quinta-feira, setembro 24, 2015

Sobre a Timidez



Embaraço, humilhação e transparência psíquica: 
O tímido e sua dependência do olhar


Refletiremos, aqui, sobre algumas características do sujeito cuja principal queixa gravita em torno da timidez — exatamente aquele que fica paralisado diante do paradoxo de ser supervisível ou de ser invisível, de ter uma atitude voyeurista ou exibicionista diante do outro, de ser invadido pela mirada de qualquer um ou de ser completamente opaco a ela, de nunca poder ser visto a partir do ângulo correto. Este sujeito expressa de modo paradigmático o sentimento de insuficiência narcísica diante do olhar, insuficiência articulada a um grau intenso de dependência. O dito tímido depende em larga medida de um olhar privilegiado para ter acesso aos principais parâmetros a respeito de si mesmo. Nosso intuito é discutir sobre as vicissitudes desse olhar, sobre a relação de dependência nele implicada e sobre algumas formas pelas quais essa dependência se estabiliza e se constrói. Em função de alguns fatores da cultura atual (EHRENBERG, 1998; GIDDENS, 2002; GOULEJAC, 1996; VERZTMAN, 2005; PINHEIRO, VERZTMAN, VENTURI & BARBOSA, 2006), tais como o esvaziamento de alguns predicados subjetivos correlacionados a ideais coletivos, a dificuldade de se relacionar com o desejo do outro através de uma atitude interpretativa, ou mesmo os limites contemporâneos para construir uma atividade imaginativa que prescinda do referente à fisicalidade, o olhar se torna o ponto de partida e o ponto de chegada da atitude avaliativa sobre si mesmo e sobre o outro.

Procurarei, ao longo do texto, demonstrar que os sujeitos implicados em nossa investigação encontram saídas vacilantes para impasses na dinâmica do olhar, pagando o preço do embaraço, da humilhação ou da transparência psíquica. Muitas vezes essas três características podem ser observadas em conjunto, embora o mais comum seja a conjugação da sensação de transparência com uma das outras duas. Esta reflexão tem como base uma pesquisa clínica realizada pelo Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (Nepecc, www.psicologia.ufrj. br/nepecc), coordenado por Teresa Pinheiro, Regina Herzog e Julio Verztman, acerca do atendimento psicanalítico a pacientes que apresentam o diagnóstico psiquiátrico de fobia social. Sugiro a consulta ao material já produzido por este núcleo de pesquisa (VERZTMAN, 2005; PINHEIRO, VERZTMAN, VENTURI & BARBOSA, 2006; VERZTMAN, HERZOG & PINHEIRO 2010; VERZTMAN, HERZOG, PINHEIRO & FERREIRA, 2012; VENTURI & VERZTMAN, 2012) para que o leitor possa se familiarizar com o uso do referido diagnóstico psiquiátrico na aproximação com o tema da timidez. Utilizamos as palavras tímido ou timidez apenas para nomear uma característica presente em todos os pacientes atendidos por nossa equipe. Este termo foi pinçado de seus discursos porque respeita um modo de autodesignação no que tange a uma qualificação de si mesmo e de seus sintomas.

 “Tímido” ou “timidez” não descrevem um universo psicopatológico restrito que faça sentido para a psicanálise. Este sujeito que se queixa de timidez,  entretanto, nos oferece elementos importantes para estudarmos questões narcísicas relacionadas à problemática do olhar e às suas formas de dependência.

É necessário, antes de tudo, informar que chegamos a este universo teóricoclínico a partir de um estudo anterior sobre a vergonha. Partindo da sugestão freudiana presente em Luto e melancolia (FREUD, 1917/1993), segundo a qual o melancólico é capaz de afirmar as piores coisas de si sem experimentar esta emoção, nos servimos de autores pós-freudianos de correntes heterogêneas (CICCONE & FERRANT, 2009; GREEN, 2003; MILLER, 2003; TISSERON, 1992; ZYGOURIS, 1995), a fim de explorar os aspectos narcísicos da vergonha (VERZTMAN, 2011). O que se segue está em continuidade com esta discussão.

As vizinhanças emocionais da vergonha                                
No projeto-piloto desta pesquisa, que envolveu o atendimento a apenas dois pacientes com o diagnóstico de fobia social — antes da oferta de atendimento aos demais — duas possibilidades de experiência da vergonha chamaram a atenção: a vergonha vivida como embaraço e a vergonha vivida como humilhação. O paciente 1 (vergonha como embaraço) conseguia nomear alguns de seus medos diante da exposição ao olhar do outro, conseguia evitar situações nas quais poderia sentir vergonha. O motivo de sua vergonha lhe escapava inteiramente, e não percebia qualquer animosidade intencional no outro, mesmo que isto fosse constantemente temido. O paciente 2 (vergonha como humilhação), ao contrário, era muito mais retraído, desconfiado, não conseguia sequer definir o que sentia e se precavia permanentemente da possibilidade palpável de sofrer humilhação intencional por parte do outro. Para a distinção entre embaraço e humilhação, seguiremos alguns apontamentos de De La Taille (2002). Este autor, pesquisador no campo da psicologia do desenvolvimento moral nos fornecerá parâmetros descritivos relevantes para nossa discussão.

Embaraço
Em português e em francês (mas não em inglês) há certa sobreposição entre vergonha e embaraço, mas mesmo assim há diferenças importantes. O embaraço em geral é considerado a vertente menos intensa e judicativa do universo semântico da vergonha. O embaraço é a sensação de desconforto que ocorre quando alguém se sente exposto (DE LA TAILLE, 2002, p.75-76). Ele denuncia os sofrimentos correlacionados com toda a trama relacional da exposição, tais como estar na posição de objeto, não ter qualquer controle sobre o que está sendo visto, sofrer as consequências da passividade diante do outro, suportar com dor a reflexividade própria da relação com o olhar do outro, entre outros fatores.

O desconforto com a exposição, entretanto, é um aspecto comum entre a vergonha e o embaraço:

 “Longe de ser mera questão de definição, veremos que o sentimento de vergonha decorrente do simples ‘ser objeto para outrem’ (e não somente do ‘ser objeto desprezado por outrem’) é importante para compreender o referido sentimento, notadamente no seu desenvolvimento durante a infância.” (DE LA TAILLE, 2002, p.77)

O simples fato de se sentir objeto do olhar de alguém pode produzir este sofrimento, mesmo que o olhar alheio não traga um juízo negativo. Este é um aspecto fundamental para o que caracterizamos em nossa pesquisa como o tímido embaraçado. Ele procura permanentemente antecipar o perigo do julgamento negativo e, assim, do desprezo alheio, através de uma forma particular e crônica de angústia (PACHECO-FERREIRA, 2012). Caso contrário, o permanente embaraço se tornaria vergonha inconsolável. Isto porque, em comparação com a vergonha, do ponto de vista moral o embaraço não ocupa papel relevante. A vergonha é um passo adiante do embaraço, já que aí ser objeto do olhar de outrem equivale a ser objeto de desprezo de outrem.

De la Taille sugere que o embaraço é uma forma muito antiga de experiência da vergonha. O autor demonstra a indissociabilidade entre consciência de si, consciência da própria perceptibilidade e embaraço como sofrimento produzido pela exposição. O embaraço testemunha aquilo que não é assimilável como perfeição narcísica no desenvolvimento da criança. No processo de separação da alteridade que consolida a estabilização da imagem narcísica, o perigo de ser tomado como objeto do olhar alheio vai se conjugando a outros perigos: ser malvisto e, consequentemente, deixar de ser objeto de estima do outro. O papel do ambiente é fundamental para que estes perigos não sejam negados, ao menos como perigos potenciais, mas também não se tornem ameaçadores a ponto de paralisar o infante no seu gesto espontâneo. É neste sentido que Ciccone e Ferrant (2009) propõem uma diferença entre vergonha experimentada e vergonha sinal de alarme:

 “Numa primeira aproximação, a vergonha sinal de alarme pressente a analidade, a confusão e a ferida narcísica como consequência do risco de perda de amor do objeto. Como sublinhamos, ela veicula a memória afetiva das falhas parciais da afinação entre o sujeito e seu ambiente, ao mesmo tempo que uma saída possível se apoia nesse mesmo ambiente. Nesse tipo de situação atravessada por todos os seres humanos, o fato de ser pequeno, dependente e correndo o risco de desamparo, é constantemente tratado e cuidado pelas capacidades continentes de um ambiente suficientemente atento e atencioso. A vergonha sinal de alarme veicula também os fracassos parciais da aprendizagem da higiene, do controle esfincteriano e de todas as falhas da continência corporal. Essas inevitáveis feridas narcísicas são tratadas ao longo do tempo — mesmo sem serem nunca completamente ultrapassadas — pela colocação em jogo dos autoerotismos e dos processos de interiorização das funções de salvaguarda atribuídas, de início, ao objeto.” (CICCONE & FERRANT, 2009, p.61-62. Tradução livre)

