VIENA FIN-DE-SIÉCLE
SCORSKE, Cal. Viena fin-de-siécle: cultura e política. Trad. Denise Bottmann. S.P.: Cia das Letras, 1988.
Contexto cultural do fim do século XIX
Viena fin-de siécle, foi uma cidade que realizou inovações, através de sua intelligentsia, que viriam a ser conhecidas em toda a esfera cultural européia como “escolas” vienenses – principalmente na psicologia, história da arte e música. Mesmo nos campos onde as realizações austríacas tardaram mais a obterem o reconhecimento internacional – literatura, arquitetura, pintura e política, por exemplo -, os austríacos entregaram-se a reformulações críticas ou transformações subversivas de suas tradições, que foram reconhecidas pela sua sociedade como radicalmente novas, quando não efetivamente revolucionárias. O termo Die Jungen (os jovens), designação comum aos révoltés inovadores, difundiu-se entre as várias esferas da vida. Inicialmente empregado na política dos anos de 1870, em relação a um grupo de jovens revoltados contra o liberalismo austríaco clássico, a expressão logo apareceu na literatura (Jung-Wien), e a seguir entre os primeiros artistas e arquitetos a adotar o art nouveau e lhe conferir caráter austríaco próprio.
Os novos produtores culturais da cidade de Freud definiam-se reiteradamente em função de uma espécie de revolta coletiva. Mas os jovens estavam se revoltando, não contra os pais, mas contra a autoridade da cultura paterna que lhes fora legada. O que atacavam numa frente ampla era o sistema de valores do liberalismo clássico predominante em que tinham sido criados.
A sociedade austríaca não conseguiu lidar com as coordenadas liberais de ordem e progresso. No último quarto do século XIX, o programa elaborado pelos liberais contra as classes superiores provocou a explosão das inferiores. Os liberais conseguiram soltar as energias políticas das massas, mas antes contra eles próprios do que contra seus antigos inimigos. A um nacionalismo alemão articulado contra os cosmopolitas aristocratas, respondeu a reivindicação de autonomia dos eslavos. Quando os liberais atenuaram seu germanismo em favor do Estado multinacional, foram rotulados de traidores do nacionalismo por uma petite burgeoisie alemã tradicional. O laissez-faire, ao qual caberia libertar a economia dos grilhões do passado, levantou-se os revolucionários marxistas do futuro. O catolicismo, expulso da escola e do tribunal como lacaio da opressão aristocrata, voltou como ideologia dos camponeses e artesões, para os quais os liberalismo significava
capitalismo, e o capitalismo significava judeus. No final do século, mesmo os judeus, a quem o autoliberalismo oferecera a emancipação, a oportunidade e assimilação à modernidade, começaram a virar as costas aos seus benfeitores. O malogro do liberalismo fez dos judeus vítimas, e a resposta mais convincente à vitimação foi dada pelo sionismo: a fuga para o lar nacional. Enquanto outros nacionalistas ameaçavam o despedaçamento do Estado austríaco, os sionistas ameaçavam a secessão.
Portanto, ao invés de unir as massas contra a velha classe dirigente do alto, os liberais convocaram, das profundezas sociais, as forças de uma desintegração geral. O liberalismo não conseguira controlar as forças sociais liberadas por essa dissolução, as quais geraram um novo movimento centrífugo sob a égide tolerante, mas inflexível do liberalismo.
Em Viena, até cerca de 1900, era sólida a coesão entre toda a elite. O salão e o café conservavam sua vitalidade como instituições onde vários tipos de intelectuais compartilhavam idéias e valores, e se misturavam a uma elite de profissionais liberais e homens de negócios, orgulhosa de sua cultura geral e artística. Além disso, a “alienação” dos intelectuais em relação a outros setores da elite, o desenvolvimento de uma subcultura iniciática ou vanguardista, afastada dos valores políticos, éticos e estéticos da classe média, ocorreu em Viena mais tardiamente do que em outras capitais culturais européias, embora talvez de forma mais rápida e definida. A maior parte da geração de produtores culturais, foi excluída do poder político, sem chegar a se separar e se opor a ela como classe dirigente.
Os refinados escritores de Viena, pintores, psicólogos e até historiadores da arte preocuparam-se com o problema da natureza do indivíduo numa sociedade em desintegração. Dessa preocupação resultou a contribuição austríaca para uma nova concepção do homem.
A cultura liberal tradicional tinha se concentrado sobre o homem racional, cujo domínio científico sobre a natureza e controle moral sobre si deveriam criar a boa sociedade. No século XX, o homem racional teve que dar lugar àquela criatura mais rica, mas mais perigosa e inconsciente, que é o homem psicológico. Esse novo homem não é simplesmente um animal racional, mas uma criatura de sentimentos e instintos. Nossos artistas de subjetividade interior pintam-no. Nossos filósofos existencialistas tentam dar-lhe sentido. Nossos cientistas sociais, políticos e publicitários manipulam-no. Até a opressão política e econômica avaliamos em termos de frustração psicológica. Ironicamente, em Viena, foi a frustração política que estimulou a descoberta desse homem psicológico hoje onipresente.
