sexta-feira, outubro 28, 2022

A ERA DO TRAUMA

 



A era do trauma


Márcio Seligmann-Silva


O termo “trauma” tornou-se nas últimas décadas um conceito-chave nos estudos culturais e nas assim chamadas ciências humanas de um modo geral. Se o trauma pode ser pensado tanto como um evento que produz um abalo (“o trauma que alguém sofre”) como também como o efeito desse evento (“a pessoa traumatizada”), é porque estamos diante de um desses fenômenos que colocam em questão as fronteiras entre o sujeito e o seu mundo. O trauma desestabiliza qualquer noção simplista de “realidade”. Ele tensiona a possibilidade de se pensar um mundo representado sem problemas pelo sujeito. Pensar o trauma implica uma série de questões que foram colocadas historicamente pelo século 20. Esse século, que revelou com toda clareza o profundo significado da dialética do Iluminismo, ou seja, em que medida a razão Ocidental se desdobra simultaneamente em progresso (técnico-científico) e em barbárie (nas relações inter-humanas e nossa com a natureza), entronizou também o trauma como conceito que permite lançar luz sobre nós.

Mas o périplo desse conceito está longe de ser linear e ascendente. Termo derivado do grego e significando etimologicamente “ferida”, ele foi ressignificado pela psicanálise, na última década do século 19, e alternou fases de esquecimento com momentos em que se tornou reconhecido como meio para descrever-nos em um mundo cujas relações sociais não deixaram de mostrar uma altíssima dose de opressão e violência. Mas não se trata apenas de um conceito que simplesmente se coloca na continuidade do de “choque”, e que já servia para explicitar essa violência da vida moderna. Antes, já na sua origem psicanalítica, o trauma serve também para indicar a nossa relação com uma força desestruturante que vem de dentro de nós, derivando daquilo que Freud denominou de “impulsos” ou “pulsões”, Triebe. Ou seja, pensar o trauma como marca do indivíduo moderno significa pensá-lo como um sobrevivente que resiste tanto aos ataques de um mundo externo como de seu próprio mundo interior, que tem o seu eu constantemente fragmentado, posto em questão e à prova por esses ataques. Essa visão, por assim dizer, “traumática” do indivíduo moderno é correlata também a uma nova visão do que seria a verdade, a saber, é fruto de uma profunda crise da noção de verdade, que se tornou clara em Nietzsche e que tomou novas proporções com a psicanálise freudiana.

A era das destruições, genocídios, violência neocolonial, ditaduras sanguinárias, espoliação dos recursos naturais da Terra, exigiu a reformulação do conceito positivista de verdade como representação autossuficiente do mundo. Foi abalada a visão da história como dirigida por um progresso contínuo, que coloca o presente no ápice da humanidade e o futuro como um paraíso tecnológico que nos aguarda. Foi abalada a visão dos heróis da história, como sendo os que estavam diante de Estados e exércitos. A terceira ferida narcísica, levada a cabo pela psicanálise, depois de termos perdido, com Copérnico, a centralidade do universo e, com Darwin, a certeza de que somos criaturas feitas por Deus, afirma que o eu não é o senhor na sua própria casa. Ao lado do conceito de alienação, desenvolvido pelo marxismo, o conceito de trauma se tornou indispensável para entender o indivíduo moderno e compreender suas mazelas.

Assim, gostaria de lançar luz sobre alguns dos aspectos do conceito de trauma, visando destacar essa sua importância como meio de construção de uma visão crítica da história e de nossa autoimagem. Para tanto me restrinjo aqui a explorar algumas passagens dos textos de Freud e a desdobrar do conceito de trauma uma ética do testemunho.


Trauma e pulsão de morte

Freud nunca procurou desenvolver uma “teoria do trauma” em sentido estrito. Antes, o conceito aparece e desaparece de seus escritos e não apresenta uma definição unívoca. Já em seus Estudos sobre a histeria (1893-95), escritos juntamente com Breuer, ele escreve sobre a “histeria traumática”, referindo-se às pacientes que teriam vivido experiências “de medo, vergonha ou dor psíquica”, as quais teriam se inscrito de modo muito particular em suas psiques. Essas memórias seriam uma espécie de corpo estranho no paciente, caracterizadas por uma manifestação temporalmente deslocada. É nesse texto que lemos a famosa definição segundo a qual as histéricas “sofrem, antes de mais nada, de reminiscências”. Aqui já encontramos, portanto, uma série de características que acompanharam o conceito: a ideia de um encontro marcante com uma realidade específica; a noção de um período de latência até o momento de manifestação da doença; a concepção do traumatizado como alguém que sofre por conta da memória estranha que o habita sem estar integrada à sua psique. Também já estava evidente para Freud que essas memórias teriam um cunho sexual, daí ser chamada de “teoria da sedução”, ideia que nem sempre acompanhará, ao longo do século passado, as definições de trauma. Ainda nos anos 1890 Freud abandona essa teoria da sedução e a substitui pela noção de uma fantasia de sedução. Ou seja, as cenas narradas pelos pacientes poderiam ser vistas como frutos da fantasia. Essa mudança de acento foi posta em questão por, entre outros, Sándor Ferenczi, que em sua teoria volta a “dar grande importância ao fator traumático original na equação etiológica das neuroses. [...] são sempre perturbações e conflitos reais com o mundo exterior que são traumáticos e têm um efeito de choque, que dão o primeiro impulso à criação de direções anormais de desenvolvimento”. Como escreveu em 1929, “as fantasias histéricas não mentem”.

Mas voltando a Freud, foi apenas em 1920, em seu estudo fundamental “Além do princípio do prazer”, que o conceito recebeu seus contornos mais claros. Com a guerra, as neuroses traumáticas passaram a ser estudas ao lado das neuroses de guerra. Freud enfatiza o papel do susto, Schreck, e do medo, Furcht, no evento que desencadeia o trauma. Ele diferencia a angústia, Angst, dessas duas sensações, já que ele considera a angústia como um afeto que nos prepara e protege do susto e do medo. A situação traumática seria aquela na qual a preparação angustiosa falha e permite que sejamos surpreendidos. Daí os sonhos dos traumatizados serem caracterizados por uma volta à situação traumática, em uma tentativa atrasada e sempre condenada ao fracasso, de aparar o agente do trauma. Ocorre o que Freud denomina de “fixação no momento do trauma”. Isso explicaria por que esses sonhos fogem à lógica do princípio do prazer que, segundo seu ensaio de 1900 sobre a Interpretação dos sonhos, determinaria nossa atividade onírica.

