A introdução
da psicanálise no Brasil não se confunde absolutamente com a sua
institucionalização, se definirmos essa como a constituição de um sistema de
ensino e de supervisão clínica que se sustenta fundamentalmente na análise de
formação do futuro psicanalista. Assim, se a institucionalidade psicanalítica
se iniciou com a fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, nos
anos 40, do século 20, quando aquele tripé foi então instaurado, a inscrição do
discurso psicanalítico no Brasil se realizou nos anos 20 e 30, sendo
incorporado por duas modalidades contrapostas de agenciamento.
Por um lado,
a psicanálise começou a se difundir no pensamento psiquiátrico, considerada que
foi como uma de suas teorias, dentre outras, é claro, na medida em que
enunciava novas etiologias possíveis para as perturbações mentais. A dimensão
sexual passou a ser então considerada. Isso aconteceu tanto no Rio de Janeiro
quanto em São Paulo, centros maiores que eram da psiquiatria brasileira da
época. Pelo outro, contudo, o discurso freudiano alimentou a imaginação de
literatos e artistas, que reconheceram no pansexualismo das hipóteses
psicanalíticas um instrumento rico para legitimar a revolução dos costumes na
acanhada República Velha. O modernismo brasileiro, principalmente mas não
somente pela pena anárquica de Oswald de Andrade, se valeu da psicanálise para
nos libertar de nossos atrasos tropicais.
Essa dupla
dimensão constitutiva da psicanálise brasileira é similar àquela que aconteceu
na França, onde foi inscrita tanto na tradição psiquiátrica quanto na
artística. No que concerne a essa última, o movimento surrealista se valeu
ostensivamente da psicanálise para forjar novas teorias e práticas estéticas.
Não foi um acaso, certamente, que Breton e Aragon tenham afirmado sem
pestanejar que a histeria era a maior obra de arte do século. Pode-se dizer que
uma figura tão eminente, para o pensamento psicanalítico, como Lacan se
encontra na encruzilhada dessas duas tradições, de maneira que a ousadia e a
originalidade de seu discurso aqui se constituíram. Portanto, a tessitura de
uma “psicanálise à francesa” (Smirnoff) se deveu à articulação precisa dos fios
dessa dupla vertente originária, que permitiu não apenas inscrever a
problemática da linguagem no centro do projeto psicanalítico, como também
imprimir a exigência de uma fundamentação filosófica desse projeto, que estava
ausente em outras tradições psicanalíticas.
No que
concerne ao Brasil, no entanto, essa costura não se realizou, na medida em que
as duas tradições se mantiveram isoladas, com franco domínio da tradição
psiquiátrica sobre a literária, que se manteve à margem. Assim, a inscrição
literária e filosófica da psicanálise ficou atrofiada e sem qualquer
sistematicidade, sendo apenas retomada com vigor com a difusão do pensamento de
Lacan no Brasil, nos anos 80, quando a psicanálise se transformou num objeto
privilegiado de reflexão por diferentes saberes, como a filosofia, a
literatura, a lingüística, a antropologia social e a história. Não faltaram
esforços, contudo, para essa costura. Bem entendido. Como se sabe, Durval
Marcondes tentou criar uma sociedade de psicanálise em São Paulo, nos anos 20,
que pretendia reunir psiquiatras, literatos e humanistas, mas a sua existência
foi efêmera, restando apenas disso a publicação de um único número da revista
da instituição em questão.
Com isso, a
vertente psiquiátrica ganhou força e forma, ocupando então toda a cena. É por
essa modalidade específica de apropriação que podemos reconhecer algumas
particularidades assumidas pela psicanálise no Brasil, à medida que essa exibe
na sua matriz de formação certas marcas que foram cultivadas no solo do discurso
psiquiátrico. É para isso que devemos ficar bem atentos, de olho no lance, para
que possamos surpreender certas repetições e reiterações que vão se expressar
posteriormente, ao longo da história da psicanálise no Brasil.
Assim,
considerada como uma das teorias psicopatológicas existentes, a psicanálise foi
introduzida inicialmente na explicação etiológica de diversas perturbações
mentais. No que concerne a isso, o seu cardápio era francamente variado, indo
da esquizofrenia à epilepsia, passando, é claro, pelo campo das neuroses. No
entanto, desse espaço básico de legitimidade clínica, oferecido pela
psiquiatria, o discurso psicanalítico passou também a se inscrever em
diferentes campos sociais de intervenção, tais como a pedagogia e a
criminologia. Nesse contexto, o que estava em pauta era não apenas o viés
terapêutico daquele discurso, mas as suas possíveis potencialidades
preventivas. Era a civilização moderna e seu mal-estar correlato que estava em
foco agora. Portanto, a psicanálise se transmutou num discurso sobre a higiene
mental, que era uma das marcas do pensamento psiquiátrico nessa conjuntura
histórica.
Porém,
no que se refere à conjuntura brasileira da época, o discurso da higiene mental
se inscrevia num projeto mais abrangente de constituição da identidade nacional
e de formação da população brasileira. Com isso, a psicanálise como discurso se
inscreveu decididamente no movimento eugênico que se disseminou no Brasil nos
anos 30, que teve na Liga Brasileira de Higiene Mental uma de suas formas de institu-cionalidade.
Os rastros desse movimento podem ser encontrados no Rio de Janeiro, em São
Paulo e em Pernambuco.
