Sexta Aula
Na primeira fase de seu ensino, entre 1936 e 1949, Lacan publica vários textos cujo foco é redefinir o narcisismo freudiano a partir de sua formulação do estádio do espelho, e de apresentar uma noção de sujeito articulado com o sentido.
Em 1949, Lacan publica uma versão modificada de seu texto, O estádio do espelho como formador da função do eu, apresentado pela primeira em 1936, num Congresso de Psicanálise.
Em O estádio do espelho, a partir da observação de sua própria filha, ele descreve a experiência de uma criança, entre seis e dezoito meses de idade, frente ao espelho. Para Lacan, nesta fase, apresentada como fase do espelho, a criança – tal como no mito de Narciso – se fascina e se identifica com a sua imagem, enxergada como outra no espaço virtual que lhe apresenta o espelho.
Influenciado pela filosofia de Hegel, Lacan formaliza essa experiência empírica como paradigma da dialética do senhor e do escravo. Na fase do espelho, como em toda relação dialética, no sentido hegeliano, o que acontece no outro – o espelho – não está separado do que acontece na criança. Por isso, a imagem que o espelho devolve à criança se cristaliza como o seu eu, como a sua consciência de si, mas na posição de um mestre parasitário. Segundo Lacan, a imagem está na posição de um mestre parasitário porque, por um lado, cria a ficção de uma identidade, mas, por outro lado, esta ficção, que é o seu eu, não cumpre nenhuma função que permita a adaptação da criança ao seu meio.
Nesse período, diz Lacan, o essencial para psicanálise é a função das identificações, que constitui sua teoria antes de evidenciar a função do significante. O sujeito, durante toda a sua vida, é captado por imagens, às quais ele se identifica sucessivamente e, portanto, o seu ego é um bazar de miudezas de identificações, que podem ser contraditórias entre si.
Com a formulação do estádio do espelho, a partir da dialética do senhor e do escravo, Lacan redefine o narcisismo freudiano. De acordo com Freud - Introdução sobre o Narcisismo, 1914 - , o conceito de narcisismo designa o investimento libidinal do eu ao ser tomado como objeto pela pulsão. No início, diz Freud, o corpo da criança se encontra fragmentado em zonas de gozo, zonas essas que se satisfazem auto-eroticamente. Cada zona erótica apresenta-se uma economia isolada de satisfação e desvinculada das outras. A unidade só é conquistada numa nova ação psíquica que ”se agrega” ao auto-erotismo. Esta nova ação psíquica, que permite a passagem da fragmentação à unidade corporal, não é outra coisa senão a libidinização do eu na fase do narcisismo – narcisismo primário. Esta fase, em que o eu é tomado como objeto da pulsão sexual, dá lugar a um novo estágio, no qual a libido se desloca do eu para os objetos do mundo. Este deslocamento da libido do eu para os objetos, libido objetal, permite que o desejo seja cativado pelos objetos. Ou seja, que se estabeleça uma passagem do amor de si, narcísico, ao amor pelo outro. Mas como o que estabelece essa passagem é o deslocamento da libido do eu para o outro, o amor pelo outro ficará sempre preço as raízes do narcisismo. Amamos o nosso parceiro não por ser uma alteridade radical, mas porque equivale à nossa imagem. Amamos no outro a nossa própria imagem.
Em Lacan, o estádio do espelho é que introduz o que Freud chamou de narcisismo. Este novo ato psíquico, também em Lacan, se agrega ao auto-erotismo, de uma maneira súbita. Por isso, o estádio do espelho não responde a uma lógica evolutiva, a sua emergência implica um corte com o que antecede; e se caracteriza pelo fato da criança reconhecer a sua imagem no espelho.