Nesse ponto de seu texto, Freud introduz uma digressão que ficou famosa, sobre o jogo de seu neto em seu berço. Trata-se do jogo que em alemão se denomina Fort-Da, uma espécie de esconde-esconde, no qual a criança joga algo, para em seguida pegá-lo de volta. Esse jogo, nota Freud, pode ser visto como uma tentativa da criança de se tornar agente com relação à situação opressora de desaparecimento da mãe de seu campo de visão. Jogando com a dor, a criança transformaria a dor em um ganho de prazer. Ele fala de um “impulso de apoderamento” em uma situação de desamparo e lembra que também os adultos fazem algo semelhante, como nas tragédias, obras a que assistimos com fruição e que serviriam para uma elaboração espiritual daquilo que causa desprazer. Mas o que interessa a ele naquele momento não é esse desvio da dor para o prazer via jogo, mas sim o que denomina de “compulsão à repetição” que vemos tanto no caso dos traumatizados como nesses jogos. Para ele, essa compulsão seria “mais primordial, mais elementar, mais pulsional do que o princípio de prazer”. Impossível resumir aqui os detalhes desse ensaio cheio de insights surpreendentes, mas o fundamental é reter como Freud associa essa compulsão traumática à repetição a uma pulsão de morte, conceito que ele desenvolve no ensaio de 1920 e será desdobrado mais tarde, por exemplo, em Mal-estar na cultura (1930), quando ele falará de “pulsão de destruição” (Destruktionstrieb). A conclusão de Freud, partindo de uma reflexão sobre a compulsão à repetição contida na situação traumática, é que a nossa vida tem como objetivo a própria morte. A vida é um (mero) desvio em direção à morte. Vivemos para além do princípio do prazer e as nossas pulsões sexuais (a libido) estão submetidas à pulsão de morte. Essa teoria, escrita no tempo do “após”, que, no caso de situações traumáticas é o tempo do “ainda”, da Primeira Guerra Mundial, é com certeza uma filha de sua época.

O homem Moisés e a religião monoteísta

Não por acaso, o período histórico no qual Freud mais insiste em sua tentativa de apresentar a noção psicanalítica de trauma, dá-se justamente durante o governo nazista na Alemanha e, portanto, em meio à corrida armamentista que levaria à Segunda Guerra Mundial. O homem Moisés e a religião monoteísta (1939) é considerado o testamento teórico e pessoal de Freud. Nele, buscou pensar as causas originárias do antissemitismo exterminador de sua época, partindo das premissas da psicanálise. Esse mergulho na história do judaísmo é em grande parte uma construção, em termos psicanalíticos. Uma das peças centrais desse constructo é a noção de trauma que tem em si, como vimos, a ideia de um período de latência entre o evento originário e a manifestação dos sintomas. Para Freud, Moisés teria sido um líder egípcio que passou ao povo judeu a religião monoteísta do faraó Akhenaton. Esse povo, no entanto, teria posteriormente se rebelado contra Moisés e o assassinado. Décadas depois, após um período de esquecimento do monoteísmo, este teria sido como que revivido quando do aparecimento de um segundo Moisés, em Cades. O que me interessa no ensaio é o local que pode parecer proporcionalmente exagerado dado à reflexão sobre o conceito de trauma. Para explicar do ponto de vista psicanalítico a noção de latência ou incubação, ou seja, de esquecimento temporário, Freud desenvolve uma longa passagem sobre o trauma. Novamente, sua época deixa-se inscrever por sua pena. A história cultural torna-se, aos olhos de Freud, no limiar do genocídio judaico, uma história de sobrevivências. A religião de Atem teria sobrevivido através de traços, Spuren, que germinaram novamente em Cades. Algo esquecido teria, ainda assim, exercido um efeito poderoso sobre toda uma população. A esse encadeamento de ideias, Freud associa novamente uma análise da cultura grega como elaboração de catástrofes históricas. Ele se pergunta qual seria a origem do material lendário que alimentou as epopeias de Homero e as tragédias dos grandes dramaturgos áticos. A resposta que dá é clara: esse povo viveu em sua pré-história uma fase de grande brilho e eflorescência que foi sucedida por uma “catástrofe histórica” que levou à sua decadência, sendo que essas lendas permitiram uma conservação dessa “obscura tradição”. Para Freud, as pesquisas arqueológicas de sua época confirmam essa tese – assim como, acrescento, a arqueologia da psique proposta por ele, confirmaria que nossa vida anímica é um campo habitado por “obscuras tradições”. Ele propõe aos historiadores da literatura empreender esse trabalho arqueológico em outros contextos. Freud tem certeza de que eles também trarão à luz “um pedaço de pré-história”.

Sempre o historiador da cultura se depararia com algo semelhante à estrutura do trauma, que Freud assim descreve: “Denominamos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande importância na etiologia das neuroses. [...] a gênese de uma neurose invariavelmente remonta a impressões muito primitivas da infância. [...] a experiência adquire seu caráter traumático apenas em resultado de um fator quantitativo”. Em outra passagem, quando Freud descreve a figura daquele que é traumatizado, podemos perceber uma prefiguração da testemunha, figura que se tornou paradigmática no século 20: “Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo vivido ou ouvido, isto é, experiências [Erlebnisse] ou impressões [Eindrücke]”. Essas “impressões” inscrevem-se com os traços ambíguos com que Freud pensa a inscrição psíquica, ou seja, são algo ao mesmo tempo marcante e que se torna “esquecido”, latente – latejante. O trabalho do psicanalista - arqueólogo seria o de trazer essas inscrições à sua legibilidade. Assim, o paciente consegue sair de sua “fixação no trauma”, marcada simultaneamente por reações reiterativas (compulsão à repetição) e negativas (evitações do tipo fobias e inibições).

A humanidade, para Freud, também viveria sob o signo (a sombra) do trauma. Tanto nesse ensaio de 1939 como no de 1912, Totem e tabu, ele desenvolve a teoria segundo a qual a cultura teria se iniciado com o assassinato do pai da horda primeva, levado a cabo pelos seus filhos em revolta. Esse fato traumático teria sido repetido pelos judeus que assassinaram primeiro Moisés, e pela crucificação de Cristo – assim como pelas tragédias e por tantos outros atos de cultura de cunho marcadamente sacrificial. Ele acredita, portanto, em uma herança transgeracional do trauma, tema que se tornou tanto mais importante ao final do século 20, quando assistimos às sucessivas gerações de vítimas do terror genocida e a seus descendentes portando consigo, ou tentando portar, o testemunho após os genocídios que marcaram esse século – o armênio, o judaico, o dos tutsis, de bósnios, de vietnamitas, de cambojanos, de populações africanas nas guerras de independência e em seus desdobramentos, de indígenas, mas também de gerações inteiras perseguidas por ditaduras na América Latina e em outros continentes. Freud estabelece uma distinção fundamental entre os que ficam presos ao círculo do eterno retorno da repetição da cena traumática e os que tentam inscrever essa cena, elaborá-la. Essa diferença pode ser também aquela entre a loucura fundamentalista e a conquista da liberdade, com toda a precariedade que caracteriza essa última.

