A era do trauma
Márcio Seligmann-Silva
O termo “trauma” tornou-se nas últimas décadas um conceito-chave nos estudos culturais e nas assim chamadas ciências humanas de um modo geral. Se o trauma pode ser pensado tanto como um evento que produz um abalo (“o trauma que alguém sofre”) como também como o efeito desse evento (“a pessoa traumatizada”), é porque estamos diante de um desses fenômenos que colocam em questão as fronteiras entre o sujeito e o seu mundo. O trauma desestabiliza qualquer noção simplista de “realidade”. Ele tensiona a possibilidade de se pensar um mundo representado sem problemas pelo sujeito. Pensar o trauma implica uma série de questões que foram colocadas historicamente pelo século 20. Esse século, que revelou com toda clareza o profundo significado da dialética do Iluminismo, ou seja, em que medida a razão Ocidental se desdobra simultaneamente em progresso (técnico-científico) e em barbárie (nas relações inter-humanas e nossa com a natureza), entronizou também o trauma como conceito que permite lançar luz sobre nós.
Mas o périplo desse conceito está longe de ser linear e ascendente. Termo derivado do grego e significando etimologicamente “ferida”, ele foi ressignificado pela psicanálise, na última década do século 19, e alternou fases de esquecimento com momentos em que se tornou reconhecido como meio para descrever-nos em um mundo cujas relações sociais não deixaram de mostrar uma altíssima dose de opressão e violência. Mas não se trata apenas de um conceito que simplesmente se coloca na continuidade do de “choque”, e que já servia para explicitar essa violência da vida moderna. Antes, já na sua origem psicanalítica, o trauma serve também para indicar a nossa relação com uma força desestruturante que vem de dentro de nós, derivando daquilo que Freud denominou de “impulsos” ou “pulsões”, Triebe. Ou seja, pensar o trauma como marca do indivíduo moderno significa pensá-lo como um sobrevivente que resiste tanto aos ataques de um mundo externo como de seu próprio mundo interior, que tem o seu eu constantemente fragmentado, posto em questão e à prova por esses ataques. Essa visão, por assim dizer, “traumática” do indivíduo moderno é correlata também a uma nova visão do que seria a verdade, a saber, é fruto de uma profunda crise da noção de verdade, que se tornou clara em Nietzsche e que tomou novas proporções com a psicanálise freudiana.
A era das destruições, genocídios, violência neocolonial, ditaduras sanguinárias, espoliação dos recursos naturais da Terra, exigiu a reformulação do conceito positivista de verdade como representação autossuficiente do mundo. Foi abalada a visão da história como dirigida por um progresso contínuo, que coloca o presente no ápice da humanidade e o futuro como um paraíso tecnológico que nos aguarda. Foi abalada a visão dos heróis da história, como sendo os que estavam diante de Estados e exércitos. A terceira ferida narcísica, levada a cabo pela psicanálise, depois de termos perdido, com Copérnico, a centralidade do universo e, com Darwin, a certeza de que somos criaturas feitas por Deus, afirma que o eu não é o senhor na sua própria casa. Ao lado do conceito de alienação, desenvolvido pelo marxismo, o conceito de trauma se tornou indispensável para entender o indivíduo moderno e compreender suas mazelas.
Assim, gostaria de lançar luz sobre alguns dos aspectos do conceito de trauma, visando destacar essa sua importância como meio de construção de uma visão crítica da história e de nossa autoimagem. Para tanto me restrinjo aqui a explorar algumas passagens dos textos de Freud e a desdobrar do conceito de trauma uma ética do testemunho.
