sexta-feira, fevereiro 07, 2025

PSICANÁLISE E ARTE NA ÉPOCA DO FIM DO BELO




O OBJETO DE ARTE NA ÉPOCA DO FIM DO BELO: DO OBJETO AO ABJETO.


MARIE-HÉLÈNE BROUSSE


O objeto de arte é um objeto comum ou um objeto a lacaniano? Se nos referimos à distinção que o próprio Lacan constitui no Seminário a angústia,[i] é um objeto comum. De fato, ele provém do modo especular de constituição dos objetos, ele é cotável e intercambiável como o demonstram as variações e especulações do mercado da arte. Enfim, ele depende da noção de concorrência, implicando rivalidade e acordo ao mesmo tempo. Entretanto, conforme G. Wajcman mostrou em sua obra Collection[ii] e seus trabalhos sobre colecionadores, por circular no mundo dos objetos comuns, ele não é menos investido por outro modo que, este, depende de toda uma lógica libidinal. Ele é, então, insubstituível. Amontoado nos museus, exposto ou escondido, colocado em série ou isolado por uma literatura especializada e elucidada por saberes precisos, ele permanece único, não mais partilhável que a dor ou o prazer, e não substituível. Então, ele é objeto a, pelo efeito que produz no falasser. Lacan demonstrou, a respeito do quadro, sua função de "captura-olhar"[iii], o que o coloca em relação com um dos objetos a classicamente definidos como tal, e é demonstrável que os objetos, ditos objetos de arte, em sua diversidade, são conectados a outros objetos a, tais como a voz, o excremento, o vestígio ou o restos. 

 

Os analistas que buscamos ser na orientação lacaniana sabem que o artista "sempre nos precede" e nos abrem caminho[iv]. Esta "demarcação de método", conforme a qualifica Lacan, será aqui a nossa. O artista contemporâneo nos precede quanto à evolução do estatuto dos objetos na cultura. Interpretando os objetos comuns, ele os separa e os articula aos objetos atais como o saber textual da psicanálise os circunscreve no discurso dos analisantes. Isto se parece bastante com um exercício de ilusionismo em relação à arte contemporânea.

 

Nossa tese será a seguinte: por longo tempo presos à barreira do Belo"[v], os objetos de arte contemporânea a ultrapassaram e, com ela, certo número de outros limites, mudando radicalmente, por essa via, a função e as modalidades da arte em nossas sociedades contemporâneas. Esta tese se inscreve no movimento de elucidação iniciado por J.A. Miller e E. Laurent, por ocasião do curso "O outro que não existe e seus comitês de ética", e mais recentemente

desenvolvido por J. A. Miller em "Uma fantasia", em que evidencia o lugar e a função que o objeto a adquiriu no novo discurso do mestre.[vi] Situemos, então, que na época do Outro que não existe e do império da ciência e de suas aplicações sobre o discurso do mestre, o objeto de arte faz "comitê de ética", ao modo de Sade completando Kant.

 

"Ultrapassar a barreira do belo", o que se deve entender com isso? O Belo remete sempre, de um lado, à única boa forma que o falasser conhece, aquela de seu corpo, em relação a qual Lacan assinalava em 1975 que seu corpo, "ele o adora",[vii] e de outro lado, ao ideal, ou seja, a uma forma de nomeação: I(A). É a função vel por excelência, cobrindo e deixando adivinhar, ao mesmo tempo, o caos interno sob o qual se apresenta para o sujeito seu organismo e o horror do corte que nele efetua o sistema significante: o Belo é o repouso para o fascinum, garantido pelo Outro. Por muito tempo a arte funcionou nesse binário: unificação e idealização, ainda que, justamente, seu poder se ligasse a desvelá-lo em relação ao despedaçamentoinicial, de maneira controlada. Penso nas últimas telas de Titien e em J. Bosch por exemplo, mas poderíamos sustentar que, para entrar na história, uma tela ou um objeto deve responder a essa exigência contraditória realizada pelo belo. I(A) envolvia a: o Outro confere à Imagem o valor que enquadra e circunda o objeto.