Voltando à nossa discussão anterior, podemos dizer que o embaraço, o qual estamos associando à vergonha sinal de alarme — é um desconforto relacionado ao disparo de um sistema de alarme que mobiliza o psiquismo a se proteger contra feridas que atingiriam o domínio narcísico. Estamos aqui supondo que o embaraço é a parte deste sistema que limita a exposição e a impede de se tornar uma exposição que contraria a imagem idealizada — ou ao menos aceitável — de si. Dessa forma, o embaraço implica um tipo de sofrimento cujo referente não é o rebaixamento da autoimagem, fruto do julgamento alheio, própria das experiências mais típicas de vergonha consumada. O embaraço é a antecipação da vergonha. É a percepção do perigo de sentir vergonha, é uma proteção contra a vergonha. Para que estas “funções de salvaguarda” diante do embaraço — para retomar a expressão de Ciccone e Ferrant — possam se efetivar, é imprescindível o papel do objeto. É o objeto que vai alçar a um futuro indeterminado ou a uma hipótese presente, mas longínqua, a ameaça de expulsão subjetiva que as experiências mais intensas de vergonha encerram.

Não sabemos ao certo os motivos, mas a clínica dos ditos ‘tímidos’ nos coloca diante da suposição de que pode haver hipertrofia do embaraço. Nesse caso, a ameaça da vergonha é tão presente e, ao mesmo tempo, tão pouco inserida em qualquer narrativa ou aspecto integrado do psiquismo, que a vida gira em torno de antecipar e prevenir sua emergência. Há um verdadeiro curto-circuito entre exposição e vergonha, entre o alarme e sua consumação, o qual tem como pano de fundo a fragilidade da proteção proporcionada pelo ambiente. Sempre que o sujeito se expõe a um perigo que não consegue nomear, ou seja, o perigo de vir a sentir uma vergonha irreparável, o simples contato com o olhar do outro que enuncia tal ameaça o paralisa e o empurra para a solidão, um dos contextos capazes de lhes assegurar proteção.

Alguns pacientes nos permitem um vislumbre deste tipo de vivência. O sentimento de vergonha nas relações sociais costuma ser a principal queixa. Uma paciente relata que não gosta de andar na rua ou de ônibus. Não gosta de andar de ônibus porque quando se senta, sabe que as pessoas do outro lado podem vê-la, e fica, neste momento, terrivelmente exposta. Revela o temor de que pensem algo negativo a seu respeito, embora não saiba dizer muito claramente o que elas possam pensar. Suas fantasias quanto ao olhar do outro podem apresentar caráter persecutório, mas estas são pouco elaboradas. Diz apenas que podem que ela tem “cara de boba” ou que é “magrinha”. Imagina com angústia poder, por qualquer motivo, vir a fazer uma cena ridícula, como, por exemplo, levar um tombo e ser motivo de riso. Esforça-se permanentemente para não chamar a atenção alheia de nenhuma maneira, mas sabe que este esforço é infrutífero. Há uma afinidade natural entre si e o olhar invasivo de quem a circunda.

É frequente que esses sujeitos tenham poucas lembranças de infância. Outra paciente, por exemplo, não sabe dizer quando começou a se sentir envergonhada, afirmando que “sempre foi assim”. Após algum tempo de análise, ela propôs uma origem para seu sentimento excessivo de estar exposta.

Certa época, já adolescente, passou a ter que almoçar fora de casa. Foi muito difícil ter que pedir sua própria comida. Estava acostumada ao fato de sua mãe sempre ter providenciado isso por ela. Este breve momento de separação da mãe disparou nesta paciente um sinal de alarme para o perigo de rejeição por parte de qualquer um que cruzasse o seu olhar. Os fatos mais banais eram vividos com ansiedade, ruborização e medo, contando como certo que, na sua fantasia pudessem ser observados por terceiros. Quando discutirmos o tema da transparência psíquica, voltaremos às peculiaridades deste tipo de relação intersubjetiva com a mãe.

Por ora, ressaltamos o embaraço permanente vivido pela paciente quando está fora do alcance do olhar materno. Não supõe nenhuma animosidade clara por parte do outro anônimo que “teima” em avaliá-la; todavia, teme ser tomada por inadequada ou ridícula a qualquer momento. Desenvolve a estratégia de antecipar todos os ângulos nos quais a visão incidiria sobre ela, mas sua incapacidade de construir uma barreira ao que será visível mantém seus sistemas de alarme excessivamente sensíveis.

O embaraço, a princípio medida protetora no que tange a ameaças ao domínio narcísico, se torna um sofrimento permanente para certos tímidos. Este sofrimento é a marca de uma relação com o objeto construída sobre a impossibilidade de prescindir de seu olhar. Estar longe — geralmente do olhar materno — é estar em perigo. Um perigo desconhecido quanto à sua fonte e seu modo de operar. As estratégias criadas para tornar a vida suportável são: permanecer em estado de alerta — vivido como embaraço — ou estar ao abrigo do olhar privilegiado já descrito. Autores como Mc Dougall (1992), com sua descrição do amor materno fusional; Pontalis (1991), através de sua metáfora sobre um tipo de possessão subjetiva que exerce sua dominação a partir de dentro; e Aulagnier (1990), com sua bela proposição de direito ao segredo como condição de pensar, nos fornecem subsídios para compreender um tipo de relação com o objeto materno pautada numa atitude invasiva.

Humilhação
A humilhação, em seu sentido forte, implica o sentimento de ser rebaixado pelo outro. O ato de rebaixar ou o sentimento de ter sido rebaixado produzem a frequente articulação entre vergonha e humilhação. Na vergonha, como vimos, o sujeito se sente rebaixado diante de seus ideais. É uma emoção que pode ser desencadeada quando qualquer membro da comunidade, o qual, aos olhos do sujeito, encarna ou sustenta esses ideais, testemunha a sua queda. Este outro é somente a testemunha, frisamos. A vergonha ocorrerá mesmo que o outro sequer perceba os motivos que levaram o sujeito a ter que se esconder da sua mirada. Ela pode acontecer ainda quando o outro não tem qualquer julgamento negativo em relação a tal imagem. Como já dissemos, na vergonha o outro é apenas o depositário de uma projeção narcísica desvalorizada; ela é o resultado de uma operação na qual o que está em jogo é: o que eu sentiria se pudesse me ver do lugar a partir do qual o outro me vê? Assim, ela é uma emoção referida ao campo do narcisismo porque o olhar do outro tem pouca relevância nesta relação de si a si. O que toma a cena é a maciça projeção sobre este olhar.

Desse modo, uma das condições para que a vergonha se desencadeie é a plausibilidade dessa projeção, ou seja, deve existir alguma afinidade entre a minha projeção e o modo como minha imagem é recebida. Tal plausibilidade se organiza geralmente sobre traços amplos e vagos. O principal deles diz respeito ao fato de o outro ser um membro da comunidade, que acredita nos mesmos valores que o sujeito envergonhado contrariou.

Para retomar o tema do autorrebaixamento presente tanto na vergonha quanto em certos casos de humilhação, podemos dizer: só há vergonha quando o sujeito assume internamente a sua desvalorização. Mesmo quando ela é imposta violentamente a partir de fora, o sujeito envergonhado procura se esconder do campo de visão do outro, porque sabe que sua simples presença pode produzir indignação diante do que ele se tornou após ser coberto pela vergonha. Ele pode então projetar no outro sua própria indignação.

Vejamos agora algumas características diferenciais do sentimento de humilhação. Humilhação implica violência (DE LA TAILLE, 2002, p.78), e violência, neste caso, intencional. O outro não é apenas uma projeção da minha indignação quanto à minha própria imagem, mas é a fonte de uma indignação que me toma a partir de fora. O sujeito se perde do lugar de origem de seu próprio rebaixamento. O outro, por algum motivo enigmático ou completamente fora do campo do sentido, é ativo em retirar coercitivamente os atributos narcísicos articulados a certos valores mantenedores da dinâmica do sujeito com seus ideais. Vergonha e humilhação coexistem quando a violência é extrema a ponto de o sujeito internalizar a imagem negativa imposta como se fosse a sua (DE LA TAILLE, 2002, p.78-79).

Supomos que para a humilhação se tornar vergonha deve haver desequilíbrio entre a natureza da violência vinda do outro e as barreiras narcísicas capazes de proteger o sujeito de incorporá-la à sua própria identidade. O sentimento profundo de vergonha sentido por sobreviventes de campos de concentração evidencia a fragilidade dessas barreiras em situações extremas de violência. No outro lado da balança, percebemos que construções narcísicas frágeis podem favorecer experiências marcantes de humilhação consumada ou medo permanente de ser humilhado. Nestas situações, ser visto pelo outro pode equivaler a ser humilhado ou vir a ser humilhado pelo outro.