Trauma e pulsão de morte
Freud nunca procurou desenvolver uma “teoria do trauma” em sentido estrito. Antes, o conceito aparece e desaparece de seus escritos e não apresenta uma definição unívoca. Já em seus Estudos sobre a histeria (1893-95), escritos juntamente com Breuer, ele escreve sobre a “histeria traumática”, referindo-se às pacientes que teriam vivido experiências “de medo, vergonha ou dor psíquica”, as quais teriam se inscrito de modo muito particular em suas psiques. Essas memórias seriam uma espécie de corpo estranho no paciente, caracterizadas por uma manifestação temporalmente deslocada. É nesse texto que lemos a famosa definição segundo a qual as histéricas “sofrem, antes de mais nada, de reminiscências”. Aqui já encontramos, portanto, uma série de características que acompanharam o conceito: a ideia de um encontro marcante com uma realidade específica; a noção de um período de latência até o momento de manifestação da doença; a concepção do traumatizado como alguém que sofre por conta da memória estranha que o habita sem estar integrada à sua psique. Também já estava evidente para Freud que essas memórias teriam um cunho sexual, daí ser chamada de “teoria da sedução”, ideia que nem sempre acompanhará, ao longo do século passado, as definições de trauma. Ainda nos anos 1890 Freud abandona essa teoria da sedução e a substitui pela noção de uma fantasia de sedução. Ou seja, as cenas narradas pelos pacientes poderiam ser vistas como frutos da fantasia. Essa mudança de acento foi posta em questão por, entre outros, Sándor Ferenczi, que em sua teoria volta a “dar grande importância ao fator traumático original na equação etiológica das neuroses. [...] são sempre perturbações e conflitos reais com o mundo exterior que são traumáticos e têm um efeito de choque, que dão o primeiro impulso à criação de direções anormais de desenvolvimento”. Como escreveu em 1929, “as fantasias histéricas não mentem”.
Mas voltando a Freud, foi apenas em 1920, em seu estudo fundamental “Além do princípio do prazer”, que o conceito recebeu seus contornos mais claros. Com a guerra, as neuroses traumáticas passaram a ser estudas ao lado das neuroses de guerra. Freud enfatiza o papel do susto, Schreck, e do medo, Furcht, no evento que desencadeia o trauma. Ele diferencia a angústia, Angst, dessas duas sensações, já que ele considera a angústia como um afeto que nos prepara e protege do susto e do medo. A situação traumática seria aquela na qual a preparação angustiosa falha e permite que sejamos surpreendidos. Daí os sonhos dos traumatizados serem caracterizados por uma volta à situação traumática, em uma tentativa atrasada e sempre condenada ao fracasso, de aparar o agente do trauma. Ocorre o que Freud denomina de “fixação no momento do trauma”. Isso explicaria por que esses sonhos fogem à lógica do princípio do prazer que, segundo seu ensaio de 1900 sobre a Interpretação dos sonhos, determinaria nossa atividade onírica.
Nesse ponto de seu texto, Freud introduz uma digressão que ficou famosa, sobre o jogo de seu neto em seu berço. Trata-se do jogo que em alemão se denomina Fort-Da, uma espécie de esconde-esconde, no qual a criança joga algo, para em seguida pegá-lo de volta. Esse jogo, nota Freud, pode ser visto como uma tentativa da criança de se tornar agente com relação à situação opressora de desaparecimento da mãe de seu campo de visão. Jogando com a dor, a criança transformaria a dor em um ganho de prazer. Ele fala de um “impulso de apoderamento” em uma situação de desamparo e lembra que também os adultos fazem algo semelhante, como nas tragédias, obras a que assistimos com fruição e que serviriam para uma elaboração espiritual daquilo que causa desprazer. Mas o que interessa a ele naquele momento não é esse desvio da dor para o prazer via jogo, mas sim o que denomina de “compulsão à repetição” que vemos tanto no caso dos traumatizados como nesses jogos. Para ele, essa compulsão seria “mais primordial, mais elementar, mais pulsional do que o princípio de prazer”. Impossível resumir aqui os detalhes desse ensaio cheio de insights surpreendentes, mas o fundamental é reter como Freud associa essa compulsão traumática à repetição a uma pulsão de morte, conceito que ele desenvolve no ensaio de 1920 e será desdobrado mais tarde, por exemplo, em Mal-estar na cultura (1930), quando ele falará de “pulsão de destruição” (Destruktionstrieb). A conclusão de Freud, partindo de uma reflexão sobre a compulsão à repetição contida na situação traumática, é que a nossa vida tem como objetivo a própria morte. A vida é um (mero) desvio em direção à morte. Vivemos para além do princípio do prazer e as nossas pulsões sexuais (a libido) estão submetidas à pulsão de morte. Essa teoria, escrita no tempo do “após”, que, no caso de situações traumáticas é o tempo do “ainda”, da Primeira Guerra Mundial, é com certeza uma filha de sua época.