Hoje, essa barreira acabou. I(A) não governa mais a abordagem do objeto pulsional pela Arte. A separação entre o Ideal e o objeto é consumida e é o a sem vel que se adianta. O artista interpreta diretamente ao modo do objeto pulsional, que corre entre os objetos comuns e anima nosso mundo, nossos corpos, nossos hábitos, nossos estilos de vida e, portanto, nossos modos de gozo.

Muitas vezes os artistas estiveram deslocados em relação aos moralistas, o que inclusive lhes valeu algumas dificuldades com os poderes em voga, que eles seduziam e às vezes aterrorizavam: aroma de escândalo. Esta função escândalo é uma função ética e se afirma, mais do que nunca, contra a função vel. Em geral, é por seu não-sabido (insu) que os artistas o exercem, mais guiados pela pesquisa dos efeitos produzidos sobre os expectadores ou os leitores
do que por uma vontade de julgar. Eu tomarei alguns exemplos, dentre os mais conhecidos, para esclarecer meu propósito.


Damien Hírst é um artista britânico que pertence ao movimento dito YBA, que há alguns anos alcançou uma notoriedade mundial. Uma de suas obras recentes, intitulada ''For the Love of God", é o seguinte objeto: um crânio sorridente, totalmente coberto de diamantes.
Ela valia 50 milhões de libras esterlinas e comporta três vezes o número de diamantes da coroa que a rainha da Inglaterra utiliza em ocasiões especiais.


Ela é de platina e reproduz um crânio humano do séc. 18, comprada de um taxidermista. Os dentes foram extraídos, polidos e reinseridos no maxilar da cabeça de platina. Teríamos reconhecido um tema tradicional da arte ocidental, as vanidades, muitas vezes simbolizadas desse modo, vanidades dos bens deste mundo. Mas neste caso o símbolo de vanidade é uma vanidade mesmo, um dos bens deste mundo, a venda. A diferença entre o símbolo e o referente é abolida. Certamente, podemos fazer soar o guizo do sentido e elucubrar, por diversão, sobre a rainha - Hamlet não está longe disso -, sobre os "grandes" deste mundo que hoje se transformaram em "people", sobre o título que evidentemente também acrescenta Deus e amor ao sagrado ao carrinho de compras dos bens da dona de casa. Resta o valor fálico, reduzido ao brilho do diamante e à grandeza do valor da mercadoria. Estamos longe do quadro dos Embaixadores e do objeto em anamorfose que se oculta e que, quando se mostra, vem capitonear a cena.

 

Esse mesmo artista é também célebre por obras dentre as quais uma se chama "Mother and child": trata-se de uma vaca e de seu bezerro, cortados em postas e conservados, pedaço por pedaço, em caixas de plástico transparente do tamanho da vaca, cheias de formol e alinhadas ligeiramente espaçadas umas atrás das outras, em ordem. O eco para nós com o sonho da bela açougueira e as fatias posteriores de uma bela histérica é enganador. Aqui as fatias devem ser tomadas como o contrário do embalsamamento do falo, mais taxidermia dos órgãos expostos ao olhar, interior tornando-se externo: a imagem do corpo em sua bela forma é cuidadosamente recortada, não pelo significante, como o pratica o sintoma histérico em seu esforço de anatomia linguageira, mas por um escalpelo fatiador que remete ao método científico. Essas obras trouxeram um problema para os museus que as adquiriram. De fato, algumas dessas caixas transparentes se racharam muito rapidamente, tomando particularmente perigosa a sua exposição. Tocamos aí em outro ponto. As obras contemporâneas são muitas vezes efêmeras; algumas por estrutura, por serem performances, outras, como no caso desse tipo de obra de Hirst, por razões técnicas, outras ainda em função de seu suporte (o Puppy, do Guggenheim de Bilbao). Isto conduz a debates no mercado de arte acerca do preço desses restos de performance (fotos, vídeo, kit para reproduzir a performance inicial, do tipo "faça você mesmo", objetos diversos que foram utilizados nas performances). Quanto às instalações, elas necessitam espaços muitas vezes gigantescos. Mas o espaço que muitas delas requerem ultrapassa em muito o enquadre estreito do museu, e mesmo da Cidade, e até do espaço habitado. Tanto em termos de tempo, como de espaço, os objetos de arte contemporânea fazem explodir as paredes, os dispositivos tradicionalmente partilháveis das obra pelos séculos passados e mais genericamente o campo do olhar humano. O mesmo se dá com relação às técnicas, os saberes e os materiais que deixaram de enviar aos cursos como aos domínios que organizavam tradicionalmente o mundo da arte: mistura dos gêneros (teatro, dança, artes plásticas, vídeo, cinema), mistura de formações, mistura de discursos. A arte passa a se opor a qualquer tentativa de transformá-la em conjunto consistente. Ela está do lado do Não-todo, o que tem consequências sobre os objetos que são os produtos disso: na maior parte do tempo são inclassificáveis (em termos de classe, isto é, em termos fálicos).


