A ponte
Rígido e frio, eu era uma ponte, uma
ponte estendida sobre o abismo. Deste lado estavam as pontas dos pés, do outro
as mãos, que eu metera pelo barro adentro a fim de segurar-me. As abas de minha
casaca tremulavam-me nos flancos. Lá no fundo corria, ruidoso, o gélido riacho
de trutas. Turista algum errava por aquelas alturas intransitáveis; a ponte
ainda não figurava nos mapas. – Assim, ali estava eu à espera: cumpria-me
esperar. Sem desabar, ponte nenhuma pode, uma vez erigida, deixar de ser ponte.
Certa ocasião, foi ao anoitecer – era a
primeira vez ou a milésima, não sei ao certo –, meus pensamentos andavam sempre
a dar voltas, numa confusão. Num anoitecer de verão, em que o riacho murmurava,
obscuro, ouvi passos de um ser humano. Vindo até mim, até mim. – Estica-te,
ponte; coloca-te em posição; mantém-te confiante, trava sem parapeito. Busca
compensar-lhe, sem que ele perceba, a insegurança do passo; depois, dá te a
conhecer e, como um deus das montanhas, arroja-o à terra.
Ele veio; percutiu-me com a ponta de
ferro de sua bengala; a seguir, ergueu com ela as abas de minha casaca e as
arrumou sobre mim. Correu a ponta da bengala pelo meu cabelo ramalhudo e,
provavelmente olhando espantado à volta, deixou-a ali ficar por longo tempo.
Mas por fim – eu o sonhara por montes e vales – pulou com ambos os pés para o
meio do meu corpo. Totalmente ignorante, experimentei dor intensa. Quem era
ele? Uma criança? Um sonho? Um salteador? Um suicida? Um tentador? Um
exterminador? E virei-me para olhá lo. – Uma ponte virar-se! Não chegara ainda
a virar quando despenquei e pronto me rasgaram e me furaram a carne os seixos
pontudos que sempre me haviam fitado tão serenamente de dentro das águas
frenéticas.
[Kafka, 1917]
Impossível, ao leitor sensível, conter
seu próprio espanto frente a tamanha beleza! Estonteante, este pequeno conto de
Kafka é, antes de tudo, uma mina inesgotável.
Com uma extrema economia de meios, tal
qual um poeta, o autor nos transpõe, de um só golpe, para o terreno da
experiência de uma surpreendente realidade, de uma particularíssima existência…
Bastam meia dúzia de palavras – num
estilo em que forma e conteúdo caminham sempre juntos – para sermos atirados,
de forma irreversível, à revelação contundente de um ser que assim se anuncia:
“Rígido e frio, eu era uma ponte, uma ponte estendida sobre o abismo”.
Não há aviso, não há claquete, e Kafka
nos atira de cara a uma situação insólita que, entretanto, parece nos dizer
profundamente respeito. E, se desta forma súbita começa seu narrar, nos larga a
mão, também subitamente, ao final do rápido conto, com a mesma suspensão que,
de início, nos arrebatou. Só podemos suspirar, ao final, de susto e realização
de uma poética que, antes de mais nada, desconcerta. Podemos sentir, enfim…
Como diz Mandelbaum, a obra de Kafka é
uma experiência no sentido mais pleno da palavra: “lendo-a, não se é mais o
mesmo” .
Não procederemos, neste momento, a uma
leitura detalhada do texto – mas frase a frase ele nos fará oscilar da
imobilidade do inumano para a encarnada e revolvente experiência humana – onde
cabem o desamparo, a ânsia, a dor, o desejo, a espera, a ilusão e a dúvida. De
sua força e rigidez de ponte para sua fragilidade e comoção humanas. De sua
materialidade asfáltica para sua comovente sustentação precária. De sua vocação
que é de ser passagem para a solidão de não ter conhecido transeunte. E de sua
decepção de encontrar um transeunte e este se revelar o desumano! E, por fim,
de ser uma coisa que, por definição, não conhece ou desconhece, espera ou se
frustra, para ser tomado pela angústia e incerteza tipicamente humanas, face ao
imprevisto no virar-se final da ponte, que a faz desabar, perdendo-se daquilo
que Kafka nos adverte desde o início: somos um homem que é ponte.
Entretanto, embora diga que “ponte
nenhuma pode, uma vez erigida, deixar de ser ponte”, esta ponte espera e isto
não é coisa de ponte. Mas se ao se virar desaba, isso, não obstante, não é
coisa de homem. Ou é…
E é neste exato ponto que o inumano de
Kafka nos concerne, que ele faz falar desta dimensão em nós… daquilo que nos
engessa e aprisiona. Nas formas e nos laços.