A tarefa do testemunho

A cultura seria toda marcada pelo ciclo das catástrofes seguidas do conflito entre esquecimento e tentativa de inscrição. A psicanálise formula à humanidade a tarefa dessa inscrição. Trata-se de uma ética da escuta e da construção de narrativas. Esse processo abriu a consciência para a tarefa do testemunho, com todas as aporias que essa tarefa implica. (Remeto aqui o leitor aos dossiês de números anteriores da revista CULT: no23, “Literatura de testemunho”; no197, “Arte como inscrição da violência” e no203, “Literatura e experiência”). O testemunho vai a contrapelo da tradição da historiografia como arquivamento do passado. É essa recusa da competência do registro tradicional da história, que Lyotard deduziu da destruição genocida de Auschwitz e que o também filósofo de origem armênia Marc Nichanian tomou como ponto de partida para a sua pesquisa. Trata-se do desafio de se pensar a “meta-realidade” que sobrevive à destruição da realidade: o historiador deve saber dedicar-se a outras práticas, sobretudo a ouvir isso que Lyotard chamou de modo tão eloquente de “o que resta do testemunho”, em seu ensaio Le différend (1983). O registro tradicional, do trabalho da história como levantamento de evidências e de documentos, de provas e atestações irrefutáveis, estava ligado ao registro da lei do arquivo e do arquivamento. A lógica do arquivo como arkhé (origem), que acredita na construção da realidade a partir do documento, que pensa dentro da análise classificatória, da articulação e imposição de hierarquias, que reduz o outro à normalidade e igualdade do próprio, essa lógica do arquivo está também por trás da razão genocida. A fúria genocida quer apagar do arquivo da Terra toda uma população. Ela barra a inscrição de qualquer traço. Nas palavras de Nichanian: “A vontade genocida [genocidaire, genocidária] é aquela que quer suprimir o fato no ato mesmo que o executa. Vemos aí um fenômeno característico do conjunto do século 20, que é o século dos genocídios justamente porque ele é o século do arquivo” (La perversion historiographique. Une réflexion arménienne, Lignes, 2006).

Inspirado no ensaio Force de loi, de Jacques Derrida, Nichanian percebe nessa lógica de autorrasura do gesto genocida, que incorpora ainda uma violência mítica, uma “perversão historiográfica”, título de seu poderoso ensaio de 2006. Expliquemos melhor. A lógica da historiografia tradicional, arquivista, arquiarquivista, pretende que só exista fato se houver provas. Trata-se, como Foucault o demonstrou nos anos 1970, do paradigma judiciário, da verdade como atestação visual, que domina no âmbito da história-arquivo. Já o modelo que vê a história como trauma, contrariando veementemente o anterior, aponta para a necessidade da escuta do testemunho. O historiador tradicional recusa a qualidade de fato ao evento traumático, justamente porque este se recusa e resiste à universalização. Trata-se, então, de abandonar o registro dos fatos e o próprio arquivo e seu poder arcôntico de dizer onde está e o que é a verdade. Trata-se de assumir a visão traumática da história e a necessidade de inscrever a violência a contrapelo da lei do arquivamento – que é também também a lei do esquecimento da violência. Assumir a natureza traumática da história, Cathy Caruth já o escreveu, implica assumir, antes, que “os eventos são apenas históricos na medida em que eles implicam os outros”. A história como trauma nunca é apenas a nossa, mas sim se dá em diálogo com a dos outros. Trata-se do abrir-se à história (traumática e silenciada) do outro. Veja-se o caso brasileiro, com sua incapacidade crônica de inscrever sua longa e terrível história de violências, da escravidão à última ditadura, às histórias dos Amarildos de nosso presente. Esse silêncio nos condena também a repetir sem trégua a violência iniciada pelo ciclo colonial.

Autores, Vários. Cult #205 – Judith Butler. 



segunda-feira, agosto 22, 2022

ROMANCE FAMILIAR



Liturgia: Sagrada Família, tempo para “recapitular” – Diocese de Anápolis




 ASSUNTOS DE FAMÍLIAS NO INCONSCIENTE

 

Jacques Alain Miller


 

A família foi, na China, durante séculos, o princípio ordenador do universo, como se ela apresentasse uma hierarquia natural, fundasse uma harmonia universal. O pai como chefe e a mãe ao seu lado: tal é o modelo de ordem universal regendo o laço social, mas também o movimento dos planetas – o que reenvia a família - no extremo, do lado da natureza. Pensar a família como estando ao lado da natureza é uma tentação, uma vez que entre os animais, este tipo de laço existe (não entre os insetos que se apresentam a nós, muito mais como uma metonímia da sociedade), mas em outras espécies. Há sempre a tentação de fundar a família sobre a reprodução.

É possível que hoje, no discurso da ciência se possa dar o matema da reprodução, dar uma fórmula significante. Isso torna ainda mais necessário o estabelecimento de uma descontinuidade entre os modos de reprodução e a família, e explica também aquilo que nós chamamos de "dimensão histórica da família", que não foi sempre tal como nós a conhecemos hoje: no decorrer do tempo, foram inventados diferentes modelos de família, o que nos permite estabelecer esta descontinuidade entre a natureza e a família.

 

Família, Santa Família

O traço de gênio do cristianismo, tão distante da crença chinesa, foi ter elevado a família ao divino, ao ponto que falamos de Santa Família. A psicanálise, como o cristianismo, é também solidária da família. Lacan diz que a psicanálise participa da ideologia edipiana, que não é uma subversão da família. Ao contrário, os analistas pensavam, de certo modo, em consolidar a família e os valores exaltados pela psicanálise até Lacan, eram os valores familiares. Os judeus mergulhavam aí as raízes tão profundas que os analistas norte-americanos pensavam que, ao final de sua análise, o analista deveria ser casado e fiel; essas eram para eles as condições para o fim da análise.