Deste modo as produções reagrupadas mal ou bem sob o vocábulo
"body art" manifestam um único traço comum, que apresenta igualmente a primeira obra de Hirst que mencionei: assim como o símbolo da vanidade é uma vanidade, assim como o objeto de arte é o artista. É o caso de Orlan", recentemente entrevistada por J.-A. Miller, mas também diversos outros". O objeto pode ser o corpo do artista e a operação à qual se submete, mas também sua subjetividade.


Com a barreira do Belo, outros limites foram seja deslocados, seja apagados. Esse cruzamento de registros diz respeito a:
1- a barreira entre o corpo, no sentido da imagem global, pivô da dimensão do imaginário e o organismo, pivô da dimensão do real;
2 - a barreira do dentro-fora que aí é correlacionada, aboli da tanto em relação ao espaço em que são situadas as obras quanto o interior/exterior do corpo, o íntimo e o não íntimo, a subjetividade e a objetividade. Essa abolição tem um efeito dinamite sobre as diferentes versões do discurso do mestre, particularmente sobre aquele que se inspira no discurso da ciência. Disso resulta que a arte contemporânea é uma máquina de guerra contra a psicologia, ao mesmo tempo em que a psicanálise;
3 - a barreira entre sentido próprio e sentido figurado, o que produz um efeito de interpretação metafórica cujo valor ético é buscado pelo artista, mas também um efeito "psicose";
4 - a barreira entre sí
mbolo e referente, produzindo um entrecruzamento entre simbólico e real, de tal modo que o efeito produzido é do tipo "índex levantado" e não explicação;
5 - a barreira entre significante e semblante, produzindo um entrecruzamento no interior do simbólico;
6 - a barreira entre o objeto de arte e o objeto comum, manifesta na diversificação dos modos de fazer da arte como na natureza dos objetos, produzindo um entrecruzamento entre objetividade e objetalidade no sentido que Lacan dá a esse termo no seminário A angústia.


Dessas diferentes operações, resulta que a Arte deixou para trás o sentido que a representação ordenava e que as três dimensões (imaginário, simbólico e real) nela se encontram modificadas. O objeto de arte não está mais em uma relação metafórica com o sentido e, portanto, em ruptura com a realidade; Ela é real. Tomemos um último exemplo: a obra Cloaca, de Win Delvoye.


Nesse campo da psicanálise, o último ensino de Lacan segue exatamente o mesmo movimento. Tomo como prova disso a questão que ele se coloca: "o inconsciente é imaginário ou real?", a pluralização dos nomes do pai pertencendo aos três registros, ou ainda a necessidade da clínica borrorneana, o dispositivo do passe, o sentido metafórico abandonado em favor de um esforço de poesia, enfim a noção do sinthoma. Devemos acrescentar a isto as invenções produzidas por Miller nessa direção, desde o acento colocado sobre os inclassificáveis da clínica até a noção de psicose ordinária.