Mas que, apesar disso, não logra nos
enrijecer por completo, pois o tempo todo nossa ponte resiste em render-se de
sua humanidade, nos comovendo a alma por seu grito. E é esta alma de nosso
homem partido que o faz esquecer, no passo a passo deste precioso conto, de sua
existência mista, metamorfósica de homem-ponte e o faz cair, por sua
materialidade concreta quando, ainda assim, não se converte em mera ponte… Até
o fim Kafka nos arrasta a sua duplicidade ao pô lo a se recordar, durante a
queda, da lembrança dos seixos serenos que foram os únicos a lhe corresponderem
o olhar de dentro das águas frenéticas…
A um sem número de interpretações, ecos
e associações dá margem uma obra simples de um grande escritor. Entretanto,
nossa escolha por este conto se deu pela divisão inelutável a que o texto
apela. Por se tratar de um homem-ponte, muitas alusões este pequeno fragmento
narrativo pode evocar. Divisão tão experimentada na análise entre o que dizemos
e o que pensamos que dizemos, entre o que queremos e pensamos que queremos,
entre a palavra que nos funda e o que sentimos muito além das palavras, entre a
solidão de sermos um e a ilusão de um outro que sonhamos nos completar. Entre nossa
indeterminação inerente e a ilusão de um Outro sólido que nos dê sentido
estável. Entre o que compartilhamos às vezes plenamente e o que não conseguimos
nunca plenamente compartilhar. Entre sermos palavra e entranhas sensíveis,
habitados pela solidão do furo (moldura de ponte) mas também pela atração da
queda que o anula. Entre o desejo e a angústia, pergunta do humano…
Pensando também na modernidade de
Kafka, por onde pode respirar o humano num mundo de formas asfálticas? Por onde
podem caminhar a vida e os encontros?
Escolhi este conto pelo entre que é sua
substância movediça, pela mágica do metamorfósico tão presente em Kafka e por
nos apresentar numa dupla realidade que nos constitui, mas que pode nos
possibilitar ou aprisionar. E, por fim, pela identidade impossível a que este
texto aponta, por este homem que resiste a desumanizar-se, que se convulsiona
de suas formas, se agita, se revolve e, no limite do mais inóspito, aponta para
o movimento das águas que se estendem num sempre além…
Por sermos, enfim, inevitavelmente
partidos. E por tudo isso nos brindar com a faculdade da espera. Esperando para
melhor, esperando para pior, mas, como diz Lacan, de toda forma esperando…
Criação:
identificação ou modo singular do diferir?
O que um artista, um escritor, muitas
vezes tem o dom de produzir naqueles a que sua arte alcança – no caso presente,
de Kafka, por sua escritura – é um acercamento do mistério que funda a
existência humana. Estas obras nos fazem respirar, nos aconchegam numa sorte de
dimensão normalmente temida onde temos, por definição, o menor aconchego
possível. Lá onde estamos inteiramente sós e praticamente incomunicáveis.
Um artista consegue, via de regra, ter
a coragem de transitar por estas paragens e nos trazer os pequenos e preciosos
rastros que recolhe de um lugar onde a linguagem caminha em terreno movediço.
Caroço e coração da própria linguagem, o real, em psicanálise, traduz esta
dimensão extímica que, ao mesmo tempo que nos é radicalmente íntima, é alheia,
inominável e inapreensível. Dessa maneira, não é possível, falando de escrita,
ler ou escrever sem risco.
Clarice Lispector, ao ser procurada por
José Castello para falar sobre o ato de escrever, interpela seu entrevistador,
antes mesmo de que este lhe dirija palavra, dizendo: “Você é muito medroso. E
com medo ninguém consegue escrever” .
O mesmo ponto é abordado, em relação à
produção musical, quando Egberto Gismonti, músico brasileiro, num show,
confessa: “Não tenho medo da música”. Negação através da qual sabemos que se
denuncia, ao contrário, a presença de um temor que, não obstante, no caso
desses dois autores, é sabido e enfrentado. O que tais afirmações revelam é o
conhecimento vivido por estes artistas do risco iminente e inerente ao próprio
ato de criar, sua vizinhança do real em relação ao qual ninguém se aventura sem
consequências, muitas delas no corpo.
Dominique Laporte assinala a frequência
com que um escritor experimenta um risco corporal no ato de escrever. Diz ela:
“O risco corporal é imediato, pois não há nada que garanta o golpe do estilo –
podemos pensar também em estilete, pois é essa a origem da palavra estilo – de
que não escorregará do corpo da língua a minha própria carne envenenada pela
palavra, pela letra ou frase destinada a um Outro excessivamente familiar” .
Como podemos observar, o terror é o da
perda de contorno nas entranhas de um Outro que se torna excessivamente próximo
– como pura substância gozante – na medida em que o sujeito avança no limite da
linguagem. Por outro lado, a menção ao “veneno” que se espalha pela própria
carne envenenada pela letra nos acerca desta dimensão altamente provocativa que
o real, cortado pela letra, exerce nesses sujeitos, como um aguilhão que lhes
faz não terem, por outro lado, outra saída subjetiva senão a entrada,
igualmente violenta, pela borda da letra. É o que faz com que encontremos
posições radicais como a de Clarice Lispector, que declara ser insustentável o
estado da vida na ausência da escrita…
Numa entrevista para um programa de
televisão, ao ser interrogada por uma jornalista quanto aos seus hobbies, se
ela porventura os teria, Clarice, num primeiro momento, se limita a estranhar.
A entrevistadora põe-se, então, a esclarecer, acrescentando: “O que a senhora
faz, por exemplo, entre um livro e outro, quando não está escrevendo?” Ao que
Clarice, simplesmente, responde: “Eu morro. Quando não estou escrevendo eu
morro e agora, por exemplo, estou falando com você do meu túmulo” .