O homem Moisés e a religião monoteísta
Não por acaso, o período histórico no qual Freud mais insiste em sua tentativa de apresentar a noção psicanalítica de trauma, dá-se justamente durante o governo nazista na Alemanha e, portanto, em meio à corrida armamentista que levaria à Segunda Guerra Mundial. O homem Moisés e a religião monoteísta (1939) é considerado o testamento teórico e pessoal de Freud. Nele, buscou pensar as causas originárias do antissemitismo exterminador de sua época, partindo das premissas da psicanálise. Esse mergulho na história do judaísmo é em grande parte uma construção, em termos psicanalíticos. Uma das peças centrais desse constructo é a noção de trauma que tem em si, como vimos, a ideia de um período de latência entre o evento originário e a manifestação dos sintomas. Para Freud, Moisés teria sido um líder egípcio que passou ao povo judeu a religião monoteísta do faraó Akhenaton. Esse povo, no entanto, teria posteriormente se rebelado contra Moisés e o assassinado. Décadas depois, após um período de esquecimento do monoteísmo, este teria sido como que revivido quando do aparecimento de um segundo Moisés, em Cades. O que me interessa no ensaio é o local que pode parecer proporcionalmente exagerado dado à reflexão sobre o conceito de trauma. Para explicar do ponto de vista psicanalítico a noção de latência ou incubação, ou seja, de esquecimento temporário, Freud desenvolve uma longa passagem sobre o trauma. Novamente, sua época deixa-se inscrever por sua pena. A história cultural torna-se, aos olhos de Freud, no limiar do genocídio judaico, uma história de sobrevivências. A religião de Atem teria sobrevivido através de traços, Spuren, que germinaram novamente em Cades. Algo esquecido teria, ainda assim, exercido um efeito poderoso sobre toda uma população. A esse encadeamento de ideias, Freud associa novamente uma análise da cultura grega como elaboração de catástrofes históricas. Ele se pergunta qual seria a origem do material lendário que alimentou as epopeias de Homero e as tragédias dos grandes dramaturgos áticos. A resposta que dá é clara: esse povo viveu em sua pré-história uma fase de grande brilho e eflorescência que foi sucedida por uma “catástrofe histórica” que levou à sua decadência, sendo que essas lendas permitiram uma conservação dessa “obscura tradição”. Para Freud, as pesquisas arqueológicas de sua época confirmam essa tese – assim como, acrescento, a arqueologia da psique proposta por ele, confirmaria que nossa vida anímica é um campo habitado por “obscuras tradições”. Ele propõe aos historiadores da literatura empreender esse trabalho arqueológico em outros contextos. Freud tem certeza de que eles também trarão à luz “um pedaço de pré-história”.
Sempre o historiador da cultura se depararia com algo semelhante à estrutura do trauma, que Freud assim descreve: “Denominamos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande importância na etiologia das neuroses. [...] a gênese de uma neurose invariavelmente remonta a impressões muito primitivas da infância. [...] a experiência adquire seu caráter traumático apenas em resultado de um fator quantitativo”. Em outra passagem, quando Freud descreve a figura daquele que é traumatizado, podemos perceber uma prefiguração da testemunha, figura que se tornou paradigmática no século 20: “Os traumas são ou experiências sobre o próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo vivido ou ouvido, isto é, experiências [Erlebnisse] ou impressões [Eindrücke]”. Essas “impressões” inscrevem-se com os traços ambíguos com que Freud pensa a inscrição psíquica, ou seja, são algo ao mesmo tempo marcante e que se torna “esquecido”, latente – latejante. O trabalho do psicanalista - arqueólogo seria o de trazer essas inscrições à sua legibilidade. Assim, o paciente consegue sair de sua “fixação no trauma”, marcada simultaneamente por reações reiterativas (compulsão à repetição) e negativas (evitações do tipo fobias e inibições).
A humanidade, para Freud, também viveria sob o signo (a sombra) do trauma. Tanto nesse ensaio de 1939 como no de 1912, Totem e tabu, ele desenvolve a teoria segundo a qual a cultura teria se iniciado com o assassinato do pai da horda primeva, levado a cabo pelos seus filhos em revolta. Esse fato traumático teria sido repetido pelos judeus que assassinaram primeiro Moisés, e pela crucificação de Cristo – assim como pelas tragédias e por tantos outros atos de cultura de cunho marcadamente sacrificial. Ele acredita, portanto, em uma herança transgeracional do trauma, tema que se tornou tanto mais importante ao final do século 20, quando assistimos às sucessivas gerações de vítimas do terror genocida e a seus descendentes portando consigo, ou tentando portar, o testemunho após os genocídios que marcaram esse século – o armênio, o judaico, o dos tutsis, de bósnios, de vietnamitas, de cambojanos, de populações africanas nas guerras de independência e em seus desdobramentos, de indígenas, mas também de gerações inteiras perseguidas por ditaduras na América Latina e em outros continentes. Freud estabelece uma distinção fundamental entre os que ficam presos ao círculo do eterno retorno da repetição da cena traumática e os que tentam inscrever essa cena, elaborá-la. Essa diferença pode ser também aquela entre a loucura fundamentalista e a conquista da liberdade, com toda a precariedade que caracteriza essa última.