O liberalismo austríaco, como na maioria das noções européias, conheceu sua idade heróica na luta contra a aristocracia e o absolutismo barroco. Essa luta se encerou com a extraordinária derrota de 1848. Os liberais moderados chegaram ao poder e, quase que à sua revelia, estabeleceram um regime constitucional nos anos de 1860. O que os levou à direção do Estado não foi a sua força interna, mas as derrotas da velha ordem às mãos de inimigos externos. Desde o início, os liberais tiveram de partilhar o poder com a aristocracia e burocracia imperiais. Mesmo durante seus vinte anos de governo, a base social dos liberais continuou frágil, restrita aos alemães e judeus-alemães da classe média urbana. Cada vez mais identificados com o capitalismo, conservaram o poder legislativo graças ao expediente não-democrático de direito de voto restrito.
Logo novos grupos sociais passaram a reivindicar a participação política: os camponeses, artesãos e operários urbanos, e os povos eslavos. Nos anos 1880, esses grupos formaram partidos de massa para enfrentar a hegemonia liberal: social-cristãos e pangermânicos anti-semitas, socialistas e nacionalistas eslavos. Seu êxito foi rápido. Em 1895, o bastião do liberalismo, a própria cidade de Viena, foi engolfada por um vagalhão social-cristão. O imperador Francisco José, com o apoio da hierarquia católica, recusou-se a ratificar a eleição de Karl Lueger, o prefeito católico anti-semita. Sigmund Freud, o liberal, comemorou o gesto salvador autocrático dos judeus. Dois anos depois, não se pôde mais deter o vagalhão. O imperador, curvando-se à vontade do eleitorado, ratificou Lueger como prefeito. Os social-cristãos iniciaram uma década de governo em Viena, combinando tudo o que era anátema para o liberalismo clássico: anti-semitismo, clericalismo e socialismo municipal. Também em nível nacional, em 1900, os liberais foram derrotados, como poder político parlamentar, e não vieram a se recuperar. Tinham sido esmagados pelos movimentos de massa modernos, cristãos, anti-semitas, socialistas e nacionalistas.
Essa derrota teve profundas repercussões psicológicas. O estado de espírito suscitado não era tanto de decadência, mas de impotência. O progresso parecia ter chegado ao fim.
Os escritores dos anos 1890 eram filhos dessa cultura liberal ameaçada. Quais eram os valores que tinham herdado, com que teriam de enfrentar a crise? É possível distinguir dois conjuntos de valores na cultura da segunda metade do século: um moral e científico, o outro estético.
A cultura moral e científica da haute bourgeoisie vienense praticamente não se distingue do vitorianismo corrente dos outros países europeus. Em termos morais, era convicta, virtuosa e repressora; em termos políticos, importava-se com o império da lei, ao qual se submetiam os direitos individuais e a ordem social. Intelectualmente, defendia o domínio da mente sobre o corpo e um voltairianismo atualizado: progresso social através da ciência, educação e trabalho duro. É muito freqüente se subestimar as realizações que, em poucas décadas, resultaram da aplicação desses valores à vida jurídica, educacional e econômica da Áustria. Mas nem os valores, nem o progresso alçado com eles conferiram à alta classe média austríaca um caráter único.
A evolução da cultura estética da burguesia cultivada a partir da metade do século, originou a receptividade à vida artística e, ao mesmo tempo, no nível individual, a sensibilidade a estados psíquicos. No início do século XX, à cultura moralista corrente da burguesia européia se sobrepôs, na Áustria, uma Gefühlskutur (cultura dos sentimentos) que minou com o seu amoralismo.
Dois fatos sociais básicos distinguem a burguesia austríaca das burguesias francesa e inglesa: ela não conseguiu destruir e tampouco se fundir com a aristocracia, e, devido à sua fragilidade, ela se manteve dependente e profundamente leal ao imperador, como protetor paterno distante, mas indispensável. A capacidade de monopolizar o poder fez com que o burguês, sentindo-se sempre um pouco forasteiro, procurasse uma integração com a aristocracia. O elemento judaico em Viena, numeroso e próspero, apenas fortaleceu essa tendência, com seu forte impulso assimilacionista.Raras vezes ocorreu na Áustria uma assimilação social direta na aristocracia. Mesmo os que recebiam título de nobreza não eram admitidos, como na Alemanha, à vida da corte imperial. Mas existia uma outra via mais aberta se assimilação: a via da cultura. Ela, no entanto, também tinha suas dificuldades. A cultura tradicional da aristocracia austríaca distanciava-se muito da cultura legalista e puritana de burgueses e judeus. Profundamente católica, era de uma cultura plástica, sensual. Enquanto a cultura burguesa tradicional via a natureza como uma esfera a ser dominada pela imposição da ordem sob leis divinas, a cultura aristocrata austríaca concebia a natureza como cenário de alegria, manifestação da graça divina a ser glorificada na arte. A cultura austríaca tradicional, ao contrário da alemã, não era moral, filosófica ou científica, mas basicamente estética. Suas maiores manifestações estavam nas artes aplicadas e de espetáculo: arquitetura, teatro e música. A burguesia austríaca, radicada na cultura liberal da razão e do direito, se confrontou com uma cultura anterior elegante e sensual. Os dois elementos, resultaram num composto altamente instável.