Golpe mortal, certeiro, cujo abismo que
abre na entrevistadora e nos espectadores é o mesmo que se desfecha na
diferença entre aqueles que podem se distrair da produção de marcas próprias e
aqueles para quem, sem esta dimensão radicalmente presente, resta muito pouco
do autêntico da vida. Isto também nos afasta de toda aproximação romântica do
ato de criar ou escrever, imaginado por alguns como um cálido passear pelos
personagens, ao balouço tranquilo da chamada inspiração. Para Clarice, isto é
insustentável. Como ter hobbies se o desafio é estar vivo? Contrariamente a
toda ideia de remanso que o imaginário social atribui aos artistas, muitos
testemunhos que encontramos no âmbito do processo criativo apontam a um
trabalho tão imperioso quando arriscado, além de visceral e doloroso.
Paulo Leite, fotógrafo brasileiro,
declara em um documentário sobre sua obra: “A fotografia é o meu chão. Este é o
meio que encontrei para expressar minhas coisas. Você tem que fazer… mesmo que
tenha que vender as coisas, fazer uma exposição, depois comprar de novo, botar
tudo no prego… É assim. Você tem que fazer” .
As referências recorrentes dos artistas
ao é preciso fazer nos dão pistas da imperiosidade da criação. O artista não
pinta porque quer ou gosta, mas porque precisa. Sem isso, ecoando Clarice, ele
morre. Ou, como nossa ponte de Kafka, ele desaba. Não lhe resta senão embrenhar-se
na confusão, na angústia do fazer e do não fazer, do aproximar-se e do
perder-se, do rastro e do decorrente vazio, muitas vezes estéril, que se abre
após o ato. Para que este possa se recolocar mais adiante…
Costuma-se falar da sublimação em
psicanálise, seguindo as trilhas de Freud, como um destino dessexualizado da
pulsão no qual se dá uma troca de objeto e de alvo. Porém, se tal definição nos
dá a ideia de uma aptidão pronta do artista, os relatos de muitos artistas
testemunham muito mais um processo convulsivo, corporal e fragmentário, onde
uma desfiguração e uma transfiguração se sucedem num constante movimento.
Tal processo é movido por um impulso
inevitável de algo que, por um lado, busca se inscrever e, por outro, afirmar a
reinvenção da própria linguagem, da dimensão da significação que se instaura
unicamente na medida em que um vazio movente – chamado por Lacan de objeto a –
vem a se recortar pelo esvaziamento do signo de seu significado. Trata-se de
uma operação destrutiva, de dessubstancializacão do mundo das coisas para o
encontro com a linguagem – o que nas crianças tanto se observa nos jogos de
ocultação em que o objeto, em sua substância concreta, imperante e invasiva, é
repetidamente feito sumir…
Manoel de Barros, numa declaração feita
no filme Janela da alma, ao falar da relação entre criação e visão, indica a
transfiguração como processo por excelência da arte em geral e da poesia em
particular. Diz ele: “Eu sou muito abrigado pelo primitivo… Eu acho que o
primitivo é que manda na minha alma, mais do que os olhos. Eu não acho que
entram pelo olho as coisas minhas. Elas não entram, elas vêm, elas aparecem, de
dentro, de dentro de mim. […] O olho vê. A lembrança revê as coisas e é a
imaginação que trans-vê, que transfigura o mundo, que faz outro mundo para o
poeta e para o artista de forma geral. A transfiguração é que é a coisa mais
importante para o artista” .
Embora, neste fragmento, o poeta isole
a lembrança da imaginação e saibamos, como psicanalistas, que estes processos
não se separam – as lembranças não deixam de ser ficções construídas –
interessa aqui, a Manoel de Barros, chamar a atenção para o caráter
essencialmente deturpador, transgressor e transfigurador do fazer criativo em
relação ao objeto. Este é um tema recorrente na obra deste autor que
repetidamente afirma a necessidade de “desinventar objetos”… .
Pommier, ao falar de sublimação e ato
criativo, traz uma citação de Picasso dizendo que o ato criativo é apenas
secundário e que “o que importa é o drama do próprio ato, o momento em que o
universo se esquiva para encontrar sua própria destruição” . Como não pensar,
obviamente, na pulsão de morte tal como a define Lacan, como “vontade de
destruição, de recomeçar com novos custos”? . Quando a pulsão de morte opera
produzindo parcialidades – ou seja, no sentido do desligamento de conexões
fixas para a produção de novas e a reinstauração permanente da polissemia –
esta passa a equivaler ao processo de nascimento da linguagem .
É o que lembra lindamente Manoel de
Barros no poema que já começa no balouço desta negação vital. Diz ele:
No descomeço era o verbo
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
Para cor, mas para som.
Então a criança muda a função de um verbo, ele
Delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer
nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
Entretanto, se tal nascimento vem a ser
um processo descontínuo no sentido de uma temporalidade cronológica, é
permanente no sentido do que assinala Pommier e lembra bem Clarice, quanto ao
evanescente sujeito da criação e do inconsciente. Aquele que cria – e aqui
trata-se do sujeito – morre alternada e indelevelmente quando se intervala de
sua criação, lugar de onde renasce, também, a cada ato.