Examinemos o que Ciccone e Ferrant (2009) denominam vergonha de ser:

“O trauma narcísico primário relacionado à vergonha de ser é ligado à falha dessa função de eco e de ‘espelho vivo’. O sentimento de continuidade narcísica apresenta um furo, se torna inconsistente. Nessa conjuntura, o objeto não foi ‘psiquicamente ausente’, foi ativamente desqualificante. A função espelho reenvia ao bebê que este está inteiramente preso a uma desqualificação de suas necessidades, isto é, de seu próprio ser. Pode-se dizer, nesse sentido, que a vergonha de ser é uma vergonha primária.” (CICCONE & FERRANT, 2009, p.67-70).

Para estes autores, a vergonha de ser exprime um acontecimento tão primário que só o outro pode sentir vergonha. O sujeito se esconde, mas não consegue saber do que se esconde: ele sabe que o outro é capaz de humilhá-lo pelo simples fato de ser visto, mas perde o contato com o que sente, exprimindo apenas seu aspecto comportamental. Percebemos ressonâncias entre essa descrição e o que caracterizamos como humilhação. Como afirmamos anteriormente, várias formas de fragilidade narcísica podem contribuir para experiências de humilhação consumadas e sua repetição traumática ao longo da existência. Respeitando a suposição de externalidade da vergonha presente no conceito de vergonha de ser, encontramos na clínica sujeitos que não têm acesso ao sentimento de vergonha, mas somente à intenção humilhante vinda de fora. Sabem que o olhar do outro é perigoso, apesar de não saberem qual é o perigo.

Este é um ponto comum que aflige tanto tímidos embaraçados quanto tímidos humilhados. Ambos temem permanentemente o que o outro possa ver diante de sua imagem, sem representar — diferentemente do sujeito envergonhado — o que precisa permanecer escondido. Diante dessa impossibilidade de decidir, procuram se defender do olhar escondendo-se por inteiro. Mas enquanto o sujeito embaraçado coloca todas as suas fichas em seus sistemas de alarme, acreditando que estes poderão controlar minimamente a exposição e, por conseguinte, a consumação de uma vergonha insuportável, o sujeito humilhado já não alimenta essa esperança. Ele conhece a intenção do outro de humilhar, embora não consiga estabelecer qualquer narrativa que envolva a si como ponto de amarração dessa intenção. A única coisa que conhece do outro é a sua capacidade de humilhá-lo — uma capacidade de humilhação sem história. O si mesmo se torna “aquele que foi e será permanentemente humilhado”. As narrativas para essa humilhação são prosaicas, demonstrando certa pobreza na atitude predicativa do eu.

As queixas desses pacientes, a duras penas formuladas em análise, nos dão uma pálida ideia do sentimento de humilhação como resultado de parâmetros frágeis para dar contorno à localização de si diante do olhar. O significado particular com que usam a palavra “desconfiança” ou o modo como um deles descreve seu hábito de “estudar as pessoas” para formular julgamentos que, por vezes, se revelam precipitados e equivocados, expressa um tipo particular de relação com a alteridade. Esse hábito de estudo excessivo do outro, que toma por inteiro suas existências, os impede de se aproximar de outras pessoas, em decorrência do medo de se decepcionar com elas. Vivem para antecipar a possibilidade do pior.

Um matiz merece comentário: não se trata de um mecanismo obsessivo. A antecipação do pior é pura repetição da única experiência que encontra sentido em suas histórias, é o único saber que conseguem manejar. Sabem que, do outro, devem esperar o pior. Mais uma vez, aqui há pouco espaço para a dúvida e sua característica obsessiva. Ao examinarmos suas histórias, percebemos que nas suas relações mais iniciais o objeto não foi capaz de contribuir para a integração e a internalização de experiências vividas como violentas. O outro, externalizado e anônimo, se tornou uma mistura de receptáculo e fonte de toda a agressividade.

Um de nossos pacientes refere que as raízes de seu problema se estendem até situações de sua infância e adolescência, nas quais foi vítima de “racismo”, de “rejeição” ou de “injustiças”. A expressão racismo para qualificar as zombarias de colegas pelo fato de usar óculos demonstra a fragilidade de sua narrativa sobre seu sentimento de humilhação. Percebe a hostilidade contra um traço seu como algo que evocaria seu pertencimento a uma suposta raça. O racismo é, em seu vocabulário, uma palavra que aponta para o pior tipo de exclusão violenta vinda de um conjunto particular de seres humanos. Em seu caso, curiosamente, esta exclusão atingiria uma raça relacionada diretamente a um instrumento para poder ver o que os outros veem — a raça daqueles que não possuem a faculdade de enxergar e se proteger do que enxergam. Uma raça que, por outro lado, precisa de uma película para mediar o que se percebe do olhar que lhe é dirigido.

O paciente associa mais tarde que raízes anteriores de seu sentimento de humilhação remetem a ter nascido com problemas na visão. Acredita que este era o motivo para a rejeição por parte de crianças que se recusavam a brincar ou estar com ele. Em ambas as situações mencionadas, percebemos sua solidão ao enfrentar experiências de rejeição e exclusão. O sentimento permanente de humilhação é o único resquício de um tipo de relação em que o objeto se ausentou de sua função de mediação e foi ativamente desqualificante.

A título de recapitulação: ao contrário da vergonha — quando “outro com intenção de rebaixar” nem sempre existe — na humilhação há sempre esse outro. É comum a associação entre vergonha e humilhação se o sujeito humilhado internalizar os valores de quem o humilhou. Nesse caso, o sujeito humilhado aceita a imagem negativa imposta a partir de fora, de forma violenta. Se na vergonha algo é desnudado em função de alguma ação ou característica do sujeito, na humilhação essa interioridade exposta é arrancada violentamente, rompendo a dimensão de segredo, fundamental para a relação com o outro.

Para compreendermos melhor como o olhar do outro traz permanentemente o risco de romper a dimensão do segredo, constituinte no psiquismo da construção da interioridade, passemos ao exame da transparência psíquica.

 A transparência psíquica
Numa primeira pesquisa clínica, que incidiu sobre a clínica de sujeitos melancólicos e outros sujeitos portadores de lúpus eritematoso sistêmico em atendimento analítico (VERZTMAN & PINHEIRO, 2012), já era evidente o tema da transparência subjetiva como índice de fragilidade narcísica. Os sujeitos melancólicos estavam vinculados a um ideal de transparência que apareceu sob a forma da aspiração a uma linguagem unívoca, límpida e assim transparente para qualquer um que se utilizasse de seus signos. Este era o aspecto linguístico da transparência. Outro aspecto — que podemos denominar imagético — do ideal de transparência ocorreu sob a forma da evocação de imagens para o analista que não comportassem enganos, numa situação na qual seria impossível os dois não enxergarem a mesma imagem do mesmo modo.

Podemos dar como exemplo desta aspiração à transparência a fala de um paciente melancólico (VERZTMAN, 2012): “A verdade é uma só, como uma identidade, um rótulo num pote em que está escrito — açúcar”. Este mesmo paciente, no primeiro encontro com sua analista, trouxe consigo uma pasta contendo receitas médicas, exames laboratoriais, textos de jornal e muitos outros documentos. Ali ele dizia que “estava tudo seu” (devidamente catalogado), “a história”, e apontava para a importância da sua ciência sobre o que trazia. Ele precisava se assegurar de que sua analista ia “olhar” para tudo aquilo, pois tinha uma necessidade (embora com pouca esperança de realizá-la) de “ser visto como um todo”. É somente ao se tornar transparente que ele adquire alguma confiança em ser percebido. Ele só podia acreditar no que percebia de si mesmo se sua analista olhasse para “a história” exatamente do mesmo modo que ele.

Percebemos outro aspecto da aspiração à transparência — o qual podemos denominar aspiração a ser visto por dentro — nesta passagem do tratamento de uma paciente lúpica (VERZTMAN & PINHEIRO, 2012) Ela pergunta à sua analista: “A senhora está notando alguma coisa?”. Visivelmente decepcionada pelo fato de a analista não conseguir notar o que ela desejava que tivesse sido percebido, a paciente arregaçou as mangas da blusa e exibiu o punho até então coberto, dizendo: “perdi o meu relógio”. A paciente em questão estava testando a capacidade da analista de ver o que os olhos não podiam ver. E de ver o que não podia ser visto. A visão estava pouco integrada a outras dimensões capazes de conferir existência a algo tão complexo como ter um interior. Apenas se os limites do corpo não fossem barreira ao olhar, a existência desse espaço interior invisível poderia estar assegurada.

