Este Blog tem o objetivo de informar e integrar os participantes do Grupo de Estudo de Arte, Filosofia e Psicanálise.
sexta-feira, dezembro 23, 2016
sexta-feira, dezembro 16, 2016
Psicanálise e Cinema
Cisne
Negro: notas sobre o espelho
Luiz Felipe Monteiro
O que significa ver um filme sob as lentes
do discurso analítico? O que um filme pode nos ensinar sobre algo da
psicanálise. São perguntas que norteiam uma apreensão da obra cinematográfica
para além do mero suporte de interpretações selvagens sobre os personagens e
muitas vezes, sobre os próprios diretores e atores do filme. Trata-se de se
valer de um outro discurso, para pensar algo do discurso da psicanálise. Slavoj
Zizek sintetiza bem essa operação ao mencionar a visão em paralaxe, onde atesta
que enxergamos melhor quando vemos sob um olhar enviesado. Se concordamos com
Lacan que a verdade tem estrutura de ficção isto confere uma pertinência de
pensar a psicanálise sob as lentes do cinema. Afinal, o discurso cinematográfico
é o própria estrutura de ficção posta em ato, um filme só é um filme por sua
mise-em-scene, sua encenação e articulação de significantes que se justapõe
entre os cortes, enquadramentos, cenários, trilha-sonora e diálogos de uma
trama.
Em
outras palavras, a linguagem cinematográfica possui um modo de operação
simbólica, onde não cabe os mesmos juízos de realidade, daquilo que
consideramos a “realidade concreta dos fatos”. Assim como em um sonho, tudo o
que se vê em um filme está articulado em uma cadeia simbólica que compõe a
narrativa do filme. Nada que é visto é aleatório, fortuito; inclusive e
especialmente aquilo que o diretor nos impede de ver. Aquilo que fica fora no
enquadre também compõe a cena.
Não se trata da fórmula clássica “tudo tem
um Luiz Felipe Monteiro Cisne Negro: notas sobre o espelho sentido” onde algum mentor
sabe de todos os significados de antemão. Tanto em um filme, como nos sonhos,
os elementos que estão à vista e aqueles que não são mostrados compõe uma
linguagem simbólica onde os possíveis significados não estão previamente estabelecidos.
O diretor de um filme e o “inconsciente” guiam o nosso olhar por meio dos seus
recursos “técnicos” (condensação, deslocamento, corte, close, etc...). Desse
modo, criam uma narrativa que sugere significações, sem encerrá-las em significados
pré-estabelecidos. Esta lógica da linguagem simbólica comum aos sonhos e aos filmes
depende do espectador\sonhador para realizar a sua significação. Um filme não
visto, é apenas um pasta de arquivo digital perdido no HD de algum produtor,
tal qual um sonho não elaborado, é apenas algo estranho que sobrevêm à noite.
Exatamente por haver uma sugestão de
significação oferecida pelo modo como o nosso olhar é guiado, que um filme pode
ser lido. Nesse sentido, uma boa maneira de nos servir de um filme é prestar
atenção não à história contada, mas no modo como as cenas são ligadas uma à
outra. Este é o trabalho do montador do filme e aí reside a estrutura de
significação de um filme. Enquanto estamos prestando atenção aos diálogos e ao
drama do filme, não nos damos conta facilmente do tipo de articulação simbólica
que o diretor realiza para guiar o nosso olhar. Essa articulação simbólica que
não está no conteúdo dos diálogos, mas na forma como as imagens são montadas
quadro a quadros, tem o nome de enunciação. Mesmo conceito que se aplica à fala
de um discurso, inclusive um discurso sobre um sonho recordado. A sagacidade de
Freud quando escreve a Interpretações dos Sonhos, reside exatamente na
compreensão de que a significação dos sonhos está muito mais no modo como as
imagens (visuais e acústicas) se articulam, do que necessariamente no conte-
údo da fala do paciente.
Sobre o filme Cisne Negro, o primeiro
ponto que podemos destacar é o posicionamento da câmera sob a personagem Nina.
Desde as primeiras cenas do filme, a câmera segue os seus passos, mirando em
suas costas e com o mesmo movimento do andar de Nina. Esse modo de
enquadramento nos leva a crer que há alguém que está com Nina, mesmo que ela
não perceba. O movimento da câmera seguindo o mesmo ritmo de seu andar sugere
que esse alguém, se não é ela própria (seu duplo), é algo ou alguém que a
concerne. De um modo muito simples, o diretor ao mesmo tempo sugere a presença
de um duplo e a presença do espectador nesse lugar do duplo. Afinal, quem vê as
costas de Nina e acompanha a sua chegada ao Balé somos nós, os espectadores.
A própria ideia inicial dada pela câmera
sobre o duplo, ressoa o tempo todo no filme na presença constante dos espelhos.