A psicanálise, na versão popular, praticou uma espécie de deciframento da vida a partir da família, como se não reencontrássemos na vida senão diferentes metonímias do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs. A psicanálise contribuiu para esta familiarização do mundo, como se ela tivesse se deixado absorver pela neurose.

Há sempre alguma coisa a resolver nos laços de família, como se houvesse aí alguma coisa a ser compreendida, como se aí residisse sempre um problema não resolvido cuja solução deve ser buscada em alguma coisa que a família tem escondida. Segundo Lévi-Strauss, a família é um grupo social que apresenta três características ao menos: ela tem origem no casamento, ela é formada pelo marido, pela esposa, e pelas crianças nascidas dessa união, e ainda mais alguns membros. Seus membros são unidos pelos laços legais, de direitos e pelas interdições sexuais.

O que nós poderíamos dizer, hoje, dessa definição da família? Que ela tem origem no casamento? Não, a família tem origem no mal-entendido, no desencontro, na decepção, no abuso sexual ou no crime. Que ela seja formada pelo marido, pela esposa e suas crianças, etc.? Não, a família é formada pelo Nome-do-Pai, pelo desejo da mãe e pelo objeto a. Que eles são unidos por laços legais, por direitos, por deveres e etc.? Não, a família é essencialmente unida por um segredo, ela é unida pelo não dito. Qual é o segredo? Qual é esse não dito? É um desejo não dito, é sempre um segredo sobre o gozo; de que gozam o pai e a mãe?

É por essa via que o falo se introduz na família, que é seu deus mais essencial. É por isso que na China existe o culto dos ancestrais, aqueles que estão mortos – que cessaram de gozar – a fim de não perturbar a harmonia da família. Para o neurótico, há sempre alguma coisa incrível no laço sexual entre o pai e a mãe. Que significa o Édipo senão que eles não gozam daquilo que deveriam gozar?

E se o gozo da mãe não foi interditado para o menino, ele ficará toda a sua vida envolvido nesse gozo. Compreendemos bem porque o cristianismo inventou a Santa Família, pois é preciso nada menos que Deus para normalizar, normatizar, o gozo materno. O princípio de unidade, da Santa Família do inconsciente, é o segredo.

 

A família encarnada

Lacan aporta algo fundamental ao ligar o tema da família com a língua para explicar racionalmente o segredo da família. O ponto de partida é que a língua falada por cada um é um assunto de família e que a família no inconsciente é, primordialmente, o lugar onde aprendemos a língua materna. É por isso que o lugar da família está ligado à língua que falamos, quero dizer, que falar, falar numa língua já é dar testemunho de um laço com a família. É por isso que é desejável fazer uma análise na sua língua materna. É possível fazer uma análise numa outra língua, mas alguma coisa então se perde, embora outra coisa possa ser recuperada, pois quando alguém faz uma análise numa outra língua se efetua uma desfamiliarização. Com efeito, nossa própria língua, que nós falamos, é sempre a língua que alguém falava antes de nós. Logo, se a família é uma "encarnação", ela é uma encarnação daquilo que Lacan chama de lugar do Outro. Em psicanálise, o lugar do Outro se encarna na figura da família.

Eu disse que a língua não se "aprende" no sentido pedagógico de aprendizagem; nascemos na língua, no mundo da língua, aquela que nós falamos, e é nisso que a metapsicologia freudiana encontra seus verdadeiros fundamentos. Lacan procurou um fundamento biológico para a falta-a-ser, mostrando que o ser humano nasce inacabado, mais inacabado que qualquer outro animal, pois, para satisfazer suas necessidades, lhe é preciso o cuidado do outro. Os animais também têm necessidade dos cuidados do outro quando são pequenos, mas o que especifica o humano é que ele chama o Outro, que ele transforma em gritos os apelos, de modo que os primeiros gritos da criança são já balbucios, com escansões nos sons que variam de uma língua para a outra; muito rápido, aquilo que dizem as crianças – o balbucio, os barulhos – se distingue segundo a língua em que se banharam.

 

A família, lugar da demanda

Podemos dizer que a família se instala no inconsciente do neurótico porque ela é o lugar onde o sujeito experimentou o perigo. A família, com efeito, é o lugar do Outro da língua, logo, é o lugar do Outro da demanda. A demanda deve passar pela língua - com os efeitos traumáticos que se produzem sobre as necessidades do ser humano – pois, ao passar pela demanda, se produz um desvio das necessidades que serão, então, marcadas por uma falta. É o que Lacan isola nas primeiras anotações de seu texto dos anos trinta "Os complexos familiares". No segundo parágrafo, ele comenta a economia paradoxal dos instintos na família, que ele centra justamente sobre o fato que os instintos são, na espécie humana, tributários de modificações paradoxais das necessidades. Nesta época, ele afirmava que, no quadro da família humana, pode-se observar que as instâncias culturais dominam as instâncias naturais. O que é uma maneira de dizer que, no homem, a língua, por meio do significante, domina tudo aquilo que é natural e que é o que se passa na família humana.

Nesse desvio, seus efeitos traumáticos, são essencialmente o fruto da produção de um resto, aquilo que não se pode demandar. A incidência da demanda sobre a necessidade é a produção de alguma coisa que não podemos demandar porque não podemos dizê-la, de sorte que a consequência da demanda é dupla: o desejo e a pulsão, para chamá-las pelo seu nome em psicanálise. O desejo é a parte implícita do significado veiculada pela demanda, é a parte latente, escondida; o desejo é a parte que podemos interpretar naquilo que foi dito. A pulsão é a parte não interpretável do dito, é como uma doença da necessidade natural: aquilo que nós chamamos de objeto pulsional é objeto de uma necessidade não natural que se manifesta com insistência, mas que não conhece um ciclo de satisfação que lhe permita chegar ao fim. Na satisfação freudiana, a pulsão é constante, ela não conhece o ciclo, e Freud a define como eterna.

No espaço da família, o sujeito faz a experiência da demanda, do poder como poder de sim ou não, ele faz sua primeira experiência de reconhecimento da fala. É também nesse espaço que o sujeito começa a decifrar o desejo – ele me diz isso, mas o que ele quer em me dizendo isso? –, que é a questão sobre o desejo do Outro, questão que nasce primordialmente no espaço da família. Por essa razão, ela é um lugar inesgotável de interpretação, pois cada família tem um ponto de "não se fala disso", não existe família sem esse ponto; isso pode ser o tabu do sexo ou falar da falta de um ancestral. No centro dos assuntos de família encontram-se sempre coisas proibidas.