É importante notar que a aspiração à transparência nestas formas distintas não se relaciona com a emergência de angústia ou significa qualquer tipo de ameaça. A aspiração à transparência é um apelo ao reconhecimento do outro, expressa a esperança de vir a ser percebido. Isto não ocorrerá do mesmo modo na timidez.

“A timidez, essa angústia social, indica que todos ficam sempre informados. O ser é transparente sob o olhar do outro; o castigo está a caminho, apenas a fuga pode salvar [...]. Como cada um de nós já notou, não há algo mais visível que um tímido. Enrubescendo, gaguejando, fugindo ou procurando a melhor a melhor tática de evitar os encontros [...].” (AVRANE, 2007, p.143. Tradução livre)

Entre os tímidos há também um desejo de transparência e um ideal de transparência, construídos na relação com adultos privilegiados, em relação aos quais a barreira do olhar estaria esmaecida. Uma paciente afirma não ter segredos com sua mãe. Ela e sua mãe dormem na mesma cama, apesar de a paciente ter seu próprio quarto. Há um pequeno detalhe na ausência de segredos entre as duas: ela nos informa não conseguir esconder nada da mãe; diz que ficaria muito aflita caso guardasse algum segredo.

É nessa relação de transparência mútua que ela encontra alguma segurança. Segurança baseada na submissão à necessidade da mãe de conhecê-la “por dentro e por fora”. Segurança de um olhar penetrante que a protege, ao preço de ser sua única garantia contra os riscos de outro olhar que, encontrando barreiras para enxergá-la por inteiro, pode acabar por humilhá-la ou ridicularizá-la. Desse modo, ao contrário dos pacientes de nossa pesquisa anterior, já referidos, os tímidos (sobretudo os que sofrem de embaraço) foram alvo de uma promessa: se estes adultos pudessem ver através deles algo que ninguém mais poderia ver, a segurança desse olhar privilegiado os protegeria dos perigos do olhar externo.

O investimento desejante do outro tem no ideal de transparência sua forma mais acabada de perfeição narcísica. Para ser desejado pelo outro é preciso ser transparente ao seu olhar. Há uma confluência entre o campo do desejo e o fato de ser permanentemente observado. É através desta forma particular de investimento escópico que o tímido encontra algum parâmetro para a experiência de ser desejado. Note-se que ao contrário do sujeito melancólico, o sujeito tímido foi alvo de maciço investimento parental. É fácil perceber que logo esse idílio de comunhão de olhares vai encontrar seu fim: o olhar do outro vai se bifurcar entre uma função protetora já descrita e uma função persecutória. O perigo da mirada alheia será cada vez mais experimentado.

A impossibilidade cada vez maior de contar com a função protetora do olhar do adulto privilegiado faz com que a sensação de transparência do tímido se espraie pelo mundo, expressando ao mesmo tempo anseio de amor exclusivo do outro e receio intenso de que o outro não corresponda a esse anseio, rejeitando-o e humilhando-o.

Outra paciente diz que tem muito a dizer, o que infelizmente não consegue, sobretudo na presença de mais de uma pessoa. Este aspecto é frequente entre os tímidos. O olhar de “mais de um” os dilacera. Segundo seu relato, ninguém diria que ela é inteligente apenas observando-a, o que ela de fato aguarda. Ela suplica pela segurança de uma mirada que extraísse os seus atributos ideais de uma só vez. Ao invés disso, a opacidade do olhar alheio comum, “a outra pessoa, o mais de um”, a reenvia para o abismo. Na sala de aula, é como se estivessem olhando para ela e pensando: “coitada, ela não consegue”, “o que ela está dizendo?! Não dá para entender nada!”, “quem ela pensa que é?!”. O outro privilegiado não foi capaz de manter sua promessa.

A distância cada vez mais sentida entre proteção pela transparência e a experiência de extensão da transparência a qualquer olhar faz com que o outro “mais de um” se torne cada vez mais um estranho, a quem não posso conhecer, mas que pode (isto é sempre uma pergunta, raramente uma certeza) me conhecer inteiramente na minha transparência e, assim, me julgar.

O tímido se vê permanentemente como um réu num suposto “tribunal do olhar” (AVRANE, 2007, p.160) e evita dar provas aos promotores de que há algo abjeto em seu interior. “Ao tribunal do olhar, o tímido é convidado sem cessar. Suas confissões se tornam um pleito [...]. Tanto as figuras mostradas quanto os gestos ou textos expostos os colocam em evidência. As estratégias não são iguais, mas a necessidade de um julgamento pelo olhar é absoluta” (idem, ibidem. Tradução livre).

O tribunal, entretanto, ocupa cada vez mais espaço em seu mundo e um perigo deve ser fonte de suas precauções: o perigo de ser descoberto. A angústia antecipatória do tímido (PACHECO-FERREIRA, 2012) é fonte privilegiada de mal-estar, uma vez que ele não tem como saber o que deve esconder. Esta forma particular de angústia, como Freud já sublinhara (1917/1993), é uma medida protetora. Está conjugada à necessidade de se mostrar incessantemente e conhecer todos os detalhes do modo como recebe o retorno deste olhar. É também uma forma de apelo desesperado ao reconhecimento: “A timidez cede lugar em seguida à provocação, isto é, a uma forma de procurar no olhar do outro o reconhecimento e nele encontrar a imagem esperada” (AVRANE, 2007, p.161. Tradução livre).

Esta provocação, sempre fracassada, expressa dois sentidos para a transparência psíquica: ser inteiramente acessível à percepção do outro ou, ao contrário, ser invisível.

“O sujeito deseja ser reconhecido como objeto de investimento do outro, teme, porém não possuir os predicados que o outro, supostamente, desejaria que ele tivesse. Resultado: nem quer ser visto nem quer deixar de ser visto. O paradoxo é o cerne do sujeito envergonhado” (COSTA, 2012, p.12).


Para concluir
Procuramos demonstrar, por meio do exemplo do sujeito dito ‘tímido’, que há todo um universo do olhar a ser explorado pela clínica psicanalítica contemporânea. O tímido testemunha a hipertrofia do campo escópico, produzindo certos tipos de sofrimento que qualificamos como embaraço, humilhação e transparência psíquica. Estas modalidades de padecimento interrogam diretamente os limites do olhar para mediar de modo absoluto a relação com a alteridade. Cabe aos psicanalistas descobrir, na clínica singular de cada um, meios de alcançar alguma relativização para o peso da mirada alheia.

Referências:
Aulagnier, P. (1990) “O direito ao segredo: Condição para poder pensar”, in Um intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta. . (2007) Les timides. Paris: Seuil.
CICCONNE, A. & FERRANT, A. (2009) Honte, culpabilité et traumatisme. Paris: Dunod.
COSTA, J. F. (2012) “Os sobrenomes da vergonha: depressão e narcisismo”, in Sofrimentos narcísicos. Rio de Janeiro: Cia de Freud.
DE LA TAILLE, I. (2002) Vergonha: a ferida moral. Petrópolis: Vozes.
EHRENBERG, A. (1998) La Fatigue d’être soi. Paris: Odile Jacob.
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Autor: Julio Verztman
Professor do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica IP-UFRJ; coordenador do Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade (Nepecc); psiquiatra do IpubUFRJ

FONTE: Revista Àgora
http://www.scielo.br/pdf/agora/v17nspe/11.pdf

quarta-feira, setembro 16, 2015

Caso, Ficção, Poesia e Psicanálise






XV Jornada Corpolinguagem
VII Encontro Outrarte
II Jornada de Investigación: Formación de la clínica psicoanalítica en el Uruguay