Paulo Leite, no mesmo documentário
citado anteriormente, lembra o momento inaugural em que foi tocado pelo
mistério da fotografia. Ganhou, ainda criança, de seu pai, um laboratório
fotográfico. Tendo feito uma foto, preparou a emulsão conforme indicava o
brinquedo e daí surgiu uma primeira foto de seus dois irmãos ainda pequenos,
num registro e descoberta inaugurais que ele guarda até hoje, passados mais de
40 anos. E acrescenta: a cada vez que ele repete o ato de fotografar, que dá o
clique, reedita aquele momento mágico e reconhece: “Sou fotógrafo” .
Tal depoimento vai ao encontro do que
formula Pommier ao afirmar que “no momento em que o sujeito cria, é ele próprio
que é criado por sua obra – sendo a sua existência o que está no primeiro plano
da criação”, acrescentando, em seguida, que isto não é um estado adquirido,
substancial, mas que “é a cada instante que o sujeito deve afirmar sua
existência”, posto que evanesce .
Nesse ponto, podemos evocar a ideia de
exílio da escrita que nos traz Edson de Sousa, como aquilo que, ao eu, o ato
criativo cobra. Diz ele: “Quais as fronteiras, em todas as suas figurações
possíveis – zonas de passagens, territórios de silêncios, limites
intransponíveis – entre aquele que escreve e o sujeito-autor deste ato, entre o
escrito e evidentemente o leitor suposto?” E continua, mais adiante: “Todo ato
de escritura verdadeiro, ou seja, um escrito que produz um sujeito, implica uma
certa condição de exílio daquele que enfrenta o desafio de escrever. A tensão
que se cria é justamente que há uma diferença importante entre aquele que se
põe a escrever e o sujeito que este escrito produz” .
Isso nos faz pensar, de imediato, em
como a escritura e a criação em geral põem o sujeito em suspensão, em estado de
ponte. Nesse processo, toda ideia de controle e de unificação identitária se
perde, se espatifa. E é essa mesma suspensão que se dá na criação própria ao
dispositivo analítico. Por que tantas pessoas evitam a análise senão porque
tentam preservar suas sínteses egoicas? E por que tantos pacientes, quando
franqueiam algumas dessas primeiras zonas de passagem, comumente dizem que
pensavam que eram uma coisa e agora não sabem mais quem são? A análise produz o
contato com a multiplicidade identitária que vem a ser a própria subjetividade
humana, da qual a neurose ferozmente se defende. Em estado de ponte.
Lacan denuncia lindamente isso com seu
estilo quando, ao retomar a história chinesa da borboleta e Chuang-Tsé, a
revira repetidas vezes sacudindo nossas amarras com o seguinte trecho:
No sonho, ele é uma borboleta. O que
quer dizer isto? Quer dizer que ele vê a borboleta em sua realidade de olhar.
[…] Quando Chuang-Tsé está acordado, ele pode se perguntar se não é a borboleta
que está sonhando que é Chuang-Tsé. Aliás, ele tem razão, e duplamente,
primeiro porque isto é prova de que ele não é louco, pois não se toma por
absolutamente idêntico a Chuang-Tsé – e, segundo, porque não acredita dizer tão
bem. Efetivamente, foi quando ele era a borboleta que ele se sacou em alguma
raiz de sua identidade – que ele era, e que é em sua essência, essa borboleta
que se pinta com suas próprias cores – e é por isso, em última raiz, que ele é
Chuang-Tsé .
E aqui nos reencontramos, subitamente,
com nosso homem-ponte. Com tudo o que as metamorfoses têm a dizer do humano.
Quem somos? E será que somos nós, mesmo, quando nos tomamos por iguais a nós
mesmos? Nesse sentido, a metáfora de Lacan é preciosa, pois coloca o sujeito
como um ser em movimento contínuo e “que se pinta com suas próprias cores”.
Isso também não nos aproxima da ideia de identidade ou identificação como
diferença pura, se a entendemos como traço único singularizador que cai na
armadilha de novas equivalências saturantes. Mas fala de um diferir permanente
– evocando uma ideia cara a Derrida –, de um tornar-se outro em criação ou
transfiguração contínua, sem ponto de parada ou conhecimento prévio. A ideia de
estilo aqui pode servir desde que não se detenha em novas sínteses
acomodadoras. Será que somos donos de um estilo e pronto? Ou teríamos que
resgatar, no estilo, a lâmina do estilete?
Nas trilhas da crítica de Derrida ao
estruturalismo lacaniano, podemos pensar que sem a perspectiva de um rearranjo
significante permanente e de suas decorrentes transmutações se faz necessário
indagar se a assunção de um estilo não poderia se converter numa nova máscara
egoica, sob a roupagem perigosa de uma escrita pretensamente subjetivada. Nesse
ponto, Clarice Lispector nos provoca com sua agudez peculiar dizendo: “Escrever
nada tem a ver com literatura”, desafiando com isto toda caricatura romanceada
que a ideia de um bem narrar pode acarretar de um enredamento que culmina mais
em figurações imaginárias e arremedos criativos do que num ato criativo mesmo.