Bem entendido, há primeiramente o tabu do incesto. É a razão pela qual a família como lugar do Outro da língua, é também o lugar do Outro da lei. Se vocês não compreendem o que é o lugar do Outro em Lacan, pensem a família como encarnação de um espaço onde o gozo supremo – que é, para os dois sexos, gozar da mãe - é proibido; ela é interditada, eis porque podemos dizer que o lugar do Outro, segundo Lacan, é a metáfora da família.

 

O conto familiar

A família é um mito que dá forma épica àquilo que opera a partir da estrutura, e as estórias de família são sempre o conto que diz como o gozo que o sujeito merecia, que ele tinha direito, lhe foi subtraído. É por isso que podemos dizer que alguma coisa não é sadia no gosto pela família e, como dizia André Gide: "Famílias, eu vos odeio" – mas é bem entendido o grito de um perverso e de sua rebelião contra a família enquanto ela propõe gozar da castração. Na família, o gozo é interditado e um gozo substituto é proposto: gozar da castração, quer dizer, gozar do roubo da castração. Quando o paciente fala da família, ele fala do reencontro com o gozo, da perda do gozo, daquele que o substitui; foi assim que pudemos pensar na fórmula de cada sujeito a partir de suas relações de família. Essas fórmulas traduzem, com efeito, o modo pelo qual o gozo foi perdido e como um outro veio substituí-lo.

Lacan escreveu isso como metáfora paterna: a relação do pai ladrão com o desejo da mãe. A metáfora paterna é como a encarnação da substituição da natureza pela cultura; essa metáfora é realizada pela língua, ela própria, pois pelo fato de falar, a metáfora paterna encarna a substituição da necessidade pelo significante. Assim, porque o ser humano deve fazer passar a necessidade pela palavra, isso implica que a suposta metáfora paterna cumpre-se por meio do fato de aguardar o que dirá o outro para satisfazer a necessidade; é nesse momento de substituição da necessidade pelo significante que nasce o fenômeno de desvio que se chama pulsão.

Traduzido por Tania Coelho dos Santos.


 

Notas:

1. Extraído originalmente da conferência de encerramento da I Jornada de Psicanálise, Valência, Espanha, mai/1993. A versão em português baseou-se no texto traduzido para o francês, por Anne Goalabré, publicado na Revista Lettre Mensuelle, n. 250, jul-ago/2006.

 

 

sexta-feira, agosto 05, 2022

É POSSÍVEL SAIR DA BARBÁRIE?

 


BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO


                                        Antonio Cicero

 

 

 

"O BÁRBARO é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie." Essa é uma das mais famosas proposições que se encontram na brochura "Raça e História", escrita por Lévi-Strauss na década de 1950, por encomenda da Unesco.


Dado que, no contexto em que ela foi enunciada, as palavras "bárbaro" e "barbárie" têm um sentido pejorativo, trata-se de uma proposição paradoxal, pois, evidentemente, aquele que a enuncia crê na barbárie do homem que crê na barbárie: o que significa que ele está a chamar a si próprio de "bárbaro".


É obviamente improvável que Lévi-Strauss tencionasse qualificar-se de bárbaro. Por um lado, a frase citada pode ser tida como uma mera "boutade", cujo sentido real, puramente negativo, seja justamente o de desmoralizar a própria noção excessivamente valorativa -melhor dizendo, pejorativa- de "barbárie".


Por outro lado, ela parece ter a intenção positiva de afirmar que o verdadeiro bárbaro é aquele que não considera plenamente humano o membro de uma cultura diferente da sua; aquele que pura e simplesmente repudia as formas culturais, isto é, as formas morais, religiosas, sociais, estéticas, que sejam distantes das formas com as quais se identifica; aquele, isto é, que julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura a que pertence; aquele, portanto, que a etnologia classifica de "etnocentrista".


Sendo assim, o civilizado é aquele que não julga as formas das demais culturas segundo os critérios da cultura à qual ele pertence. Que significa isso, na prática?


Três possibilidades se apresentam. A primeira é que o civilizado seja aquele que julgue as formas das demais culturas segundo critérios de uma cultura à qual não pertença.
É evidente, porém, que tal pessoa não deixaria de ser etnocêntrica, tendo meramente posto uma cultura adotada no lugar da sua cultura nativa. Ela continuaria, portanto, a ser bárbara.
A segunda possibilidade é que o civilizado seja aquele que simplesmente não julga as formas das culturas às quais não pertença. Ao invés de ser uma solução, porém, isso seria um problema.


Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie.
A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem.


Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central: e talvez a vitória sobre este etnocentrismo seja uma condição necessária para a vitória sobre o etnocentrismo no sentido convencional.


Ora, tal distanciamento em relação à própria cultura a que se pertence é evidentemente possível, já que se dá na realidade. 
Ele ocorre cada vez que alguém critica uma manifestação da sua própria cultura. O distanciamento crítico é produzido pela razão que, longe de pertencer a qualquer cultura particular, é universal, uma vez que é, em princípio, acessível a qualquer ser humano.


Assim, o civilizado é aquele que reconhece que as convicções mais fundamentais -filosóficas, éticas, estéticas, religiosas etc.- de qualquer cultura, inclusive da sua, são falíveis. Ele reconhece que há muitas diferentes crenças no mundo, e que elas frequentemente se contradizem: logo, que nem todas podem ser verdadeiras, e que é possível até que nenhuma delas o seja.


A razão crítica através da qual ele reconhece isso não é uma crença como as outras.
Ela é 1) a capacidade de pôr em dúvida todas as crenças; 2) a certeza lógica de que qualquer crença pode ser falsa e 3) a consequente certeza de que a afirmação de que uma crença determinada não possa ser falsa é logicamente falsa.


Essa razão crítica é infalível porque, identificando-se com a própria capacidade de duvidar, afirma-se no próprio ato de duvidar de si. É a partir desse infalível princípio falibilista - e não a partir de crença alguma - que se constitui a civilização.

In: antoniocicero.blogspot.com


 
 

segunda-feira, junho 13, 2022

PSICANÁLISE E INDENTIDADE

 



Por uma psicanálise a favor da identidade

Tania Rivera





Subversão do sujeito, descentramento do eu, dessubjetivação: a teoria psicanalítica costuma agenciar toda uma gramática de termos críticos da noção de identidade, entendida como alienante, ilusória e narcísica. No que se refere ao laço social, chegamos mesmo a vê-la como potencialmente fascista, segundo o esquema da massa, que é concebida por Freud como uma espécie de identidade grupal firmemente construída sobre os pilares da relação acrítica de cada membro a um líder, uma ideia ou valor investido no lugar de ideal do eu. Unidos como irmãos que compartilham tal ligação a um pai que os amaria igualmente, os membros da massa formam um tecido social homogêneo, no qual não há lugar para diferenças e dissensões. A força da identificação operante entre eles pode chegar ao contágio que suspende toda censura e leva a atos que individualmente não seriam realizados, como linchamentos, por exemplo. Tal adesão acrítica à identidade do grupo reforça-se, ademais, pelo atiçamento de ódio e repúdio ao seu oposto complementar, a figura de um outro cuja diferença é realçada, ainda que consista em distinções mínimas, segundo a lógica do que Freud chama “narcisismo das pequenas diferenças”.