Apresentação

No ano de 2015, o Centro de Pesquisa Outrarte se propõe interrogar a históriahisteriaa poesia com a qual se faz a história.
No seminário 3, Lacan fala que a obra de Freud está cheia de enigmas, de “pedras de espera”, que a releitura de seus textos sempre trazem algo a mais, diferente daquilo que se aguardava. A historicidade é uma dessas pedras de espera.
Quando Lacan afirma que o sujeito da psicanálise é o sujeito cartesiano do cogito, ele inscreve a psicanálise como um saber moderno, abrindo o espaço para a questão de sua historicidade. Porém, quando procuramos a sua inscrição nos textos psicanalíticos, ahistoricidade parece difratar-se, estilhaçar-se, fragmentando-se em uma multiplicidade de termos: na rememoração – o próprio terreno de partida da psicanálise -, na regressão e na repetição; na representação e no representante-da-representação; na interpretação e na construção; na distinção freudiana entre acontecimento histórico verdade histórica, presente no Moisés; nas escansões do tempo lógico e nos tempos da estrutura; na narrativa, no mito, no romance, na “pequena história” do sujeito.
O ponto de fragmentação, do estilhaçamento, é o inconsciente. Lacan inventava a etimologia – a historicidade – das palavras a partir das vizinhanças homofônicas – história, histeria, estória…-, como formações do inconsciente. A poesia estilhaça a linguagem, e a historicidade se escreve com fragmentos, com pedras de espera, com letras inscritas em uma lógica da escansão e da antecipação:
O fato de [Freud] ter enunciado a palavra inconsciente, não é nada mais que a poesia com a qual se faz a história. Mas a historia, como eu o digo algumas vezes, a história é a histeria. Freud, se experimentou seguramente o que é da histérica, se fantasiou em torno da histérica, isso não é evidentemente mais que um fato de história.
Marx era igualmente um poeta, um poeta que tem a vantagem de ter conseguido fazer um movimento político. Por outra parte, se qualifica o seu materialismo de histórico, isso não carece certamente de intenção. O materialismo histórico é o que se encarna na história. (Lacan, O momento de concluir, lição de 20/12/1977).
Existem várias formas de contar, narrar, relatar uma história. E há formas e formas de iluminar ou alienar um texto pela fala, “mas a história do humano prossegue no texto” (Lacan, A ética da psicanálise, lição de 4 de maio de 1960).
O caso clínico constitui o gênero discursivo privilegiado para a transmissão da/ na psicanálise, e é a unidade mínima que caracteriza seu método de investigação. Nesse sentido, cabe perguntar: Podemos fazer da escrita do caso clínico o ponto de cruzamento entre esses fragmentos constitutivos de historicidade?
IN:  http://www.iel.unicamp.br/projetos/outrarte/xvjornadaviioutrarte/portugues/




sexta-feira, setembro 11, 2015

Roland Barthes: Semiologia


Lição crítica: Roland Barthes e a 
semiologia do impasse

Ao que parece, o ensaísta francês Roland Barthes está de volta. De fato, é difícil dizer se, desde meados da década de 1950, houve algum momento em que Barthes esteve ausente, especialmente para os estudos literários. De qualquer modo, é notável que, a partir de 2002, circunstâncias, a princípio, editoriais o tenham trazido de volta. Na França, há, de um lado, a reedição, corrigida e aumentada, de suas obras completas; de outro, a publicação das inéditas anotações dos cursos que Barthes ministrou, entre 1977 e 1980, no Collège de France. Acrescente-se ainda, sobretudo na França e nos Estados Unidos, a reedição de alguns estudos críticos dedicados à sua obra ou à publicação de inéditos afins. No Brasil, a partir dessa mesma época, têm surgido colóquios dedicados a Barthes, reedições de seus livros em novas traduções ou publicações inéditas, além de alguns estudos críticos. Tudo isso ou incita à retomada do trabalho de Barthes, ou este é por tal retomada incitado.

E quem está em voga em tal retomada é "um sujeito incerto, do qual cada atributo é, de algum modo, combatido por seu contrário"*1,1. Não por acaso, alguns dos adjetivos que costumam caracterizar sua trajetória intelectual são: antagônico, infiel, contraditório, paradoxal. Ainda que muitos sejam os desvios aí traçados, um deles, particularmente, sobressai-se, seja por sua evidência e difusão, seja porque, a partir dele, os demais podem ganhar contornos mais nítidos. Trata-se da relação de Barthes com a semiologia, isto é, com a ciência que, baseada na linguística estrutural, pretende sistematizar conceitos e métodos aptos à sondagem da significação no seio da vida social.

De Mitologias, de 1957, até, aproximadamente, O sistema da moda, de 1967, cerca de dez anos, portanto – este é o período em que Barthes se dedica, categoricamente, à semiologia. Mitologias, de certo modo, "dispensa apresentações". Suas leituras da cultura de massa dos anos 1950 são, desde então, célebres. Até hoje, o livro é um importante parâmetro para leituras afins, como, por exemplo, algumas daquelas praticadas pelos estudos culturais. Já com O sistema da moda, tudo se passa de outra maneira. De um lado, suas reflexões teóricas são consideradas demasiadamente rígidas e truncadas, longe da concisão e do didatismo deElementos de semiologia, de 1965. De outro, seu objeto de estudo, a moda tal como "descrita" pela imprensa especializada, soa, para muitos, algo prosaico, trivial e insignificante, se comparado a Mitologias. Em outras palavras, de um lado, hermetismo teórico, cientificismo; de outro, alheamento sociopolítico – eis o duplo estigma de O sistema da moda, o mito que o encerra e que, de tão forte, estende-se à semiologia barthesiana como um todo.

Os trabalhos posteriores de Barthes dão mais margem a esse tipo de apreciação. Neles, não busca mais aparticularização do geral, a dedução dos diversos processos de significação em um conjunto reduzido de matrizes. Ao contrário, o que se empreende é a generalização do particular, a distensão das significações de um dado texto até o ponto em que elas podem ser, também, encontradas e continuadas, de forma não-cumulativa, em outros textos (intertextualidade), e assim sucessivamente. É possível sim dizer que essa distensão da significação se pauta em parâmetros semiológicos, mas, nesse caso, a semiologia se torna um conjunto heterogêneo de operadores de leitura, de ferramentas que se prestam não necessariamente à articulação de relações abstratas estáveis e extensíveis a diferentes sistemas, mas ao estilhaçamento e à prorrogação da significação.

Por isso, O sistema da moda parece ser o último empenho de Barthes em estabelecer a semiologia como ciência. Ainda que, como dito, nos trabalhos posteriores do ensaísta seja possível atribuir um papel concatenador aos parâmetros semiológicos, O sistema da moda assinala, pelo menos, o fim de um dos ciclos dos estudos semiológicos barthesianos. Por mais que se caracterizem pela ênfase dada à sistematização rigorosa de diversos processos de significação, é possível encontrar nos trabalhos desse primeiro ciclo a previsão do ulterior deslocamento das pesquisas semiológicas, bem como reflexões crítico-teóricas afins, ou seja, nesses trabalhos, além da projeção do impasse da semiologia, há uma espécie de estudo semiológico desse impasse. Disso decorre o objetivo deste artigo2: mapear as questões que colocam o projeto semiológico em xeque, de acordo com a própria semiologia.

Para tanto, há, em um primeiro momento, uma sucinta caracterização dos estudos semiológicos de Barthes, com ênfase em seus possíveis objetivos e funções. A partir disso, desdobram-se a configuração do impasse em que se vê a semiologia e o estudo semiológico desse impasse.

Fins semiológicos
Antes de tudo, cumpre reiterar que a semiologia desse primeiro ciclo é uma ciência (em construção) que, baseada na linguística estrutural, estuda a significação no seio da vida social, sendo significação o processo de composição dos signos, de assimilação de um significante a um significado. Há, assim, uma dupla necessidade permeando os estudos semiológicos. De um lado, a revisão dos pressupostos crítico-teóricos da linguística estrutural visando à compreensão da significação em diversas linguagens. Do outro, a assimilação de reflexões sócio-históricas a essa revisão, já que a significação estudada acontece, como dito, em meio à vida social.
Essa revisão da linguística estrutural por meio também de sua assimilação a questões de ordem social e histórica tem duas implicações interdependentes. Sendo a significação um acontecimento sobretudo social, estudá-la como tal faz com que a semiologia, de algum modo, adquira certa função na sociedade. No caso de Barthes, apesar de justificar e de motivar a pesquisa semiológica, essa função também é, e desde o princípio, um fenômeno de significação, mesmo porque se a significação é um fenômeno social, isso acontece porque, para a semiologia, a própria sociedade não deixa de ser um fenômeno de significação, bem como as funções que, eventualmente, são aí desenvolvidas.

Já em Mitologias, primeiro trabalho assumidamente semiológico de Barthes, pratica-se a conjunção entre os pólos linguístico e social, a partir da qual se articula uma possível função para os estudos semiológicos. Aí, estuda-se o mito, isto é, o processo semiológico praticado em torno de uma determinada classe, no caso, da burguesia. Para Barthes, o mito é o fenômeno semiológico que oblitera seus vínculos sociais, políticos e históricos para que seus valores sejam apresentados como algo factual: "todo o sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito toma a significação por um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema factual, ao passo que ele é, apenas, um sistema semiológico"*2 Trata-se da indiscriminada proliferação de valores burgueses na cultura de massa dos anos 1950 (filmes, jornais, espetáculos, programas de televisão, política etc.), que naturaliza esses valores, tornando-os fatos por meio dos quais a sociedade concebe e sanciona a si mesma.
O conceito de mito de que Barthes se vale guarda certa relação com Marx e Engels, e também com Nietzsche. Esses vínculos podem não só reforçar e ampliar a função da Semiologia, como também elucidar alguns dos aspectos que acenam ao impasse semiológico. Por isso, convém uma breve sondagem de tais relações.