A primeira fase de assimilação à cultura aristocrática foi externa. Mostra-a em fatos arquitetônicos da nova Viena, construída pela burguesia ascendente dos anos 1860. Os dirigente liberais, numa reconstrução urbana que excedia à Paris sob Napoleão III, tentaram desenhar sua história, numa linhagem, por meio de edifícios grandiosos inspirados por um passado gótico, renascentista ou barroco que não lhes pertencia.
Uma segunda via de acesso à cultura aristocrática, ainda mais extraordinária do que a orgia arquitetônica, passava pelo patronato das artes de espetáculo, de sólida tradição. Essa forma penetrou mais na consciência da classe média do que a arquitetura, pois o terreno já fora preparado pelo teatro popular tradicional de Viena. A nova haute bourgeoisie de Viena pode ter começado a patrocinar o teatro e música clássica , mas no final do século é inegável que seu entusiasmo por essas artes era mais autêntico do que o das outras burguesias européias. Nos anos de 1890, os heróis da classe média alta não eram mais líderes políticos e sim atores, artistas e críticos.
No final do século, alterou-se a função da arte para a sociedade de classe média de Viena, e nessa transformação a política desempenhou um papel central. Se os burgueses vienenses tinham começado por sustentar o templo da arte como sucedâneo da assimilação à aristocracia, terminaram por encontrar nele uma válvula de escape, um refúgio fora do desagradável mundo da realidade política cada vez mais ameaçadora. A vida da arte tornou-se um sucedâneo da vida de ação. Com efeito, à medida que a ação civil se mostrava cada vez mais vazia, a arte se convertia quase que numa religião, fonte de sentido alimento do espírito.
Ao absorver a cultura estética, o burguês vienense absorveu junto o sentimento coletivo de casta e função, que a aristocracia conservava mesmo na decadência. O burguês, fosse dândi, artista ou político, não podia anular sua herança individualista. Conforme aumentava o sentimento das Gleitende, o escorregar do mundo, o burguês interiorizava sua cultura estética adquirida, para assim cultivar o eu, a sua unicidade pessoal. Essa tendência levou à preocupação da vida psíquica individual. Ela fornece o elo entre a devoção à arte e o interesse pela psique. Uma boa ilustração sua é o estilo empregado na seção cultural da imprensa, lida com avidez: o feuilleton. Ele tendia a transformar a análise objetiva do mundo como uma sucessão casual de estímulos às sensibilidades, e não como um palco de ações. O folhetinista era o reflexo do leitor de sua coluna: suas características eram o narcisismo e a introversão, a receptividade passiva da realidade exterior e, sobretudo, a sensibilidade a estados psíquicos. Essa cultura burguesa do sentimento condicionou a mentalidade dos intelectuais e artistas, refinou suas sensibilidades e gerou seus problemas.
As conseqüências foram o narcisismo e a hipertrofia da vida dos sentimentos. A ameaça dos movimentos políticos de massa emprestou uma nova intensidade e essa tendência já existente, ao enfraquecer a confiança liberal tradicional no seu legado de racionalidade, lei moral e progresso. A arte se transformou de ornamento em essência, de expressão em fonte de valor. A ruína do liberalismo metamorfoseou ainda mais a herança estética em cultura de nervos sensíveis, hedonismo inquieto e, muitas vezes, franca ansiedade. E, acrescendo-se ao quadro já complexo, a intelligentsia liberal austríaca não deixou totalmente de lado o fio anterior de sua tradição, a saber, a cultura moralista-científica da lei. Com isso, a culpa se mesclou, e mutilou, nos melhores representantes austríacos, a afirmação da arte e da vida dos sentidos. Essa presença continuada da consciência no tempo de Narciso reforçou as fontes políticas da ansiedade na psique individual.
Intelectuais e artistas: Arthur Schnitzler, Georg Wegenthin, Hugo von Hofmannsthal, Sigmund Freud, Wilhelm Fliess, Maurice Ravel, Gustav Klimt, Oto Wagner, Camillo Sitte, Richard Wagner, Arnold Schoenberg, Oskar Kokoschka, etc.