quinta-feira, agosto 02, 2012

Arqueologia do campo


A introdução da psicanálise no Brasil não se confunde absolutamente com a sua institucionalização, se definirmos essa como a constituição de um sistema de ensino e de supervisão clínica que se sustenta fundamentalmente na análise de formação do futuro psicanalista. Assim, se a institucionalidade psicanalítica se iniciou com a fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, nos anos 40, do século 20, quando aquele tripé foi então instaurado, a inscrição do discurso psicanalítico no Brasil se realizou nos anos 20 e 30, sendo incorporado por duas modalidades contrapostas de agenciamento.

Por um lado, a psicanálise começou a se difundir no pensamento psiquiátrico, considerada que foi como uma de suas teorias, dentre outras, é claro, na medida em que enunciava novas etiologias possíveis para as perturbações mentais. A dimensão sexual passou a ser então considerada. Isso aconteceu tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, centros maiores que eram da psiquiatria brasileira da época. Pelo outro, contudo, o discurso freudiano alimentou a imaginação de literatos e artistas, que reconheceram no pansexualismo das hipóteses psicanalíticas um instrumento rico para legitimar a revolução dos costumes na acanhada República Velha. O modernismo brasileiro, principalmente mas não somente pela pena anárquica de Oswald de Andrade, se valeu da psicanálise para nos libertar de nossos atrasos tropicais.

Essa dupla dimensão constitutiva da psicanálise brasileira é similar àquela que aconteceu na França, onde foi inscrita tanto na tradição psiquiátrica quanto na artística. No que concerne a essa última, o movimento surrealista se valeu ostensivamente da psicanálise para forjar novas teorias e práticas estéticas. Não foi um acaso, certamente, que Breton e Aragon tenham afirmado sem pestanejar que a histeria era a maior obra de arte do século. Pode-se dizer que uma figura tão eminente, para o pensamento psicanalítico, como Lacan se encontra na encruzilhada dessas duas tradições, de maneira que a ousadia e a originalidade de seu discurso aqui se constituíram. Portanto, a tessitura de uma “psicanálise à francesa” (Smirnoff) se deveu à articulação precisa dos fios dessa dupla vertente originária, que permitiu não apenas inscrever a problemática da linguagem no centro do projeto psicanalítico, como também imprimir a exigência de uma fundamentação filosófica desse projeto, que estava ausente em outras tradições psicanalíticas.

No que concerne ao Brasil, no entanto, essa costura não se realizou, na medida em que as duas tradições se mantiveram isoladas, com franco domínio da tradição psiquiátrica sobre a literária, que se manteve à margem. Assim, a inscrição literária e filosófica da psicanálise ficou atrofiada e sem qualquer sistematicidade, sendo apenas retomada com vigor com a difusão do pensamento de Lacan no Brasil, nos anos 80, quando a psicanálise se transformou num objeto privilegiado de reflexão por diferentes saberes, como a filosofia, a literatura, a lingüística, a antropologia social e a história. Não faltaram esforços, contudo, para essa costura. Bem entendido. Como se sabe, Durval Marcondes tentou criar uma sociedade de psicanálise em São Paulo, nos anos 20, que pretendia reunir psiquiatras, literatos e humanistas, mas a sua existência foi efêmera, restando apenas disso a publicação de um único número da revista da instituição em questão.

Com isso, a vertente psiquiátrica ganhou força e forma, ocupando então toda a cena. É por essa modalidade específica de apropriação que podemos reconhecer algumas particularidades assumidas pela psicanálise no Brasil, à medida que essa exibe na sua matriz de formação certas marcas que foram cultivadas no solo do discurso psiquiátrico. É para isso que devemos ficar bem atentos, de olho no lance, para que possamos surpreender certas repetições e reiterações que vão se expressar posteriormente, ao longo da história da psicanálise no Brasil.

Assim, considerada como uma das teorias psicopatológicas existentes, a psicanálise foi introduzida inicialmente na explicação etiológica de diversas perturbações mentais. No que concerne a isso, o seu cardápio era francamente variado, indo da esquizofrenia à epilepsia, passando, é claro, pelo campo das neuroses. No entanto, desse espaço básico de legitimidade clínica, oferecido pela psiquiatria, o discurso psicanalítico passou também a se inscrever em diferentes campos sociais de intervenção, tais como a pedagogia e a criminologia. Nesse contexto, o que estava em pauta era não apenas o viés terapêutico daquele discurso, mas as suas possíveis potencialidades preventivas. Era a civilização moderna e seu mal-estar correlato que estava em foco agora. Portanto, a psicanálise se transmutou num discurso sobre a higiene mental, que era uma das marcas do pensamento psiquiátrico nessa conjuntura histórica.