No primeiro caso, o mito pode ser lido como afim à ideologia, tal como Marx e Engels a concebem, sendo que sua primeira elaboração consta de A ideologia alemã*3. A ideologia é, basicamente, uma consciência equivocada. Equivocada porque, à luz da incompreensão das contradições sociais e históricas em meio às quais se encontra uma determinada classe, todos os problemas dessa classe são atribuídos a outras instâncias que não aos fatores considerados reais, no caso, às conjecturas materiais próprias a uma sociedade de classes. Essa atribuição dá vazão a uma série de valores e de preceitos, com base nos quais essa classe pensa a si mesma e sobre as demais. A ideologia não é algo que uma classe manipula ou calcula conscientemente, embora as tentativas de manipulação que visam a necessidades imediatas tenham base na ideologia, sejam uma espécie de ideologia degradada. Por fim, tanto a ideologia quanto as tentativas de manipulação por meio dela são relativas à classe dominante, àquela que detém a propriedade e o controle sobre os modos de produção. É a partir dessa classe que tanto a ideologia quanto as tentativas de manipulação se disseminam socialmente. O mito de Barthes, fenômeno semiológico tomado por factual, pode ser assimilado, justamente, a essa disseminação, como sendo a ideologia veiculada pela cultura de massa da época.

Quanto a Nietzsche, é pertinente a menção de parte do vigésimo primeiro parágrafo de Além do bem e do mal:
Não se deve coisificar erroneamente "causa" e "efeito" [...]; deve-se utilizar a "causa", o "efeito", somente como puros conceitos, isto é, como ficções convencionais para fins de designação, de entendimento, não de explicação. No "em si" não existem "laços causais", "necessidade", "não-liberdade psicológica", ali não segue "o efeito à causa", não rege nenhuma "lei". Somos nós apenas que criamos as causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a coação, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade; e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo "em si", agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente.*4

Nietzsche considera que a articulação de uma relação causal (princípio de razão suficiente), base de qualquer especulação considerada lógica, equivale, em certa medida, à sua criação, sendo esta motivada pela necessidade, contingente e específica, de entendimento e/ou designação. A obliteração dessa necessidade visa à transposição da relação causal para um nível aquém de qualquer determinação ("em si"), "coisificando" (reificando) tal relação, tornando-a, em vez de determinada, determinante, isto é, um mito.

A mitologia nietzscheana parece ser mais de ordem lógica que afim às ambivalências próprias a uma sociedade de classes. Ainda assim, tanto a mitologia de Nietzsche quanto a ideologia de Marx e de Engels configuram um mesmo gesto, próprio ao mito barthesiano. Pode-se dizer que esse gesto consiste no deslocamento da contingência rumo à construção de uma transcendência que, em seguida, é tomada por causa, por explicação de qualquer contrariedade. Cria-se, então, um "efeito de esclarecimento", de compreensão coerente e pertinente, quando, de fato, trata-se de um esclarecimento equivocado, pautado em ilações, em "saltos" de consistência dubitável. Esse efeito alicerça uma dada compreensão daquilo que é concebido como sendo a realidade, compreensão cujo domínio (consciente ou não; geralmente, não o é) viabiliza sanções de toda ordem (lógico-cognitiva e linguística, sociopolítica, econômica etc.). Por meio dessas sanções, estruturam-se hierarquias diversas, que se prestam à legitimação e ao exercício do poder por parte das instâncias ligadas ao mito. Essas instâncias são, certamente, classes, mas também qualquer outra, digamos, comunidade discursiva. Trata-se, em suma, de um gesto sociopolítico e histórico (ideológico) porque de ordem lógica e cognitiva (mitológica), ou vice-versa.

Como o mito barthesiano diz respeito à cultura de massa dos anos 1950, não é difícil pressupor que a massificação desse processo torna tudo mais e mais complexo, mais e mais disseminado. Essa, provavelmente, é uma das razões que levam Barthes a considerar, no fim de Elementos de Semiologia, que "a sociedade [...] fala os significantes do sistema considerado, enquanto o semiólogo fala os significados desse mesmo sistema; o semiólogo parece, assim, possuir uma função objetiva do deciframento [...] diante do mundo que naturaliza ou mascara os signos"*5. Ou seja, aí, o mito transpõe a cultura de massa, generaliza-se, torna-se assimilável praticamente a toda e qualquer significação tal como em voga socialmente. Em face dessa generalização do mito, Barthes concebe o trabalho do semiólogo como um ato político, uma vez que visa desfazer o dogmatismo e o pragmatismo que alheiam a sociedade dos valores que a estruturam, isto é, de sua própria linguagem.

O crescente rigor com que os estudos semiológicos sistematizam os processos de significação parece ser diretamente proporcional à generalização do mito, rigor cuja motivação é tanto científica quanto política: "Menos aterrorizada pelo espectro de um certo 'formalismo', a crítica histórica teria sido, possivelmente, menos estéril; [...] quanto mais um sistema é definido, especificamente, em suas formas, mais dócil é à crítica histórica"*6. Em suma, uma maior percepção da proliferada incidência do mito leva a semiologia a um maior apuro metodológico.

Tal apuro pressupõe não só a revisão dos métodos semiológicos, mas também dois outros fatores. Em primeiro lugar, desencadeia-se a repetição e a reiteração contínuas do discurso semiológico, revisado ou não. A partir disso, o repetido ganha contornos, em muito, gregários, de modo que se tende à naturalização da significação no seio da vida social como sendo, digamos, alienada, da mesma maneira que à da semiologia como sendo um meio de esclarecimento crítico, um discurso de boa consciência. Eis, aí, o mito em estado latente.

Mas os estudos semiológicos barthesianos têm em mente diversas outras questões que concorrem à reavaliação da semiologia, antes mesmo de sua eventual mitificação nos termos acima expostos. E são essas questões aquilo a que, agora, convém atentar.

O impasse
Em um trecho de Mitologias, Barthes escreve que "o vinho é, objetivamente, bom, e, ao mesmo tempo, a bondade do vinho é um mito: eis a aporia"*7. Esse movimento metonímico, segundo o qual o qualificativo (bondade) é tomado pelo qualificado (vinho), desencadeia, de fato, uma aporia, um impasse. De um lado, só se pode tomar alguma coisa qualquer pela experiência que se tem dela, isto é, por sua qualificação, por sua significação. De outro, essa experiência tende a suplantá-la. Com efeito, a experiência que se tem de algo se dá, em certa medida, ao custo da refração desse algo.

Barthes diz que o semiólogo "lida com isso como pode: ele se ocupará da bondade do vinho, não do próprio vinho"*8. Há, como já visto, uma função sociopolítica subjacente ao esclarecimento da bondade do vinho como mito, isto é, da significação como mito. A significação, entretanto, tende a suplantar aquilo a que, em tese, refere-se, nesse caso específico, o vinho. Sendo assim, compreender a significação como sendo um mito e, então, desmitificá-la acaba dissipando boa parte do que o semiólogo concebe por vinho.

Desse modo, feita a desmitificação, o que resta para o semiólogo? "O próprio vinho", poder-se-ia dizer. Mas boa parte desse "o próprio vinho", ao menos a parte que compete à semiologia e ao semiólogo, foi posta em xeque pela desmitificação. Para o semiólogo, então, "o próprio vinho" não é mais vinho nem significação. Ou melhor, não é mais vinho justamente por não ser mais significação.

Feita a desmitificação, o semiólogo poderia conferir alguma significação ao vinho em termos considerados não-mitológicos – por exemplo, dizer, como na citação já transposta, que "o vinho é, objetivamente, bom". Mas, nesse caso, como sugere Barthes, ocorreria a restauração das condições necessárias à arquitetação do mito, uma espécie de mito em devir, de modo que haveria o risco não só de invalidação da desmitificação, bem como de o semiólogo, voluntariamente ou não, endossar o mito.
O que resta, afinal, para o semiólogo?

Barthes diz que a relação do semiólogo com a sociedade "é de ordem sarcástica"*9. Por isso, o que lhe resta é um amanhã, um tempo que, em seu presente, não é, e cujo futuro parece menos uma certeza que uma aposta, um risco: "a positividade do amanhã está oculta, inteiramente, sob a negatividade do hoje; todos os valores de seu empreendimento se lhe apresentam como atos de destruição: aqueles são recobertos por estes, nada restando"*10. E as fichas que o semiólogo aposta, as únicas, aliás, que ele possui, são seu trabalho, ou seja, sua linguagem: ele "está condenado à metalinguagem"*11.