Em A paixão segundo G.H., Clarice nos
brinda com uma bela mas dura advertência, dizendo:
Já que tenho que salvar o dia de
amanhã, já que eu tenho que ter uma forma porque não sinto força de ficar
desorganizada, já que fatalmente precisarei enquadrar a monstruosa carne
infinita e corta- lá em pedaços assimiláveis pelo tamanho da visão de meus
olhos, já que fatalmente sucumbirei à necessidade de forma que vem de meu pavor
de ficar indelimitada – então que pelo ou menos eu tenha a coragem de deixar
que essa forma se forme sozinha como uma crosta que por si mesma endurece, a
nebulosa de fogo que se esfria em terra. E que eu tenha a grande coragem de
resistir à tentação de inventar uma forma.
Embora concordemos com Edson de Souza
quando diz que “quando pensamos no que transmite um texto, percebemos que
fundamentalmente o essencial é a lógica de sua construção, ou seja, seu estilo”,
há que se pensar se determinado estilo não pode se converter, ou nos arrebatar,
como diz Clarice, na invenção tentadora de uma forma – e de uma boa forma –
destinada mais a embelezar e retocar as agruras do humano do que de testemunhar
a presença, em nós, de uma nebulosa de fogo de origem entranhada e visceral que
deixa escorrer num texto suas marcas incandescentes e incontíveis.
Deciframento x indeterminação:
diferentes elos entre escuta e sublimação
Obedecendo à mesma lógica da divisão
proposta por Clarice entre o escrever e a literatura, podemos pensar em duas
formas bem distintas de ler e abordar a obra de arte também no tocante ao
indeterminado que um fazer autenticamente criativo impõe. Podemos encontrar, em
vias bem opostas, de um lado aquelas aproximações que permitem entrever o
assombro da experiência criativa e de outro as produções sobre a obra de arte
que primam por velar sua potência disruptora. Tais velamentos ou recalques
mesmo podem se dar tanto pelo viés explicativo da obra de arte, que a achata,
ou pelo viés romanceado, de um falar que não faz carne mas camufla e enfeita,
como fetiche, o furo que na arte eclode.
A ideia de estilo – tomada, entretanto,
como forma viva, ritmo de uma construção linguística que expressa
primordialmente a posição particular de um sujeito em relação à causa que o
funda em detrimento de qualquer derrisão conteudista – nos afasta de toda
leitura semanticizante de uma obra de arte, ou mesmo, da sessão de um paciente.
Nos faz pensar que o que mais produz efeito é o como se diz naquilo que se diz
e não o que se diz em si mesmo.
Nesse sentido, abre-se um abismo entre
todas as interpretações de sentido de uma obra de arte, de um poema e de uma
sessão em relação às apreensões ligadas às construções e aos enigmas que estas
obras recolocam continuamente. Numa posição de atribuição de sentido, de
decifração, falamos sobre uma obra de arte ou sobre uma sessão de um paciente
desde um lugar de fora ou acima delas e, de outra maneira, as escutamos e
tomamos como interrogação – para nós mesmos – quanto àquilo que dizem e que não
dizem, quanto ao que sacodem e rasgam o inteiro de nós, de nossas alienações
culturais inevitáveis. É quando podemos de fato nos deter nos recantos de
verdade, de mistério e revelação que as obras de arte apontam.
Renato Mezan se detém sobre esse tema
de forma bem aguda ao criticar a ideia de deciframento interpretativo de uma
leitura. Diz ele:
Que significa considerar que ler é
decifrar? Significa supor que a obra lida tem um sentido intrínseco, que a
leitura irá revelar se se dotar dos instrumentos adequados e se o leitor for
suficientemente perspicaz. Este sentido seria o original, a verdadeira intenção
do autor ou a verdadeira constelação de fatores que, combinados, resultaram na
configuração da obra tal qual ela se dá ao leitor: sentido original, intenção
profunda e fatores operativos seriam completamente restituíveis pela leitura
adequada .
Nem sempre a postura de deciframento é
tão claramente explicitada, ou consciente, para alguém que se propõe a
interpretar e, igualmente, para os ouvintes que o acompanham. Normalmente, tal
empreitada nos arrebata pelo fascínio que as ilusões de apreensão e de domínio
carregam. Isso normalmente esconde o parti pris de verdade no qual o enunciante
se baseia. Entendemos que tais leituras da obra de arte e da própria clínica
psicanalítica operam no mesmo sentido de um sintoma que, ao revelar uma
verdade, vela, no mesmo ato, as condições de sua produção. Tal mecanismo
funciona como recalque daquilo que, de enigmático, brota da produção artística,
ou seja, seu maior bem.
Diferentemente de todo viés redutor,
interpretativo ou patologizante que se faz costumeiramente dos artistas,
Alfredo Jerusalinsky aponta um outro tipo de abordagem em relação ao fazer
artístico ao deter-se sobre o trabalho de Camille Claudel. Diz ele:
[…] Num artista, trata-se de alguém que está inserido numa posição tal que,
desde o ponto de vista da sua subjetividade, está engatado, articulado ao
discurso social numa nuança, num remanso desse discurso onde um resto de real
se aninha. Carniça, excremento, vazio, miséria, beleza extrema que se revela
por contraste a imperfeição cotidiana, amor impossível, eternidade inatingível,
gozo sem limite. Vértice extremo do real que, pela sua virulência, potência,
crueza e até crueldade, requer uma competência, esforço e condição muito
especiais desse sujeito que ficou engatado para poder simbolizar este resto .
