação da Psicanálise para a subversão do instituído.

E, com o ensaio sobre a escultura, quase meio século antes de a crítica ser sacudida com a tese de Duchamp – “são os espectadores que realizam as obras” –, Freud dá seus próprios passos na linha da estética da recepção. Com isso, a Psicanálise, talvez à revelia de seu inventor, entra dignamente no campo da crítica contemporânea, oferecendo às obras um modo de pensar que, como a arte, busca transcender a familiaridade das formas culturais.

Referências bibliográficas
FREUD, S. Escritores criativos e devaneio (1908).  Obras Completas.  Rio de Janeiro, Imago,1970, vol. IX, ps. 135-143.
FREUD, S. O Moisés de Michelangelo (1914).  op.cit., vol. XIII, ps. 249-280.
FREUD, S.  Leonardo Da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910).  op.cit., vol. XI, ps. 55-124.
GREEN, A. Revelações do inacabado. Rio de Janeiro, Imago Ed. Ltda, 1994.
LYOTARD, J.-F.  Freud selon Cézanne. Des dispositifs pulsionnels. Paris, Christian Bourgois,1980, ps.67-88.
THÉVOZ, M. Art, folie, graffiti,LSD,etc. Suisse, Editions de l’Aire, s/d.


João A. Frayze-Pereira
é professor, livre docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Membro da
Association Internationale des Critiques d’Art (AICA). Publicou, entre outros, Olho d’Água. Arte e Loucura em Exposição (Escuta / Fapesp, 1995).

Fonte: Revista Cult - online



terça-feira, maio 05, 2015

Roland Barthes - Fragmento de uma AULA




AULA INAUGURAL DA CADEIRA DE SEMIOLOGIA LITERÁRIA DO COLÉGIO DE FRANÇA 
pronunciada dia 7 de janeiro de 1977

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Uma outra alegria me vem hoje, mais grave porque mais responsável: a de entrar num lugar que pode ser dito rigorosamente: fora do poder. Pois se me é permitido interpretar, por minha vez, o Colégio, direi que, na ordem das instituições, ele é como uma das últimas astúcias da História; a honra é geralmente uma sobra do poder; aqui, ela é sua subtração, sua parte intocada: o professor não tem aqui outra atividade senão a de pesquisar e de falar — eu diria prazerosamente de sonhar alto sua pesquisa — não de julgar, de escolher, de promover, de sujeitar-se a um saber dirigido: privilégio enorme, quase injusto, num momento em que o ensino das letras está dilacerado até o cansaço, entre as pressões da demanda tecnocrática e o desejo revolucionário de seus estudantes. Sem dúvida ensinar, falar simplesmente, fora de toda sanção institucional, não constitui uma atividade que seja, por direito, pura de qualquer poder: o poder (a libido dominandi) aí está, emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora do poder. Assim, quanto mais livre for esse ensino, tanto mais será necessário indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar. Esta interrogação constitui, a meu ver, o projeto profundo do ensino que hoje se inaugura.

É, com efeito, de poder que se tratará aqui, indireta mais obstinadamente. A “inocência” moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico, que ele se insinua nos lugares onde não o ouvíamos de início, nas instituições, nos ensinos, mas, em suma, que ele é sempre uno. E no entanto, se o poder fosse plural, como os demônios? “Meu nome é Legião”, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes “autorizadas”, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância. Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam de nós, intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder; mas nossa verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um combate fácil: pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo estado de coisas. A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é o parasita de um organismo transsocial, ligado à história inteira do homem, e não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.

A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele obriga a dizer. Em nossa língua francesa (e esses são exemplos grosseiros), vejo-me adstrito a colocar-me primeiramente como sujeito, antes de enunciar a ação que, desde então, será apenas meu atributo: o que faço não é mais do que a consequência e a consecução do que sou; da mesma maneira, sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos; do mesmo modo, ainda, sou obrigado a marcar minha relação com o outro recorrendo quer ao tu, quer ao vós; o suspense afetivo ou social me é recusado. Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.

Vou citar um dito de Renan “O francês, Senhoras e Senhores, dizia ele, numa conferência, nunca será a língua do absurdo; também nunca será uma língua reacionária. Não posso imaginar uma reação séria tendo por órgão o francês.” Pois bem, à sua maneira, Renan era perspicaz; ele adivinhava que a língua não se esgota na mensagem que engendra; que ela pode sobreviver a essa mensagem e nela fazer ouvir, numa ressonância muitas vezes terrível, outra coisa para além do que é dito, superimprimindo à voz consciente, razoável do sujeito, a voz dominadora, teimosa, implacável da estrutura, isto é, da espécie enquanto falante; o erro de Renan era histórico, não estrutural; ele acreditava que a língua francesa, formada, pensava ele, pela razão, obrigava à expressão de uma razão política que, em seu espírito, só podia ser democrática. Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.

Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder. Nela, infalivelmente, duas rubricas se delineiam: a autoridade da asserção, o gregarismo da repetição. Por um lado, a língua é imediatamente assertiva: a negação, a dúvida, a possibilidade, a suspensão de julgamento requerem operadores particulares que são eles próprios retomados num jogo de máscaras linguageiras; o que os linguistas chamam de modalidade nunca é mais do que o suplemento da língua, aquilo através de que, como uma súplica, tento dobrar seu poder implacável de constatação. Por  outro lado, os signos de que a língua é feita, os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua. Assim que enuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo: não me contento com repetir o que foi dito, com alojar-me confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito.

Na língua, portanto, servidão e poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de liberdade não só a potência de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do impossível: pela singularidade mística, tal como a descreve Kierkegaard, quando define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda palavra, mesmo interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da linguagem; ou então pelo amem nietzschiano, que é como uma sacudida jubilatória dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama de “capa reativa”. Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.


TEXTO COMPLETO IN: 

http://copyfight.me/Acervo/livros/BARTHES,%20Roland.%20Aula.pdf

A CLÍNICA HOJE: OS NOVOS SINTOMAS

  (O) Curso Livre (da) Formação chega ao 23º Módulo abordando o tema   “A clínica hoje: Os novos sintomas” e acontece nos dias 01 e 02 de m...