Há algo mais delicado ainda. A aposta da metalinguagem é uma tentativa de transformá-la: no momento em que faz a aposta, o semiólogo já a perdeu, já que ela não tem mais validade: com relação ao objeto de estudo, a metalinguagem não possui "qualquer substância 'verdadeira' que se poderia creditar ao analista, mas apenas uma validade formal"*12. A metalinguagem "não é, absolutamente, uma essência abstrata, purificada; é uma condensação informe, instável, nebulosa, cuja unidade e cuja coerência advêm, sobretudo, de sua função"*13. Barthes diz que tal instabilidade da metalinguagem acontece porque "não conseguimos ir além de uma apreensão instável do real"*14. Talvez também porque a transitoriedade seja própria ao real tal como o semiólogo o concebe, no caso, como significação, como sentido em processo. Nesse sentido, adequar a metalinguagem ao objeto de estudo, que é instável, pode ser uma precondição à validade da metalinguagem e, ao mesmo tempo, à sua invalidade futura.
Em tese, o que confere "validade formal" e "função" à metalinguagem não deixa de ser um gesto hierárquico que toma por parâmetro a própria semiologia. A validade é legitimada àqueles que conhecem e dominam a semiologia e tudo aquilo que ela implica, não por acaso, aqueles que a articulam, ou seja, os semiólogos. Mas nos estudos semiológicos, nos de Barthes pelo menos, esse não é um gesto sub-reptício. É apenas algo considerado próprio ao saber humano, uma vez que ele "está condenado a confundir a verdade com a linguagem"*15. Sendo assim, em termos semiológicos, o conceito de validade diz respeito a uma assimilação temporária, equivocada mas necessária, da verdade à linguagem. Não por acaso, o que permite ao semiólogo julgar a significação na vida social como mito é justamente um outro mito, no caso, a própria metalinguagem semiológica: o semiólogo só pode desmitificar conforme mitifica em outro âmbito, conforme desloca mitos.

Mas há uma diferença entre a metalinguagem das pesquisas semiológicas de Barthes e o mito que lhe serve de objeto de estudo. O mito oblitera sua condição de significação para se autopromover como verdade. A metalinguagem semiológica não deixa de fazer o mesmo, mas o faz na mesma medida em que antevê seu próprio esgotamento: "Há, aí, uma necessidade que o Estruturalismo tenta, precisamente, compreender, isto é, falar: o semiólogo é aquele que exprime sua futura morte por meio dos mesmos termos com os quais nomeou e compreendeu o mundo"*16. O semiólogo precisa assimilar sua metalinguagem à verdade, visto que, sem essa operação, não há metalinguagem, nem semiologia. Ao fazê-lo, a metalinguagem ganha função e validade, bem como a semiologia e o semiólogo. Mas a função e a validade só são viáveis se, concomitantemente à sua instauração, são instauradas também as condições necessárias à sua disfunção e à sua invalidade.

Para a semiologia, não há como ser diferente, pois "o saber humano só pode participar da transformação do mundo por meio de uma série de sucessivas metalinguagens, cada qual alienada no instante que a determina"*17. A metalinguagem da Semiologia "se torna, portanto, provisória em razão da própria história que renova as metalinguagens"*18. De modo que "a história das Ciências Humanas seria, assim, em certo sentido, uma diacronia de metalinguagens, e cada ciência, inclusive, é claro, a Semiologia, conteria sua própria morte, sob forma da linguagem que a falará"*19. Novamente, só resta ao semiólogo e à semiologia um amanhã no qual ambos, em princípio, figurarão não como quem fala, mas como de quem se falará. E, de fato, mais de trinta anos após a publicação desses textos, muitos dos leitores de Barthes confirmaram e confirmam, ainda que de maneira muitas vezes involuntária, as previsões do ensaísta.

Contraponto e fuga
A semiologia barthesiana desse primeiro ciclo é uma prática que se direciona não só a seu objeto de estudo, mas também à própria investigação crítico-teórica, criando a necessidade de revisão e de reinvenção de ambos, da investigação e de seu objeto, e, por que não, do próprio, digamos, sujeito científico, no caso, o semiólogo. Essa revisão e essa reinvenção são uma possível forma de adiar o ocaso da semiologia sob a forma daquela que é falada, para que continue a falar por si mesma, ainda que esse "si mesma" se torne ambíguo em razão de sua revisão e de sua reinvenção. Trata-se, em suma, de uma revolta "contra" a semiologia para que, talvez, melhor se volte a ela e se lhe dê continuidade. Como dito no princípio deste artigo, essa revolta leva Barthes a um estádio que poder ser considerado um segundo ciclo dos estudos semiológicos, no qual a semiologia é, de um lado, uma ferramenta de estilhaçamento e de prorrogação da significação, e, de outro, assume-se, mais ainda, como significação.

Em relação ao impasse a que chega esse primeiro ciclo, parece que sua maior motivação diz respeito a uma certa equivalência entre o discurso crítico e o ideológico, ou, no sentido nietzscheano e barthesiano, mitológico. Não há qualquer fator que garanta a um dado discurso ser considerado crítico ou ideológico/mitológico, senão a função que desempenha em situações específicas, isto é, sua validade. E, sendo a validade algo que pode desencadear a ideologia/mitologia, sua instauração precisa comportar as condições necessárias à sua subsequente invalidade, uma vez que, para a semiologia, a crítica inscreve o desejo do sujeito no mesmo golpe em que castra o objeto de desejo, quando não o próprio sujeito, caso ele se resuma não a seu desejo, mas ao objeto (castrado) desse desejo. Da mesma maneira, a atividade crítica, ao se pretender esclarecedora, aliena o objeto de estudo, assim que considerada válida ou pertinente. Isso porque esse objeto se torna não ele mesmo, mas sim o que dele se diz. O sujeito crítico, caso queira criticar o que se diz do objeto, só poderá dizer outra coisa, a qual também alienará o objeto, assim que considerada válida ou pertinente etc. Trata-se, em suma, de um ciclo gregário, vicioso, que, a cada volta, mais se desprende de seu objetivo inicial (a elucidação da significação na sociedade como mito) rumo à identificação involuntária com seu objeto de estudo.

Seleção e avaliação, isto é, o desejo da crítica sobreposto a seu objeto de estudo/desejo; em resumo, assertividade: esse é, provavelmente, um dos procedimentos críticos basilares. Vimos, contudo, que seus efeitos podem estar além ou aquém de qualquer atividade que se pretenda crítica. Para Barthes, uma maneira de lidar com esse impasse é enfatizar não a verdade da crítica, mas apenas sua validade. Vimos também que a validade, confusão temporária entre linguagem e verdade, coaduna sua instauração e o devir de sua invalidade. O que seria, mais precisamente, essa confusão entre linguagem e verdade? Como se dá a concomitância entre validade e invalidade? Como isso se relaciona à assertividade, em geral, própria à atividade crítica?

Há dois processos interdependentes. De um lado, a atividade crítica, quando centrada menos no asseverado que na força que desencadeia a asserção e que é desencadeada por ela. De outro, a consciência de que a asserção, apesar de ser um processo semiológico, veicula valores que a aproximam do mito, isto é, do factual; dito de outro modo, o caráter semântico da asserção desencadeia um "efeito" ontológico ao qual é necessário atentar, sendo esse efeito aquilo que confunde linguagem e verdade. Para explicá-lo, tomemos uma pergunta que pode ser uma espécie de motivação crítica elementar: "o que é?" ou, visando a uma maior praticidade metodológica, "o que é mito?". A pergunta afirma que o termo "mito" não possui sentido, sendo necessário que se lhe esclareça. Obviamente, tal esclarecimento depende, sobretudo, dos valores afins aos interlocutores (que ambos têm ou que lhes são impostos por várias instâncias e de diversas maneiras), daquilo que, aí, for considerado válido ou pertinente. Mas isso só se torna necessário porque o termo "mito", por si só, não possui sentido em tal situação enunciativa – se o tivesse, a pergunta seria desnecessária. Para possuí-lo, entra em cena outro termo (ou mais de um) que não "mito", que é, então, tomado por "mito". Esse termo sobreposto a "mito" só pode desempenhar tal função semântica se outro termo fizer, por ele, o mesmo que ele faz por "mito", e assim sucessivamente. Isso implica que tão ou mais relevante que a própria asserção (os termos eventualmente considerados válidos) é a força que a desencadeia e que é desencadeada por ela. Por isso, a validade de um termo (ou, mesmo, de uma metalinguagem) é temporária ou mesmo contingente, pois ela é menos relativa ao asseverado que ao movimento em meio ao qual ele se instaura.