Quase todas as cenas há um espelho ao fundo; e em muitas cenas, a câmera mira
seu olhar não sobre o personagem, mas sim na imagem refletida no espelho destes
mesmos personagens. Em diversos planos, vemos Nina não diretamente, mas através
da imagem especular. Onde esta encenação perpétua de espelhos que levar o
espectador?
Mirar a câmera no espelho ao invés da
personagem é a melhor maneira de dizer que é nessa dimensão especular que se
concentra a questão dramática de Nina.
Do que se trata a imagem conferida por um
espelho? O espelho nada mais é do que a nossa imagem devolvida por um suporte
material. Ter a nossa imagem devolvida por um suporte material é outro nome dos
tipos de cuidados e de olhar que os nossos cuidadores têm conosco desde os
nossos primeiros segundos de vida. Sem a devolução do olhar do outro sobre nós,
não temos como constituir a nossa própria imagem. O Estádio do Espelho tal como
proposto por Jacques Lacan trata exatamente dessa questão. Sem o olhar de
reconhecimento do Outro, não constituímos um ego.
Mas isso não é suficiente para a
estruturação do sujeito no laço social. Isto porque caso a nossa subjetividade
se apoia unicamente no plano imaginário (da imagem ideal que constituímos por
meio do reconhecimento e identificação com o Outro), ficamos presos e
paralisados na alienação com Outro. Em outras palavras, nossa existência passa
a ficar apoiada unicamente naquela imagem específica que fomos reconhecidas
pelo Outro.
No caso de Nina, vemos claramente por meio
dos cenários de sua casa, de seu quarto e por meio da sua vida bailarina como o
seu universo simbólico é tomado pela presença e pela identificação com a mãe.
Até a entrada do personagem do diretor de Balé, o filme nos leva a crer que a
vida de Nina resumia-se entre o balé e sua casa. Sua imagem egóica está
apoiada, hegemonicamente, no ideal da bailarina perfeita e bela. Foi esse o
olhar que ela recebeu e recebe da mãe; é esse o olhar que ela tem sobre si
própria. Desde o lugar da bailarina perfeita, bela e filha da mãe, Nina está
organizada psiquicamente. Não há conflito, não há erro, não há falta. Desde
esse lugar Nina é o Cisne Branco. Resta a pergunta: o que fica de fora desse
enquadramento ideal?
A própria trama do Balé Cisne Negro já
deixa claro que muita coisa fica de fora dessa suposta perfeição idealizada de
beleza e técnica. Será através da figura de um homem sedutor que esta dimensão
não idealizada irá aparecer. Isto porque o modo como Thomás dirige o seu olhar
para Nina está regido por tudo aquilo que a técnica e a disciplina visa
extinguir. O olhar do diretor do balé (e do seu duplo - o diretor do filme)
sobre Nina, quer vê-la perder o controle, perder a simetria perfeita, perder o
compasso. Quer vê-la Cisne Negro. Este olhar passa necessariamente pela
sexualidade, pois é nesta dimensão do desejo sexual que residem os nossos
desencontros, nossos mal-entendidos, nossa incompreensão, nosso gozo não
totalmente educado. A cena em que Nina se dirige ao diretor para pedir o papel
atesta claramente a ambiguidade que se coloca sobre a personagem. Ao mesmo
tempo em que esse olhar do diretor lhe tira do centro idealizado de perfeição;
é também o mesmo olhar que a coloca no centro das atenções, no destaque como
personagem principal da trama do balé. O paradoxo posto para Nina é que o papel
com o qual ela alcançará o tão sonhado protagonismo no balé, é exatamente o
papel que lhe demanda que abdique de sua suposta perfeição.
Nesse momento do filme uma outra questão
importante é posta em cena: “a outra mulher”. Quando Nina passa a ser
reconhecida para além da “bailarina”; como uma mulher que sente desejo e que
pode ser desejada, o olhar de Nina passa a mirar a outra: o que será que ela
tem que eu não tenho? Aqui duas personagens representam esta interrogação sobre
o que é ser mulher. A personagem de Lily pela via da mulher desejante,
descolada, atraente; e a personagem de Beth, bailarina que Nina substitui no
balé e que, posteriormente no filme, sofre um grave acidente. Se Lily
representa esta dimensão sexualizada do feminino, Beth representa a realização
do ideal e o custo que tem esta realização. De algum modo Beth antecipa o
destino de Nina, quando entrevê que a realização do ideal de perfeição e
sucesso tem um preço caro, às vezes pago com a própria carne.
A cena onde Nina é apresentada como
substituta de Beth é o que precipita uma das primeiras desagregações corporais
experienciadas por Nina. Dali em diante, toda vez em que Nina está se aproxima
da dimensão sexual ou é demanda a se descontrolar apareceram os sintomas
corporais (coceira, sangramento, cortes em partes do corpo, até o aparecimento
das penas). É claro que podemos ler esses sintomas como alucinações
cinestésicas, ou mesmo como despersonalização; porém o que mais interessa aqui
é olhar sobre o que antecede o aparecimento desses sintomas. Isto que nos leva
a criar um raciocínio clínico sobre os casos, tal como sobre o discurso do filme.