Embora seja bastante esclarecedora a posição de Jerusalinsky e se situe, antes
de mais nada, como antinômica a toda prática de psicanálise aplicada, quando
estamos no campo da arte, se se trata de simbolizar um resto passível de
nomeação, trata-se também de fazer eclodir o enigma que a produção artística
põe a nu e do qual se alimenta. Trata-se, a meu ver, na leitura da obra de
arte, tanto de trazer suas luzes sobre aquilo que nossas alienações nos furtam,
constituindo um inominado de nosso tempo (que é o que Alfredo aponta), como
também de realçar seu caráter eminentemente disruptor que a faz ser, como diria
Lacan, porta-voz do vazio da Coisa, ou seja, puro mistério…
O mistério
como motor da criação artística e analítica
A Coisa, das ding, é um conceito
cunhado por Freud em 1895 no contexto de seu Projeto de uma psicologia
científica (publicado postumamente), e que permanecerá, como tal, restrito a
esta obra, não retornando sob essa forma em nenhum de seus textos posteriores.
Dentro da elaborada engrenagem teórica
do Projeto, a Coisa é situada por Freud no interior do chamado Complexo do
próximo, o Nebenmensch. Entendido como efeito das experiências infantis
iniciais da criança com o semelhante, o Nebemnmensch não é propriamente o
semelhante, mas uma estrutura complexa referente às apreensões psíquicas do
outro que constitui, para a criança em desamparo, “o primeiro objeto de
satisfação, o primeiro objeto hostil, assim como o único poder auxiliar” .
Tal complexo se divide em duas partes
componentes: uma que pode ser compreendida, assimilada a marcas de movimentos,
sons, gestos e imagens visuais vivenciados anteriormente pelo infans com o
outro ou com o próprio corpo (gritos, movimentos de mãos etc). Esta é a
componente deste complexo que permanece inscrita como traços no sistema de
memória – chamado no Projeto de sistema psi – integrando as redes de
trilhamentos próprias a este sistema. A outra parte desse composto, entretanto,
apresenta-se, diz Freud, como portadora de traços “novos e incomparáveis” do
outro, permanecendo “como estrutura constante, coesa como coisa” escapando ao
terreno da representação. Permanece no universo psíquico como algo
inapreensível, indecifrável, ou seja, como um furo na representação.
Lacan retomará esse conceito em 1960,
no Seminário 7, A Ética da psicanálise, situando esse vazio na representação
como “um primeiro exterior em torno do qual se orienta todo o encaminhamento do
sujeito”.
Construído a partir das primeiras
experiências de satisfação vividas pela criança com o Outro primordial e
carregadas de um prazer inaudito, esse furo figurará imaginariamente como um
resto inalcançável de satisfação que será sempre almejado pelo sujeito em seus
esforços, em sua espera, em seu desejo, como um horizonte sonhado mas
presentificado apenas como saudade. Move o sujeito e escapa dele
incessantemente – através de rastros de cuja totalidade sonhada entrevemos
apenas o perfume. Inebriante, decerto, mas fugaz tal como o que se ilumina nas
entrelinhas do que os escritores apenas tangenciam, roçam incessantemente em
suas poéticas.
É o que nos evoca a frase de Barthes,
ao falar do trabalho interminável do escritor. Diz ele: “Que não haja
paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se conformam, e
é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem, que produz, numa
faina incessante, a literatura” .
Numa metáfora tanto certeira quanto
bela, Lacan aproxima o trabalho do artista ao do oleiro que, ao esculpir um
vaso em um movimento rápido e giratório, gera em quem assiste a sensação
desconcertante de que é do vazio que nasce o vaso como borda quase invisível.
Ao tomar o vaso como suporte de sua
teorização, Lacan se referencia no trabalho do oleiro como sendo “uma das
funções artísticas mais primárias”. Lembra que o vaso tem como função
primordial a de “elevar alguma coisa”. E acrescentará, como predicado: essa
coisa é um nada. “É justamente o vazio que ele cria, introduzindo assim a
própria perspectiva de preenchê lo. O vazio e o pleno são introduzidos pelo
vaso num mundo que, por si mesmo, não conhece semelhante”.
Tal efeito se dá, decerto, por sua bela
moldura de vaso que eleva este vazio a um pleno antes insuspeitado. Por seu
feliz torneado, a obra-vaso termina por juntar, em sua forma e ao mesmo tempo,
estas três dimensões: a do traço, a do segredo e a do sagrado.
Traço que se faz na terra que o oleiro
modela e à qual Lacan faz equiparar a materialidade da introdução inaugural de
um significante que, fazendo marca, introduz, junto com a representação e no
mesmo ato, seu além: a Coisa. Ou seja, tudo aquilo que da experiência de
satisfação primordial não cabe no domínio dos registros, constituindo um inominável,
um resto irredutível sempre a dizer, a reencontrar…
Prossegue ele:
Ora, se vocês considerarem o vaso, na
perspectiva que inicialmente promovi, como um objeto feito para representar a
existência do vazio no centro do real que se chama a Coisa, esse vazio, tal
como ele se apresenta na representação, apresenta-se, efetivamente, como um
nihil, como nada. É por isso que o oleiro, assim como vocês para quem eu falo,
cria o vaso em torno desse vazio com sua mão, o cria como o criador mítico, ex
nihilo, a partir do furo .