No bem conhecido texto de 1921, Psicologia das massas e análise do eu, o psicanalista antecipava, com essas ideias, aquilo que o nazismo poria em prática nas décadas seguintes da maneira mais espetacular e terrível, com o genocídio de milhões de judeus, homossexuais, ciganos, pacientes psiquiátricos, portadores de deficiência física e outras minorias. O próprio Freud teve o fim de sua vida manchado pela perseguição e exílio por sua condição de judeu, como bem sabemos, e na segunda metade do século XX o discurso psicanalítico marca na cultura uma clara e importante oposição a tais descalabros identitários nos quais a massa de semelhantes nega a diferença e chega a visar aniquilar o outro. Ele o faz através de uma espécie de elogio da alteridade que vai de par com a compreensão do sujeito do inconsciente como oposto à noção mesma de identidade.


No Brasil, tal crítica da identidade podia parecer, até pouco tempo atrás, consonante com certas noções como a de miscigenação, a de gentileza para com o outro e a de antropofagia, proposta pelo escritor Oswald de Andrade, em manifesto de 1928 que afirmava que “só me interessa o que não é meu”. Segundo a lógica de tais noções relativizadoras das diferenças, haveria entre nós uma grande mobilidade entre eu e outro, que poderia até ser tomada, paradoxalmente, como uma espécie de traço identificatório do brasileiro. O diferente seria aqui facilmente assimilável, de acordo com este raciocínio, na medida em que o “eu mesmo” seria constituído pela mistura entre povos e “raças”. Diversas vozes vêm, entretanto, desmontando a falácia de tal permeabilidade entre eu e outro para demonstrar seu papel no ocultamento das desigualdades, especialmente no que diz respeito aos indígenas e descendentes de escravos, cujo assujeitamento violento, aviltante e sistemático fica silenciado pela ideia de mescla entre culturas, que pressupõe que todas nela participam em pé de igualdade. Neste contexto, a crítica da identidade, em vez de se aliar ao reconhecimento da alteridade, corre o risco de servir à não aceitação do outro como diferente.


Diversos movimentos identitários surgiram e fortaleceram-se recentemente no jogo político do país em reação a tal discurso pseudo-desidentitário, que oculta as opressões para melhor exercê-las. Eles tomam hoje importante papel crítico e de mobilização contra a desigualdade, a opressão e as práticas genocidas que marcam nossa história e nosso presente. Entre as importantes e numerosas questões por eles colocadas, interessa-me aqui aquela que convoca a psicanálise a examinar a noção de identidade como seu fundamento. Para adentrar tal problemática, porém, devo dizer que não acredito que se possa “examinar” a questão, de um ponto de vista neutro quanto ao agente do verbo, nem tampouco que se possa falar d’a psicanálise como uma abstração una, consistente e independente de quem a mobiliza assim como das questões que o levam a fazê-lo. O que tentarei trazer aqui não é um exame, mas sim uma proposta singularmente assumida: a de retomar a questão da identidade em sua relação à teoria psicanalítica, para salientar uma vertente que lhe é correlata, mas costuma permanecer latente. Refiro-me à sua dimensão de reconhecimento pelo outro.


Para tal, gostaria de retomar a narrativa apresentada por Freud como uma espécie de mito das origens da sociedade no texto Totem e Tabu, de 1912. Ela toma como ponto de partida a hipótese darwiniana de caracterização das hordas primitivas como um bando de machos submetidos à violência e arbitrariedade de um pai que detinha todos os poderes, inclusive a posse das mulheres. Um dia, encorajados talvez pela invenção de uma nova arma, os irmãos unem-se e matam-no. “No começo era o ato”, afirma Freud, referindo-se a este assassinato realizado coletivamente. Em seguida, os irmãos devoram o pai em um grande banquete antropofágico, no qual sua incorporação é igualmente compartilhada, para vir a realizar-se como identificação com o pai morto, tornado um significante, pode-se dizer, que o totem declina em objeto de reverência ritual, ao mesmo tempo em que gera o estabelecimento de alguns tabus. Instala-se assim a fratria, a sociedade de irmãos, guiada pela Lei que impede que qualquer um deles venha a ocupar a lugar tirânico do pai. Deve-se sublinhar, nesta narrativa, a partilha igualitária do ato e do significante pelos irmãos, que serve de esteio para o consequente compartilhamento da identidade grupal simbolizada pelo Totem, bem como para a igualdade de condições dos irmãos frente à Lei. Mas é surpreendente que nesta partilha não se mencionem as mulheres, nomeadas como objeto de gozo na situação inicial. Elas simplesmente não são identificadas neste ato fundante. O significante “irmãos”, em vez de subsumi-las implicitamente, recobre o campo de forma total, negando a elas qualquer significante identitário – ou seja, qualquer reconhecimento. A universalidade da posição do “irmão” como sujeito do pacto social já mostra assim, na pluma de Freud, que sua condição fundamental baseia-se no apagamento de alguns significantes, a carrear com ele a exclusão de muitos/as sob a ilusão de “todos”.


Apesar de não ser articulada à narrativa de Totem e Tabu, a opressão de alguns é reconhecida por Freud como inerente à sociedade, como mostra sua citação da máxima que Hobbes toma de Plauto: “o homem é o lobo do homem”. A apropriação fundante de um significante capaz de identificar o sujeito se dá coletivamente, em uma situação de reconhecimento mútuo e pretensa igualdade de direitos, mas ela encobre a violência exercida sobre alguns, que não fariam parte “dos irmãos” e cuja exclusão e opressão seria naturalizada por sua condição de “diferentes” – como os povos autoctónes das colônias europeias, por exemplo. A estes não parece possível realizar a apropriação fundamental que Freud caracteriza, ao citar o Fausto de Goethe: “o que herdastes de seus pais, adquira-o para possui-lo”, pois eles sequer são reconhecidos como filhos. A eles só cabe, no discurso “dos irmãos”, a posição de espoliados, complementar àquela de seus espoliadores.