Mas a validade depende de uma confusão fortuita entre verdade e linguagem. Essa confusão acontece quando, por meio do exemplo do parágrafo anterior, o termo "mito" e aquele que se lhe sobrepõe suspendem o movimento linguístico que os desencadeia (e que pode ser desencadeado por eles), dando vazão a uma espécie de alucinação. Nesse caso, os dois termos citados são de tal modo assimilados entre si que se cria a impressão de que, de fato, "mito é X, Y ou Z". Em outros termos, como se também os interlocutores se unissem por meio de uma paixão alucinatória pelas palavras, que implica o rompimento da distância entre as palavras (signos) e as coisas (referentes). Rompimento, esclareça-se, não porque a distância entre uma e outra foi, finalmente, percorrida, mas sim porque ela foi abolida em razão da exclusão de um dos pólos, no caso, as coisas (referentes). Sem os referentes, a verdade é a palavra, os signos; ou vice-versa.

Possivelmente, o sentido acontece mediante tal paixão; o sentido é uma verdade de palavras. Eis o efeito ontológico desencadeado por uma operação semântica, cuja verdade é a de uma identificação entre o sujeito crítico, seu objeto de estudo/desejo e sua linguagem. E todos esses elementos, a linguagem especialmente, implicam a História, as diversas histórias da qual a História é feita e revista — história da linguagem, dos corpos, das ideias, da crítica, da sociedade etc. É por isso que Barthes considera, como vimos, que a validade crítica é afim à verdade do crítico e de seu tempo. E o Barthes crítico sabe que sua verdade está menos nos seus objetos de desejo/de estudo que na força que possibilita a identificação do crítico aos objetos (ou vice-versa). A mesma força que, em breve, trata de suspender essa identificação e de deslocá-la para outros objetos, projetando novos e renovados reencontros. Sem esse deslocamento, o crítico pode recair em mitologia, em ideologia, em paródia involuntária de si mesmo.

Suspender o projeto semiológico, revisá-lo via deslocamento, eis uma tentativa de burlar, ainda que temporariamente (é provável que não haja outro modo), a ideologia e a mitologia. Tentativa, aliás, triplamente crítica. Em primeiro lugar, porque o que a revela não é exatamente a consciência de que a semiologia, ciência da significação ou da linguagem, é, também, como qualquer outra ciência, significação ou linguagem. E as implicações disso são percebidas conforme se intensifica a dedicação à semiologia. Em seguida, porque essa tentativa crítica pressupõe autocrítica, isto é, o despojamento de se reconhecer no objeto de estudo/de desejo (ou de reconhecê-lo em si) e de não se esquivar ante tal reconhecimento, de criticá-lo também. Por fim, a concepção segundo a qual uma tentativa crítica não só abrange a seleção e a avaliação do objeto de estudo, dos métodos/instrumentos (no caso, metalinguagem) e do sujeito crítico, mas também, pode levar a uma situação crítica. E essa situação, ao assinalar o eventual fim (ou revisão, ou deslocamento) de todo um processo crítico, é o que justifica esse processo na mesma medida em que renova sua necessidade.

Ante essa necessidade renovada, ante esse estádio crítico, é possível que não se tenha mais palavras, que, em resposta à pergunta "o que é mito?", só se possa dizer "mito é mito", e que essa resposta seja um vazio rumo ao qual o crítico teme lançar-se. A tautologia, aí, é uma espécie de limite, de suspensão da significação, da permutação entre signos. Nesse ponto, tudo o que se tem é a linguagem, mas ela pode não mais ter validade; nesse ponto, o absurdo, advindo do esgotamento lógico, e a ignorância se equivalem; e precisamente nesse ponto, é possível ainda se lançar a um sim inaudito que aí ressoa:
Uma vez atingido o extremo da linguagem, lá, onde ela nada pode senão repetir sua última palavra, como um disco riscado, embriago-me com sua afirmação: a tautologia não seria aquele estádio inaudito, no qual se reencontram, misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzschiano?
Ayant atteint le bout du langage, là où il ne peut que répéter son dernier mot, à la façon d'un disque enrayé, je me soûle de son affirmation: la tautologie n'est-elle pas cet état inouï, où se retrouvent, toutes valeurs mêlées, la fin glourieuse de l'opération logique, l'obscène de la bêtise et l'explosion du oui nietzschéen?*20
Talvez essa lição crítica seja, ainda (ou sobretudo) hoje, válida.

Marcio Renato Pinheiro da Silva
Doutorando em Teoria da Literatura junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, campus de São José do Rio Preto (SP), e bolsista do CNPq. 

Referencias:
*1 "un sujet incertain, dans lequel chaque attribut est en qualque sorte combattu par son contraire" (Barthes, Roland. "Leçon". Em: Œuvres complètes, t. V. 2ª. ed. Paris: Seuil, 2002: 429.         [ Links ]) 
*2 "tout système sémiologique est un système de valeurs; or le consommateur du mythe prend la signification pour un système de faits: le mythe est lu comme un système factuel alors qu'il n'est qu'un système sémiologique" ("Mythologies", I : 843). 
*3 (Marx, Karl & Engels, Friedrich. A ideologia alemã. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998).         [ Links ]
*4 (Nietzsche, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992: 27,         [ Links ]aspas e grifos do autor). 
*5 "la société [...] parle les signifiants du système considéré, tandis que le sémiologue parle ses signifiés; il semble donc posséder une fonction objective du déchiffrement [...] face au monde qui naturalise ou masque les signes" ("Eléments de sémiologie", II: 698). 
*6 "Moins terrorisée par le spectre du 'formalisme', la critique historique eût été peut-être moins stérile; [...] plus um système est spécifiquement défini dans ses formes, et plus il est docile à la critique historique" ("Mythologies", I: 825-6). 
*7 "[...] le vin est objectivement bon, et en même temps, la bonté du vin est un mythe: voilà l'aporie" ("Mythologies", I: 868, grifo do autor). 
*8 "sort de là comme il peut: il s'occupera de la bonté du vin, non du vin lui-même" ("Mythologies", I: 868.) 
*9 "est d'ordre sarcastique" ("Mythologies", I: 867). 
*10 "la positivité de demain est entièrement cachée par la négativité d'aujourd'hui; toute les valeurs de son enterprise lui son données comme des actes de destruction: les uns recouvrent exactement les autres, rien ne dépasse" ("Mythologies", I: 867). 
*11 "est condamné au méta-langage" ("Mythologies", I: 867). 
*12 "aucune substance 'vraie', qui serait à porter tout entière au crédit de l'analyste, mais seulement une validité formelle" ("Système de la mode", II: 1191, grifo do autor). 
*13 "c'est nullement une essence abstraite, purifiée; c'est une condensation informe, instable, nébuleuse, dont l'unité, la cohérence tiennent surtout à la fonction" ("Mythologies", I: 832). 
*14 "nous n'arrivions pas à dépasser une saisie instable du réel" ("Mythologies", I: 868). 
*15 "il est condamné à confondre la vérité et le langage" ("Système de la mode", II: 1192). 
*16 "Il y a là une nécessité que le structuralisme essaye précisément de comprendre, c'est-à-dire de parler: le sémiologue est celui qui exprime sa mort future dans les termes mêmes où il a nommé et compris le monde" ("Système de la mode", II: 1192.) 
*17 "le savoir humain ne peut participer au devenir du monde qu'à travers une série de métalangages successifs, dont chacun s'aliène dans l'instant qui le détermine" ("Système de la mode", II: 1191-2). 
*18 "est cependant rendue provisoire par l'historie même qui renouvelle les métalangages" ("Éléments de sémiologie", II: 698) 
*19 "l'histoire des sciences humaines serait ainsi, en un certain sens, une diachronie de méta-langages, et chaque science, y compris bien entendu la sémiologie, contiendrait sa propre mort, sous forme du langage qui la parlera" ("Éléments de sémiologie", II: 698). 
*20 (Barthes. Roland. "Fragments d'un discours amoureux", V: 50, grifos do autor). 

1 Todas as citações de Barthes utilizadas neste artigo pertencem a essa segunda edição de suas obras completas. Daqui por diante, as referências serão fornecidas por meio de algarismos romanos, indicativos do tomo (de I até V), e de algarismos arábicos, indicativos das páginas, ambos antecedidos pelo título, entre aspas, da publicação a que se referem. As traduções para a língua portuguesa, fornecidas no corpo do texto, são de minha autoria. 
2 Este artigo consiste na retomada e na ampliação da comunicação oral intitulada "A revolta semiológica de Roland Barthes", apresentada, em 25 de junho de 2004, no III Simpósio de Linha de Pesquisa: Perspectivas Teóricas no Estudo da Literatura, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP, campus de São José do Rio Preto-SP. Esclarece-se que tanto esta comunicação quanto o presente artigo contam com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

In: Alea Estudos Neolatinos
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-106X2005000100005&script=sci_arttext
  

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