Porém, se, na modelagem desse furo, este toma corpo junto com o traçado que o
modela e assim se eleva, na obra, um objeto à dignidade da Coisa –
característica do sublimatório –, na interpretação da obra de arte a mesma
dimensão de “unidade velada” precisa ser mantida para que a sublimação se
prolongue através daqueles que se propõem a colocá la em palavras. Entretanto,
se por nossa fala nos propusermos a decifrar a obra, faremos o contrário do
trabalho sublimatório, degradando a Coisa à indignidade do objeto,
arrancando-lhe o mistério…
Seria o mesmo que realizar o inverso do
trabalho do oleiro a que se refere Lacan neste mesmo Seminário. Ao contrário de
esculpirmos o vazio no vaso – dando-lhe um lugar de causa e horizonte
intangível – tratar de enchê lo de barro seco para pôr em relevo a matéria de
que é feito. São os mesmos riscos que corremos ao tentar responder aos enigmas
da origem, tema das investigações sexuais infantis…
A propósito disso, contamos com uma
preciosa advertência de Lacan no Seminário 11. Diz ele:
[…] os efeitos só se comportam bem na
ausência da causa. Todos os efeitos estão submetidos à pressão de uma ordem
transfactual, causal, que exige entrar em sua dança, mas, se eles se dessem a
mão bem apertado, como na canção, fariam obstáculo a que a causa se imiscuísse
em sua roda… A causa inconsciente é um ??????(mé on), da interdição que leva um
ente ao ser, malgrado seu não advento, ela é uma função do impossível sobre a
qual se funda uma certeza.
O analista como aquele que pode se
pasmar
Trata-se, portanto, de um se deixar
esculpir, tanto na clínica psicanalítica quanto na arte – e, inevitavelmente,
na vida – pela ausência da causa, da qual advém, por consequência, a certeza do
ato subjetivo, criativo. Fazer o jogo do salto, como diz Lacan a propósito do trabalho
requerido à criança a partir do confronto com o fosso que, da borda do berço,
se abre a partir das presenças e ausências do desejo materno.
Não há salto possível, entretanto, sem
o fosso, sem o intervalo de onde nossa ponte vem a contemplar, serenamente, os
seixos fundos do riacho por sobre onde, não obstante, ela permanentemente se
arrisca.
Na leitura que Lacan faz do jogo do
Fort!Da! do netinho de Freud, contrariamente ao que se costuma pensar, ele não
propõe entender o carretel como representação miniaturizada da mãe, mas como
pedacinho que se destaca do sujeito a partir das idas e vindas dela. Pedaço ao
qual o sujeito irá se identificar. É a partir deste corte, vivido como uma
automutilacão, que uma divisão fundamental se opera e a criança, com seu
objeto, “passa a saltar as fronteiras de seu domínio transformado em poço e que
começa a encantacão” .
“O homem pensa com seu objeto” ,
prossegue este seminário, trazendo-nos uma luz muito importante para a questão
da criação. Toda ideia de transfiguração, aqui, ecoa. Há que se transfigurar a
realidade, continuamente, para que nela eu encontre meu lugar de sujeito. É aí
que se abre o mundo encantado do artista. E do sujeito. Ali onde a ilusão do
reencontro com o objeto mítico brilha e se reatualizam tanto as marcas através
das quais o artista se utiliza para o jogo do salto significante como sua
própria divisão. Entretanto, embora seja movido por um encantamento inspirador,
o trajeto do artista se dá, como para o nosso homem-ponte, pelas bordas de um
abismo sobre o qual ele, se resistir, poderá ir trabalhando seus fios. Mas
trata-se, fundamentalmente, de um trabalho. E de uma suspensão.
Nesse sentido, entendemos que uma
leitura de uma obra de arte que não tampe o fosso a partir do qual ela se engendra
– e engendra o universo em permanente destruição criativa, como diz Picasso –
deve operar em homologia com a função do chiste, formação longamente estudada
por Freud e retomada por Lacan como paradigmática do trabalho do inconsciente.
Freud isolou, no chiste, dois tempos: a
estupefação e o esclarecimento (ou iluminação). No primeiro, toda a ordem
linguística imperante vacila no surgimento da nova produção significante, o
chiste. Surge o sem sentido. “Familionário”. No segundo tempo, através de cadeias
de metáforas e metonímias, um novo sentido se engendra, provocando o riso pelo
triunfo da irrupção do recalcado através de seus disfarces criativos.
Reafirmação da linguagem sobre o código, do significante sobre o signo, do
desejo sobre a demanda do Outro.
Lacan propôs chamar o primeiro tempo do
chiste de peu-de-sens, pouco-sentido que eclode tão logo surge a neoformacão
significante e todo saber instituído se desarma. Quedamos estupefatos numa
suspensão de sentido. O que quer dizer aquilo? Aquela palavra, expressão ou
gesto? O momento seguinte é o passo de sentido, o pas-de-sens, cujo duplo
sentido da expressão aqui escolhida de “passo de sentido” e de “nenhum-sentido”
aponta para a real função do chiste que é a de esvaziar o sentido pleno e
introduzir o enigmático, o território do que escapa a toda apreensão de saber.