O Totem pode, por essa via, ser entendido como instrumento de poder de alguns sobre muitos outros, em vez de traço identificatório inclusivo e igualmente partilhado entre todos. E os tabus podem se revestir do papel de “recalcadores”, por assim dizer: práticas que impedem que alguns significantes sejam acessados. Ao se suspenderem alguns tabus, creio que se pode claramente perceber, sob o mito da democracia “dos irmãos”, a violência com a qual o pai da horda segue vivo, a embaralhar os significantes de modo a incitar aqueles que oprime a com ele se identificarem, na promessa de que um dia também lhes caberá o lugar da espoliação e exurpação. Está assim em pauta, hoje, a necessidade de reconhecermos, ética e politicamente, que a narrativa mítica das origens do pacto social que se declina em Totem e Tabu não é mítica apenas no sentido de que não se realizou concretamente em dado momento da História, mas também por sustentar um ideal ocidental de sociedade justa e igualitária que jamais se cumpriu plenamente e que sempre encobriu a exploração do “outro”, daquele que estaria fora das fronteiras arbitrárias que delimitam “os irmãos”, os cidadãos, etc. E que subverter tal perversão (que é uma père-version, ou seja, uma versão de pai, para Lacan) implica quebrar tal narrativa – analisá-la (lembrando que a etimologia do termo é a de decomposição) – de modo a revelar seu “recalcado”, digamos. Ou, em um país periférico, desigual e ainda hoje sob o jugo do neocolonialismo como o Brasil, revelar que tal narrativa, que costumamos tomar como um esquema estrutural do advento da Lei, só pode agir como uma farsa – na medida em que simplesmente não há e nunca houve uma “sociedade dos irmãos”, a não ser localizadamente, entre aqueles que detêm os privilégios.


Isso teria por consequência a impossibilidade de que se formem certas massas em torno de significantes que sejam coerentes com a situação social e histórica de seus membros, e que pessoas reforcem a alienação de sua construção egóica pelo pertencimento imaginário a agrupamentos opressores e excludentes. Este seria um dos fatores capazes de justificar a adesão de parcelas excluídas da população ao discurso, e por vezes ao voto, de representantes de seus opressores históricos, ao lado de outros também importantes, como a parca educação histórica e política e o embaralhamento das palavras de ordem dos partidos e dos políticos que costuma servir a fins espúrios. E deste modo revela-se a necessidade e legitimidade de que a ação política passe, hoje, pela busca de significantes capazes de reconfigurar o pacto social em direções plurais, suspendendo recalcamentos atávicos na sociedade brasileira e explicitando finalmente as linhas de força que nela se opõem ou convergem. A reivindicação de “lugar de fala” e a afirmação de significantes referentes a cor de pele, origens e gênero devem assim ser vigorosamente comemoradas, e em minha opinião seria grave equívoco a elas se opor em nome da crítica psicanalítica à lógica identitária e narcísica.


De fato, recusar a identidade em nome da alteridade, da diferença e da singularidade, hoje, é ignorar que se trata, com o recurso a significantes identitários, justamente de afirmar diferenças secularmente denegadas por discursos pseudo-desidentitários que relativizam a cor da pele pela afirmação de uma mestiçagem generalizada e despistam a violência de gênero através de uma suposta libertinagem carnavalesca. Mas isso não significa que a psicanálise deva ser descartada no debate – pelo contrário, acredito que ela tem muito a contribuir. Mas para podermos efetivamente nele tomar voz, parece-me necessário reconhecer a existência de uma espécie de hiato entre o terreno no qual a psicanálise surge na Europa e aquele do colonialismo no qual ela é chamada a comparecer, no Brasil. Freud e Lacan tinham como ponto de partida, grosso modo, o mito do pacto social como compromisso igualitário entre irmãos, no qual cada um teria acesso equânime a certos significantes identitários, aos quais se oporiam outros significantes a agrupar membros de outras fratrias. Diante de tal princípio da semelhança e da igualidade como base da sociedade, tratar-se-ia de emancipar o sujeito pela via da crítica da identidade, em nome da alteridade constitutiva de si mesmo. Mas em uma sociedade cujo pacto social se dá pela exclusão de grande parte de seus integrantes da possibilidade de acederem à partilha significante em grupos identificados e seus significantes e interesses, em um país marcado pela violência colonial como o nosso, desmascara-se a exclusão encoberta pela narrativa iluminista e o jogo revela-se muito mais complexo.

Em um contexto em que as posições do eu e do outro se embaralham para que se escondam as diferenças entre opressores e oprimidos historicamente constituídos, a identidade está, paradoxalmente, a serviço da alteridades.


Em outras palavras, dizer “eu é um outro”, como o faz o poeta Rimbaud, pode ser extremamente alienante, quando se trata de identificar-se com o outro opressor e assim eliminar qualquer possibilidade de oposição a ele. Apenas sobre o pano de fundo da noção ocidental do sujeito racional e autônomo o descentramento do sujeito pode ser concebido como potência desalienante e subversiva. E neste ponto a questão explicita seus contornos políticos, que são de fundamento, mais do que consistir na aplicação de um direcionamento ideológico, digamos, a uma teoria coesa e bem estabelecida. O lugar e o tempo no qual nos encontramos nos convocam a recolocar em obra a teoria, inclusive em suas bases epistemológicas, ou seja, no que diz respeito às próprias condições de construção do pensamento. Não existe sujeito neutro correspondente a uma razão transcendental, como a própria psicanálise contribuiu para denunciar. O sujeito da enunciação não se oculta e cala diante do saber/poder do enunciado. Afirmar aqui que eu falo – mulher, branca, em um país periférico e marcado pela violência e desigualdade social da qual estou em grande parte protegida por minha cor de pele e pelo fato de ser da classe média – não significa apenas pedir passagem para me pronunciar diante de grupos distintos; significa identificar-me para reconhecê-los. Aqui, a identidade mostra claramente, ao ser assumida como ponto de partida, sua dimensão performativa de reconhecimento. Significa recusar a me apresentar como mera porta-voz de uma verdade incorpórea e sem localização geopolítica. Exprime minha tentativa de descentrar o pensamento – e assumir tal deslocamento como gesto político.