Este reconhecimento é um efeito do dinamismo libidinal que a sua própria imagem produz. Mas, como adverte Lacan, devemos entender este processo, não como um mero reconhecimento, senão como uma identificação “no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem”. (Lacan, 1998)
Por essa via, para Lacan, a identificação do sujeito com a sua imagem, na fase do espelho, não só constituirá o eu como uma projeção imaginária, como também o determinará com a função de desconhecimento. Isto se deve a que, pela imagem que o espelho lhe devolve, acredita ter uma unidade que não condiz com a prematuração de seu corpo anato-fisio-biológico, que se encontra na impotência motriz e na dependência da amamentação. Mas a característica de desconhecimento do eu não se deve simplesmente a que o eu se constitui por identificação com o outro, a que o eu é outro. A característica do eu é de desconhecimento porque, uma vez produzida à identificação com o outro, o eu desconhece a mediação do outro, ou seja, o eu acredita ser igual ao eu, e não igual ao outro que o constituiu como tal. Por isso mesmo, em seu escrito Formulações sobre a causalidade psíquica, Lacan define o desconhecimento como a loucura mais geral, por ser a loucura própria do eu.
Assim, para Lacan, o sujeito estabelece uma dialética identificatória com o seu entorno porque não sabe quem é, e por sofrer de um desraizamento instintual, não sabe o que quer. Nesta dialética, o sujeito conquista um duplo conhecimento. Por um lado, a identificação com o outro, o assumir como sua a imagem do outro, lhe permite “conhecer” quem é. E por outro lado, por se crer outro, assume como objeto de seu desejo aqueles que são objetos do desejo do outro, e isto lhe permite “conhecer” o que quer.
Por perder a matriz instintual, o ser humano não sabe o que quer, e não sabe qual é o objeto do seu desejo. Qualquer objeto pode cativar o seu desejo: a única condição para isto é que ele seja objeto do desejo do outro. Portanto, os objetos não são fixos, não são determinados instintivamente, como no animal. Isto indica que, no ser humano, o campo de força do desejo é mais autônomo que nos animais: os objetos possíveis são infinitos.
No entanto, no ser humano, a autonomia de seu desejo, em relação a seu objeto, tem um preço a ser pago. O preço que paga pela autonomia de seu desejo, Lacan o encontra na pouca realidade dos objetos. Diferentemente do instinto animal, que tem objetos fixos, insubstituíveis, com os quais o animal se satisfaz, o desejo humano só fica cativado pelos objetos que o outro deseja, mas se estes objetos deixam de ser desejados pelo outro perdem o brilho libidinal que os iluminava, apagam-se, ficando apenas o pouco de realidade constituinte.
2 comentários:
Oi,gostaria de saber se o outro que se referiu no parágrafo abaixo,se refere ao grande Outro,ou se ao pequeno outro;já que em vários momentos do texto,não se usou a maiúscula. Caso o texto esteja se referindo ao grande Outro,gostaria que me desse mais detalhes no que expôs na seguinte citação:
"Por perder a matriz instintual, o ser humano não sabe o que quer, e não sabe qual é o objeto do seu desejo. Qualquer objeto pode cativar o seu desejo: a única condição para isto é que ele seja objeto do desejo do outro. Portanto, os objetos não são fixos, não são determinados instintivamente, como no animal. Isto indica que, no ser humano, o campo de força do desejo é mais autônomo que nos animais: os objetos possíveis são infinitos.
No entanto, no ser humano, a autonomia de seu desejo, em relação a seu objeto, tem um preço a ser pago. O preço que paga pela autonomia de seu desejo, Lacan o encontra na pouca realidade dos objetos. Diferentemente do instinto animal, que tem objetos fixos, insubstituíveis, com os quais o animal se satisfaz, o desejo humano só fica cativado pelos objetos que o outro deseja, mas se estes objetos deixam de ser desejados pelo outro perdem o brilho libidinal que os iluminava, apagam-se, ficando apenas o pouco de realidade constituinte."
[gostaria de receber resposta,via email.]
Anônimo!
Você não mandou seu e-mail.
Então, vou responder por esta via.
Essa aula, teve por objetivo assinalar a primeira noção de desejo na teoria de Lacan.
O texto é de 1949 - O estádio do espelho.
Um momento teórico que precedeu a colocação, em primeiro plano, do significante e da linguagem; e que faz do imaginário a dimensão essencial do psiquismo.
O texto de referência dessa aula já está na Bibliografia: Miller - Lacan Elucidado - 1o. Cap.
Abraços
Maria
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