Porém, no que se refere à conjuntura brasileira da época, o discurso da higiene mental se inscrevia num projeto mais abrangente de constituição da identidade nacional e de formação da população brasileira. Com isso, a psicanálise como discurso se inscreveu decididamente no movimento eugênico que se disseminou no Brasil nos anos 30, que teve na Liga Brasileira de Higiene Mental uma de suas formas de institu-cionalidade. Os rastros desse movimento podem ser encontrados no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Pernambuco.

O que quero ressaltar aqui é que a matriz discursiva da psicanálise no Brasil assumiu não apenas uma versão clínica e terapêutica, mas penetrou também no campo social por meio da higiene mental. Em ambas, a psicanálise foi decididamente filtrada pela matriz psiquiátrica de discursividade, que a marcou de maneira indelével. Com isso, quando a psicanálise se institucionalizou, inicialmente em São Paulo e posteriormente no Rio de Janeiro, com a organização de centros de formação vinculados à International Psychoanalytic Association, a sua matriz psiquiátrica já estava devidamente estabelecida. Foi sobre esse solo arqueológico que se desenvolveram aqui as práticas de formação analítica e se constituíram certas modalidades de clínica. Pode-se depreender e se surpreender ainda hoje a presença dessas marcas na psicanálise brasileira atual, que como fantasmas ainda se fazem presentes nos discursos psicanalíticos vigentes, sejam esses oriundos de instituições vinculadas à Associação Brasileira de Psicanálise, sejam oriundos de instituições lacanianas, que polarizam o campo psicanalítico brasileiro na atualidade.

Porém, isso ainda não é tudo, é bom que se diga. Isso é apenas o começo dessa história. Se até agora enfatizei apenas a presença de uma matriz psiquiátrica na constituição da psicanálise brasileira, é preciso destacar agora um outro viés dessa matriz, qual seja o que define quem pode ser psicanalista. Isso porque a história da psicanálise no Brasil, dos anos 60 aos anos 80, foi intensamente perpassada por esse debate, que se encontra ainda hoje presente entre nós.

Não obstante a formulação célebre de Freud de que a psicanálise não era uma modalidade de prática médica, no ensaio sobre a análise leiga, a exigência da educação  médica como pressuposto para a formação analítica se disseminou internacionalmente como uma norma após os anos 40. É claro que existiam algumas poucas exceções, mas como norma institucional essa exigência foi então estabelecida, progressivamente, no campo da Associação Internacional de Psicanálise. Dessa maneira, foi instituída também no Brasil, de forma a estabelecer uma hierarquia entre médicos e psicólogos no que concerne à psicanálise. Contudo, mesmo em outras instituições não vinculadas à IPA, como o Instituto de Medicina Psicológico no Rio de Janeiro, os psicólogos eram apenas aceitos para a formação analítica desde que tivessem o título de Mestrado em Psicologia, de forma que uma hierarquia social foi estabelecida nesse mercado de bens simbólicos.

Com isso, os psicólogos não podiam ser oficialmente psicanalistas, obtendo apenas formações paralelas oferecidas por rebeldes da IPA. Constituíu-se com isso uma insatisfação crescente nesse campo que conduziu, nos anos 70, à busca de reconhecimento pelos psicólogos por analistas argentinos, que ofereciam formações paralelas. Muitos desses imigraram então para o Brasil por encontrarem aqui melhores condições de trabalho do que no mercado psicanalítico argentino. Outros imigraram posteriormente, como exilados políticos, e fortaleceram esse mercado de formação analítica. Contudo, a legitimidade identitária pretendida pelos psicólogos não foi plenamente alcançada por esse procedimento, pois permanecia sempre o mal-estar de que não seriam oficialmente psicanalistas, mas clandestinos, não obstante a transparência de suas práticas, acima que eram de qualquer suspeita.