Tentando assim deslocar um pouco os cânones, parece-me importante considerar a possibilidade de que o descentramento do sujeito hoje se decline, em nossa realidade, como processo de identificação coletiva. Que o traço unário do qual fala Lacan possa explicitar-se, neste contexto, como declinação particularizada de um princípio geral. Que em determinados contextos, o uso de categorias como “universal” ou “estrutural”, no sentido de determinações apriorísticas e imutáveis, possa ser alienante, e que falar em seu nome possa consistir no exercício de uma posição de poder. Que a ética que nos pauta – aquela mesma da subversão do sujeito – implique neste momento histórico uma aliança com o desvelamento ativo das diferenças – especialmente de cor de pele e de gênero –, e portanto com os movimentos identitários, contra a alienação e a hipocrisia pseudo-desidentitária. Aqui e neste momento, parece-me inegável que se identificar ativamente pelo compartilhamento de significantes como preta/o ou mulher ou gay ou lésbica ou trans etcetera é um ato de descentramento do lugar de confusão alienante entre eu e outro.


Isso não implica, entretanto, no abandono da ideia (ou do desejo) de que o laço social possa operar de modo distinto do compartilhamento de significantes que incidiriam igualmente sobre cada um de seus membros conforme o funcionamento da massa, tendendo a homogeneizá-los e calar dissensões e singularidades. Em primeiro lugar, talvez seja importante conceber que os significantes estão em movimento, eles circulam, se interseccionam e atritam, e chegam eventualmente a alterar-se, historicamente – e “as massas”, no plural, estão igualmente em trânsito, em fluxos internos de divergência e convergência, constituindo-se em conflito e atrito, mais do que na rígida e completa identificação entre seus membros que teria como complemento, em sua configuração fascista, a negação e a busca do aniquilamento do outro. Nessas movimentações internas, complexas, conflitantes e talvez um tanto erráticas, talvez se deem, sim, laços não narcísicos, em pequenos acontecimentos que seriam como lapsos ou atos falhos. Afinal, se levamos a sério a afirmação freudiana já citada de que a psicologia social é sempre e de saída individual, devemos apostar que também esteja em ação, na construção de um entre nós, vias plurais de dissonâncias e dissidências, nas quais o sujeito se subverta, sim, coletivamente.


Resta a inventar os modos como cada um de nós poderia se aliar a tal laço subversivo, e com ele colaborar na construção de significantes capazes de articular as identidades e as diferenças em prol de uma ampla frente de luta contra o fascismo.



In: Revista Cult - 24 de Setembro 2020


terça-feira, abril 19, 2022

LACAN E O ESTRUTURALISMO






APRESENTAÇÃO

Três são os elementos fundamentais que compõem a trajetória de formação em psicanálise: análise, teoria e supervisão. A primeira é a mais importante e única estritamente singular, em que, a partir da escolha do analista e de sua desconstrução, alcançamos o “lugar do analista”. Não se trata de um lugar de saber, mas de uma habilidade para escutar, que sempre exige a desconstrução da própria escuta, do que nela pudesse haver de normativo. Em psicanálise, a teoria está a serviço da desconstrução da norma. O que sempre exigirá a supervisão, a crítica acerca dos limites éticos da prática, levando o analista a se perguntar “em favor de quem opera minha escuta: de uma escola ou de um dizer singular?”

DESCRIÇÃO

(o) Curso (da) Formação aqui proposto consiste numa série de encontros mensais em formato híbrido (simultaneamente virtual e presencial), de sete horas cada qual distribuídas nas sextas à noite e sábados pela manhã, nos quais, a partir da experiência clínica de reconhecidos profissionais em psicanálise, serão discutidos os principais conceitos clínicos vigentes nas práticas de escuta analítica e de construção de casos clínicos. No total, serão 23 módulos, perfazendo um total de 161 horas.

OBJETIVO

Ao final do curso, os participantes estarão aptos ao reconhecimento das principais configurações conceituais relativas às práticas de escuta analítica e de construção de casos clínicos de orientação psicanalítica.

DINÂMICA

A atividade consiste numa formação clínica, na qual profissionais convidados na condição de analistas docentes irão debater com os participantes os discursos e dizeres que compõem “(O) Curso Livre (da) Formação” clínica dos psicanalistas.

A sequência dos módulos foi minuciosamente definida pela coordenação para que os participantes tenham 100% de aproveitamento do curso. A atividade disponibiliza a inscrição individual dos módulos (assim como desconto especial para estudantes) a ser encontrada em nosso site.

Não é exigida formação por parte do participante. O curso emite certificado após a participação de, no mínimo, 18 módulos.

COORDENAÇÃO:

Dra. Maria Holthausen

Psicanalista, Historiadora, Doutora em Literatura


LOCALIZAÇÃO:

www.usinadizer.com.br


MÓDULO IV

LACAN E O ESTRUTURALISMO:

o inconsciente como se uma linguagem


Prof.: Dr. Gustavo Capobianco Volaco

Data: 13 e 14 de MAIO 2022


Ementa: Se repete, muitas vezes ritornelicamente, que o inconsciente é, como Lacan preconiza, estruturado como uma linguagem. O que se esquece, contudo, é de nos dizerem que linguagem é essa – já que é uma e não a – e quais são, mesmo, seus efeitos sobre um psiquismo que, eis a questão, seria feito de palavras? Se significantes? De significados? De signos? De letras? E a função do analista, diante dessa linguagem, seria de   decifrador? De intérprete? De leitor? Ou de escriba? São essas questões que percorreremos sempre tendo como ponto de mira (o) CURSO (da) FORMAÇÃO.


Bibliografia:

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1989.

LACAN, Jacques. O Ato Psicanalítico. Porto Alegre: APOA, 2012.

ALLOUCH, Jean. Letra e Letra. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.


quinta-feira, fevereiro 17, 2022

 






EMBEBEDEM-SE

 

É preciso estar sempre bêbado. Está tudo aí: essa é a única questão. Para não sentir o fardo terrível do tempo que nos despedaça os ombros e inclina para o chão, é preciso se embriagar sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, do que preferirem. Mas embebedem-se. E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, na erva verde de uma vala, vocês se acordarem com a bebedeira já diminuída ou desaparecida, perguntem ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que rola, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntem-lhes as horas. E o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio vão responder:

– É hora de se embebedar! Para não serem os escravos martirizados do tempo, embebedem-se, embebedem-se sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude, daquilo que preferirem!


 

Charles Baudelaire, O Spleen de Paris, pequenos poemas em prosa.

Tradução de Alessandro Zir

 

EXPRESSIVIDADE FEMININA: TRANSFORMANDO MEDO EM AÇÃO

  As mulheres e o medo de agir por  Karen Horney Tradução  |  Larissa Ramos da Silva   Palestra proferida em 1935 na National Federation of ...