Fresta pela qual se introduz o desejo, a invenção e o riso se dá…
Dê um exemplo de substantivo concreto,
diz a professora a Joãozinho. – Minhas calças, professora. – E de abstrato? –
As suas, professora.” Chiste lindamente cunhado por Guimarães Rosa que nos
permite entrever a mágica dessa formação inconsciente em que o concreto e o
abstrato das calças da professora deslizam deliciosamente do estatuto de
substantivos àquilo que Joãozinho pode ou não pode pegar…
Propor tomar a obra de arte e o discurso
numa análise numa homologia com a chamada terceira pessoa do chiste como aquele
que pode se deixar afetar pela potência desconcertante do enigmático e, daí,
continuamente partir, é poder pensar a posição do analista como aquele que pode
se pasmar, se surpreender com aquilo que o paciente e o mundo em geral lhe
apresentam como se, de fato, ele nunca soubesse direito aonde está. É ser um
analista Chuang-Tsé…
Isto implica, evidentemente, a perda definitiva para o psicanalista de
uma posição de mestria e de domínio sobre o humano, ainda que não cessem de nos
convocar a responder do lugar da onisciência, do lugar do especialista. Poder
ouvir desde um não saber é poder desabar, como faz nossa ponte, por sua
intrínseca plástica matéria, por ser homem-ponte. Essa divisão é fundamental e
é dela que pode advir a escuta de uma obra de arte. E uma escuta de nossa
clínica iluminada pela arte. Escuta-transfiguracão, escuta-leitura sempre
inacabada, enigmática, que vem a operar em nós metamorfoses inesperadas que só o
vazio da Coisa pode engendrar.
Palavras finais
Evidentemente
que, também no campo da arte, podemos pensar que há aqueles (ou há produções)
que contam histórias para que sejam verdades e outros, para que fiquemos com
perguntas. Talvez um precioso legado da arte autenticamente criativa,
disruptora, aos psicanalistas de hoje, seja o de nos lembrar do mistério das
possibilidades humanas além dos destinos pré traçados da repetição.
Possibilidades que se jogam num espaço de arranjos possíveis mas também imprevisíveis,
compostos de orlas de trilhamentos que se atravessam e se rearranjam
continuamente – a cada nova experiência, a cada nova marca. Sempre entre
determinação e indeterminado. Indeterminado de cartas/letras que,
diferentemente do que diz Lacan, podem não ser tão marcadas e não chegar sempre
aos seus destinos . Como com todos os objetos amados e obras humanas, em
relação à vida e também à função analítica, o melhor que talvez nos reste seja
poder sempre reinventar, partidos que somos.
Ou soletrar,
como faz Paulo Mendes Campos, em relação ao inapreensível do amor. “Por
qualquer motivo o amor acaba”, diz ele. “Para recomeçar em todos os lugares e a
qualquer minuto o amor acaba”.
Não seria isso o que chamamos desejo??
Referências bibliográficas
Barros M. (2004). O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record.
Barthes R. (2007). Aula. São Paulo: Cultrix.
Campos P. M. (2005). O amor acaba. In: Werneck H. (org., introd. e
notas). Boa companhia: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras.
Castello J. (1999). Inventário das sombras. Rio de Janeiro: Record.
Derrida J. (2005). Freud e a cena da
escritura. In: A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva.
_____. (2007). O carteiro da verdade. In: O cartão-postal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira.
Fernandes L. R. (2000). De volta ao chiste. In: O olhar do engano: autismo e
Outro primordial. São Paulo: Escuta.
Freud S. (1905/1980). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição
Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
_____. (1995). Projeto de uma psicologia. Trad. Osmyr Faria Gabbi Junior. Rio
de Janeiro: Imago.
Jerusalinsky A. (1995). Camille Claudel: uma neurose obsessiva feminina.
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre.
Kafka F. A ponte. In: Paes, J. P. Contos fantásticos. São Paulo: Ática.
_____. (2002). Narrativas do espólio (1914-1924). Trad. e posfácio de Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras.
Lacan J. (1999). O seminário, livro 5: As formações do inconsciente
(1957-1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (1991). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-1960). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar.
_____ (1988). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (1963-1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lapporte D. (1984). Aprés-coup, Le discours psychanalytique. Écritures
manantes: questions sur le désir d’écrire. Paris, année IV, (4), dec.
Lispector C. (2009). A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco.
Mandelbaum I. (2003). Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível. São
Paulo: Perspectiva.
Mezan R. (1988). O enigma da esfinge. São Paulo: Brasiliense.
Paes J. P. (org) Contos fantásticos. São Paulo: Ática.
Pommier G. Conferência realizada em 19 ago. 1986 em Niterói. Inédito.
Rosa G. (1985) Tutameia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Souza E. L. A. (2001). Totumcalmun. A condição de exílio da escrita. In:
Bartucci G. (org.). Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Imago.
Lia Fernandes é psicanalista, mestre em
Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro
do Departamento de Psicanálise da Criança do Sedes Sapientiae, autora de O
olhar do engano: autismo e Outro primordial (Escuta, 2000).
Fonte: Revista Percurso 43 - Site: www2.uol.com.br/percurso/