A compreensão de que os sintomas não são aleatórios, e sim, fazem parte de uma
articulação simbólica particular ao sujeito, nos conduz a ler onde situam-se os
pontos de impasse, os sinais de angústia.
No caso do filme a presença do olhar do
diretor, desestabiliza a imagem idealizada de Nina. O olhar de Thomás surge
como um terceiro na relação especular dual que Nina estabelece, especialmente
com a sua mãe. A cena em que Nina se masturba em sua cama após a conversa com
Thomás e de repente é mostrado o corpo da mãe, atesta bem o tipo de angústia
vivida pela personagem. Nesta cena em particular o próprio modo em que a mãe
aparece é bastante ambíguo, pois não fica claro que Nina a vê. Simplesmente
aparece a imagem do corpo da mãe muito rapidamente, quase como uma alucinação
ou como um pensamento de censura que lhe acomete. O mesmo tipo de ambiguidade é
visto quando Lily vai até a casa de Nina e chama para sair e quando elas
transam também na cama de Nina.
O que se vê no filme dali em diante é a
crescente sensação em Nina de que ela está perdendo sua identidade. A perda de
sua consistência egóica é correlata à perda da consistência da imagem
idealizada conferida pela mãe. O espelho que dava suporte à imagem idealizada e
clean de Nina, começa a rachar. O drama do filme está justamente na desagregação
física e psicológica que esta dimensão estranha à imagem idealizada resvala
sobre a personagem. É como se a relação especular idealizada de reconhecimento
no olhar da mãe se rompesse e Nina então se partisse concretamente. Se partindo
em Cisne Branco e Negro. Não houve para Nina algum tipo de mediação que
conseguisse organizar a tensão psíquica posta pela presença da dimensão “cisne
negro” no domínio materno/perfeito/ belo do “cisne branco”. Nina se deixa tomar
(o nome do diretor do balé no filme não é à toa – Thomás) pelo Cisne Negro e,
tal como no enredo do Balé se mata para conseguir a perfeição. O que podemos
entrever como a produção sintomática de Nina foi tomar o personagem do cisne
negro no plano concreto, sem uma mediação simbólica que permitisse uma
metáfora, uma atuação. Nina não usa o Cisne Negro como semblante, metáfora para
o que se deflagrou com desestabilização do ideal. O drama do filme reside
justamente aí. Se não há metáfora no plano do simbólico, resta o ato no corpo.
Quem vacila não é o significante é o seu próprio corpo e ego. Não há uma
fronteira, uma separação entre o seu ego e a imagem do cisne negro. Faltou a
Nina uma mediação simbólica que estruturalmente separa o eu do outro, o corpo
do filho do corpo da mãe, o gozo de um com o gozo do outro. Uma das linhas de
investigação seria a da foraclusão do Nome-do-Pai como função que instaura uma
separação, uma falta, um erro, uma distância entre o ego da criança e o ego do
outro cuidador, inclusive na dimensão concreta do corpo. É a inscrição do Nome
do Pai que permite ao filho realizar uma metáfora do Desejo da mãe; em outras
palavras, permite à criança sair da hegemonia da relação imaginária dual e
especular, para fazer uso da dimensão simbólica que permite a possibilidade da
presença e ausência, do erro, da falha, por extensão, do desejo.
Na cena final do filme antes de Nina se
matar, aparece subitamente a imagem da mãe olhando Nina em seu espetáculo de
transfiguração em Cisne Negro. O que se pode ver ali o último lance no espelho
de Nina para a sua mãe? Um busca final de reconhecimento? Certamente, na
atuação de Nina ela alcança o seu ideal, porém não no plano simbólico, realiza
em ato aquilo que na sua imagem de eu sempre buscou – o júbilo do olhar do
outro. Sinal de que muitas vezes a busca imaginária deste júbilo no
reconhecimento especular tem um custo que se paga com a própria carne. A perda
da carne e da própria vida, evela a impossibilidade da personagem em realizar
um atravessamento da dimensão especular por via do simbólico, da metáfora e
metonímia. Não é precisamente esta impossibilidade que nos fascina na
personagem? Se Nina chega à perfeição com o fim da vida, nós espectadores
podemos chegar ao fim do filme são e salvos, precisamente porque de algum modo,
de um modo particular, cada um pôde ceder à prisão especular com Outro, para se
deixar furtar da linguagem e seus artifícios. O encanto do cinema é prova
disto, pois afinal, o espectador desejante sem saber ou não, pagou para se
alienar na tela-Outro; e precisamente por que pagou o preço da separação (não
com a carne, mas com recursos simbólicos) que se pode continuar desejando,
desejando o próximo filme.
IN: Revista Agente
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