A tarefa do testemunho
A cultura seria toda marcada pelo ciclo das catástrofes seguidas do conflito entre esquecimento e tentativa de inscrição. A psicanálise formula à humanidade a tarefa dessa inscrição. Trata-se de uma ética da escuta e da construção de narrativas. Esse processo abriu a consciência para a tarefa do testemunho, com todas as aporias que essa tarefa implica. (Remeto aqui o leitor aos dossiês de números anteriores da revista CULT: no23, “Literatura de testemunho”; no197, “Arte como inscrição da violência” e no203, “Literatura e experiência”). O testemunho vai a contrapelo da tradição da historiografia como arquivamento do passado. É essa recusa da competência do registro tradicional da história, que Lyotard deduziu da destruição genocida de Auschwitz e que o também filósofo de origem armênia Marc Nichanian tomou como ponto de partida para a sua pesquisa. Trata-se do desafio de se pensar a “meta-realidade” que sobrevive à destruição da realidade: o historiador deve saber dedicar-se a outras práticas, sobretudo a ouvir isso que Lyotard chamou de modo tão eloquente de “o que resta do testemunho”, em seu ensaio Le différend (1983). O registro tradicional, do trabalho da história como levantamento de evidências e de documentos, de provas e atestações irrefutáveis, estava ligado ao registro da lei do arquivo e do arquivamento. A lógica do arquivo como arkhé (origem), que acredita na construção da realidade a partir do documento, que pensa dentro da análise classificatória, da articulação e imposição de hierarquias, que reduz o outro à normalidade e igualdade do próprio, essa lógica do arquivo está também por trás da razão genocida. A fúria genocida quer apagar do arquivo da Terra toda uma população. Ela barra a inscrição de qualquer traço. Nas palavras de Nichanian: “A vontade genocida [genocidaire, genocidária] é aquela que quer suprimir o fato no ato mesmo que o executa. Vemos aí um fenômeno característico do conjunto do século 20, que é o século dos genocídios justamente porque ele é o século do arquivo” (La perversion historiographique. Une réflexion arménienne, Lignes, 2006).
Inspirado no ensaio Force de loi, de Jacques Derrida, Nichanian percebe nessa lógica de autorrasura do gesto genocida, que incorpora ainda uma violência mítica, uma “perversão historiográfica”, título de seu poderoso ensaio de 2006. Expliquemos melhor. A lógica da historiografia tradicional, arquivista, arquiarquivista, pretende que só exista fato se houver provas. Trata-se, como Foucault o demonstrou nos anos 1970, do paradigma judiciário, da verdade como atestação visual, que domina no âmbito da história-arquivo. Já o modelo que vê a história como trauma, contrariando veementemente o anterior, aponta para a necessidade da escuta do testemunho. O historiador tradicional recusa a qualidade de fato ao evento traumático, justamente porque este se recusa e resiste à universalização. Trata-se, então, de abandonar o registro dos fatos e o próprio arquivo e seu poder arcôntico de dizer onde está e o que é a verdade. Trata-se de assumir a visão traumática da história e a necessidade de inscrever a violência a contrapelo da lei do arquivamento – que é também também a lei do esquecimento da violência. Assumir a natureza traumática da história, Cathy Caruth já o escreveu, implica assumir, antes, que “os eventos são apenas históricos na medida em que eles implicam os outros”. A história como trauma nunca é apenas a nossa, mas sim se dá em diálogo com a dos outros. Trata-se do abrir-se à história (traumática e silenciada) do outro. Veja-se o caso brasileiro, com sua incapacidade crônica de inscrever sua longa e terrível história de violências, da escravidão à última ditadura, às histórias dos Amarildos de nosso presente. Esse silêncio nos condena também a repetir sem trégua a violência iniciada pelo ciclo colonial.
Autores, Vários. Cult #205 – Judith Butler.