Concluirei com três pontos:
1 - Pelo fato de que o objeto de arte está em ruptura de sentido e de ideal, articulando-se a um Outro que não existe, ele requer, para ser colocado em função, a sustentação de um discurso sobre a arte. É por isso que só podemos constatar a enorme expansão do domínio do discurso sobre a arte desde a segunda metade do século: XX. Esse discurso ordena o mercado da arte que é uma das condições de produção das obras.
2 - Lacan, no seminário a ética da psicanálise, havia distinguido radicalmente idealização e sublimação. Essa distinção, difícil de colocar em evidência na arte antes da ruptura contemporânea, é agora patente. Talvez ela tenha começado a ser claramente afirmada por Marcel Ducham. Hoje, a partir da abolição da barreira do belo e da adoração do corpo, ela se mostra. O objeto de arte contemporânea a torna límpida e abre a via para o analista enfim avançar na questão da sublimação. A satisfação implicada na sublimação vira as costas ao sentido.

Mas Lacan diferenciava também a sublimação e a perversão. Da mesma forma, nas produções de arte contemporânea, essa diferença talvez não salte aos olhos. Ela é, no entanto, verificada. Não se trata, para o artista, no efeito produzido no público, além do bla-bla ideológico muitas vezes simplório que acompanha a obra, de completar o Outro que existia e que não existe mais, mas de recuperar um objeto que lhe faria um nome ou um ego. O objeto de arte permanece, portanto, hoje, um modo de satisfação sem denegação e sem recalcamento.
3 - Como qualificar mais adiante tal satisfação? É uma satisfação irônica. A visada é fazer o público entrar em um mundo irônico ou de esburacar a realidade quotidiana com espaços irônicos. É a ironia que confere ao objeto de ar atual sua "psychotic touch", um pequeno ar de psicose.

O objeto de arte contemporânea é fora do sentido. Quando acontece de ele ser separador, o corte jamais toma um sentido fálico reconhecido. Ele é da ordem do bricabraque, de uma metonímia aleatória. Ele se parece com lalíngua, com o inconsciente real. Se é objeto causa de desejo, é um desejo de real. Mas poderíamos nomeá-lo a-bjeto real, justamente porque sua única consistência é irônica. Às vezes, essa ironia consente com o humor, às vezes ao cômico, tal como o definiu Lacan ao falar do pato que corre ainda depois que lhe cortaram o pescoço; às vezes ela não consente com nada.


Deixemos a última palavra a um artista russo contemporâneo do qual uma pequena obra dos anos 80 foi apresentada na exposição do Guggenheim Bilbao consagrada à arte russa do século XVII aos nossos dias. Imaginem um pequena caixa de 30 X 70 centímetros, mais ou menos na qual um pequeno personagem se volta alternadamente para as costas e para o ventre. E leiam o título: "Lênin se revira em sua tumba". Não é só Lênin que a arte contemporânea e a psicanálise de orientação lacaniana impedem de dormir o sono eterno!


Texto traduzido por Teresinha N. M. Prado.

 

 

Referências:



[i] 'Lacan, J. (2004 [1962-63]). Le séminaire, livre X, I'angoisse. Cap. VII,p.107.

[ii] 'Wajcman, G. (1999). Collection. Paris: Nous.

[iii] Lacan, J. (1985 [1963-64]) O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de janeiro: JZE.

[iv] Lacan  J. (2001) "Hommage fait à Marguerite Duras"  In Autres Ecrits. Paris: Seuil, p.192-193.

[v] 'Lacan, J. (1988 [1059-60]). O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de janeiro: JZE.

[vi] Miller,J.-A. (fev, 2005) "Uma fantasia». Opção Lacaniana, (42): 7-18.

[vii] Lacan.J. (1975).Conférences et entretiens dans les universités nord-amérícaínes. Scilicet, (6/7).



IN: OPÇÃO LACANIANA, N. 52, setembro 2008

 

 

 

 

 

 



 

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