Essa dinâmica foi transformada no início dos anos 80, com a constituição de instituições lacanianas no Brasil. Isso porque essas aceitavam não apenas psicólogos como também pessoas com outras formações universitárias como candidatos a analistas. Abriu-se assim um flanco decisivo para os psicólogos, que acabou por ter um efeito mediato sobre as instituições da Associação Brasileira de Psicanálise, que passaram também a aceitá-los, numa disputa pela hegemonia no campo psicanalítico.

É preciso evocar aqui que a legitimidade das instituições lacanianas se deve ao fato de que Lacan foi expulso da Associação Internacional de Psicanálise, mas que não apenas se manteve como analista como também construiu um importante discurso teórico em oposição ao da Associação Internacional de Psicanálise. Reivindicou para si o lugar privilegiado de herdeiro teórico do discurso freudiano e denunciou os desvios daquela instituição internacional em face dos pressupostos teóricos e éticos da psicanálise. Vale dizer, fez funcionar a seu favor a oposição entre a verdadeira e a falsa psicanálise, que a Associação Internacional de Psicanálise sempre utilizou até então para desconstruir a identidade analítica de seus dissidentes. Com isso, a legitimidade de sua pretensão foi estabelecida inicialmente na França, sendo transposta posteriormente nos anos 70 para a América Latina em geral e para o Brasil, onde encontrou um campo fértil para a sua expansão teórica e institucional. Uma certa desmedicalização da psicanálise foi assim promovida à medida que essa não se restringia mais aos médicos, mas se abriu não apenas para os psicólogos como também para pessoas com outros percursos universitários, não obstante o fato de que a legislação brasileira enuncie que apenas médicos e psicólogos possam exercer atividades terapêuticas no seu sentido estrito.

Entretanto, uma outra onda conservadora se coloca na atualidade. Com efeito, existem novas pressões hoje para que a psicanálise seja uma prática estritamente médica, de forma que mesmo os psicólogos que a exerçam sejam tutorados por médicos na sua prática clínica. Existem na atualidade lobbies poderosos circulando no Congresso Nacional que trabalham para esse fim. No que concerne a isso, somente o futuro nos dirá se eles terão êxito nas suas pretensões políticas, apesar da oposição existente da grande maioria do campo psicanalítico sobre isso.

Ao lado disso, um outro debate se dissemina hoje igualmente, qual seja, se a psicanálise deve ser uma profissão como as demais ou se aquela deve manter a sua autonomia social perante o Estado, devendo os analistas prestarem apenas contas do que fazem aos seus pares e às instituições de que fazem parte. É novamente a questão da laicidade da psicanálise que se recoloca aqui, que foi sustentada por Freud nos anos 20. Assim, alguns grupos evangélicos, que promovem hoje cursos de formação psicanalítica, pressionam o Congresso Nacional pela profissionalização da psicanálise, encontrando aqui a resistência cerrada de todos os grupos psicanalíticos brasileiros que querem manter a dimensão laica da prática psicanalítica.

Finalmente, é preciso destacar ainda a inscrição da psicanálise na universidade brasileira. Se nos anos 50 e 60 essa presença se restringia inicialmente aos cursos de medicina – nas disciplinas de psiquiatria, psicologia médica e psicossomática – e posteriormente de psicologia, o que nos caracteriza desde a segunda metade dos anos 80 é a constituição de centros avançados de pesquisa e de ensino de pós-graduação, que contam com o apoio da Capes e do CNPq. Presentes inicialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, com o boom da psicanálise esses cursos se disseminaram pelo território brasileiro, de maneira a constituir uma situação inigualável se comparada com o que ocorre na Europa, nos Estados Unidos e nos demais países da América Latina. Temos pois aqui uma presença da psicanálise na universidade que é única no mundo, caracterizando uma certa originalidade da tradição brasileira.

Esse processo revela a maturidade intelectual indiscutível atingida pela psicanálise no Brasil, já que indica poder essa hoje ser interpelada pelos outros domínios do saber, o que não ocorria quando a psicanálise ficava ilhada nas instituições analíticas. As críticas que se formulavam então eram sempre consideradas como signos indiscutíveis de resistência à psicanálise. Esse argumento hoje é francamente insustentável e mesmo francamente risível. Isso indica ao mesmo tempo, enfim, que os destinos da psicanálise no Brasil não estão na estrita dependência das instituições psicanalíticas, delineando novas possibilidades para a sua pesquisa e para o seu ensino.



Joel Birman
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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