O
que quero ressaltar aqui é que a matriz discursiva da psicanálise no Brasil
assumiu não apenas uma versão clínica e terapêutica, mas penetrou também no
campo social por meio da higiene mental. Em ambas, a psicanálise foi
decididamente filtrada pela matriz psiquiátrica de discursividade, que a marcou
de maneira indelével. Com isso, quando a psicanálise se institucionalizou,
inicialmente em São Paulo e posteriormente no Rio de Janeiro, com a organização
de centros de formação vinculados à International Psychoanalytic Association, a
sua matriz psiquiátrica já estava devidamente estabelecida. Foi sobre esse solo
arqueológico que se desenvolveram aqui as práticas de formação analítica e se
constituíram certas modalidades de clínica. Pode-se depreender e se surpreender
ainda hoje a presença dessas marcas na psicanálise brasileira atual, que como
fantasmas ainda se fazem presentes nos discursos psicanalíticos vigentes, sejam
esses oriundos de instituições vinculadas à Associação Brasileira de
Psicanálise, sejam oriundos de instituições lacanianas, que polarizam o campo
psicanalítico brasileiro na atualidade.
Porém,
isso ainda não é tudo, é bom que se diga. Isso é apenas o começo dessa
história. Se até agora enfatizei apenas a presença de uma matriz psiquiátrica
na constituição da psicanálise brasileira, é preciso destacar agora um outro
viés dessa matriz, qual seja o que define quem pode ser psicanalista. Isso
porque a história da psicanálise no Brasil, dos anos 60 aos anos 80, foi
intensamente perpassada por esse debate, que se encontra ainda hoje presente
entre nós.
Não
obstante a formulação célebre de Freud de que a psicanálise não era uma
modalidade de prática médica, no ensaio sobre a análise leiga, a exigência da
educação médica como pressuposto para a formação analítica se disseminou
internacionalmente como uma norma após os anos 40. É claro que existiam algumas
poucas exceções, mas como norma institucional essa exigência foi então
estabelecida, progressivamente, no campo da Associação Internacional de
Psicanálise. Dessa maneira, foi instituída também no Brasil, de forma a
estabelecer uma hierarquia entre médicos e psicólogos no que concerne à psicanálise.
Contudo, mesmo em outras instituições não vinculadas à IPA, como o Instituto de
Medicina Psicológico no Rio de Janeiro, os psicólogos eram apenas aceitos para
a formação analítica desde que tivessem o título de Mestrado em Psicologia, de
forma que uma hierarquia social foi estabelecida nesse mercado de bens
simbólicos.
Com
isso, os psicólogos não podiam ser oficialmente psicanalistas, obtendo apenas
formações paralelas oferecidas por rebeldes da IPA. Constituíu-se com isso uma
insatisfação crescente nesse campo que conduziu, nos anos 70, à busca de
reconhecimento pelos psicólogos por analistas argentinos, que ofereciam
formações paralelas. Muitos desses imigraram então para o Brasil por
encontrarem aqui melhores condições de trabalho do que no mercado psicanalítico
argentino. Outros imigraram posteriormente, como exilados políticos, e
fortaleceram esse mercado de formação analítica. Contudo, a legitimidade
identitária pretendida pelos psicólogos não foi plenamente alcançada por esse
procedimento, pois permanecia sempre o mal-estar de que não seriam oficialmente
psicanalistas, mas clandestinos, não obstante a transparência de suas práticas,
acima que eram de qualquer suspeita.
Essa
dinâmica foi transformada no início dos anos 80, com a constituição de
instituições lacanianas no Brasil. Isso porque essas aceitavam não apenas
psicólogos como também pessoas com outras formações universitárias como
candidatos a analistas. Abriu-se assim um flanco decisivo para os psicólogos,
que acabou por ter um efeito mediato sobre as instituições da Associação
Brasileira de Psicanálise, que passaram também a aceitá-los, numa disputa pela
hegemonia no campo psicanalítico.
É
preciso evocar aqui que a legitimidade das instituições lacanianas se deve ao
fato de que Lacan foi expulso da Associação Internacional de Psicanálise, mas
que não apenas se manteve como analista como também construiu um importante
discurso teórico em oposição ao da Associação Internacional de Psicanálise.
Reivindicou para si o lugar privilegiado de herdeiro teórico do discurso
freudiano e denunciou os desvios daquela instituição internacional em face dos
pressupostos teóricos e éticos da psicanálise. Vale dizer, fez funcionar a seu
favor a oposição entre a verdadeira e a falsa psicanálise, que a Associação
Internacional de Psicanálise sempre utilizou até então para desconstruir a
identidade analítica de seus dissidentes. Com isso, a legitimidade de sua
pretensão foi estabelecida inicialmente na França, sendo transposta
posteriormente nos anos 70 para a América Latina em geral e para o Brasil, onde
encontrou um campo fértil para a sua expansão teórica e institucional. Uma
certa desmedicalização da psicanálise foi assim promovida à medida que essa não
se restringia mais aos médicos, mas se abriu não apenas para os psicólogos como
também para pessoas com outros percursos universitários, não obstante o fato de
que a legislação brasileira enuncie que apenas médicos e psicólogos possam
exercer atividades terapêuticas no seu sentido estrito.
Entretanto,
uma outra onda conservadora se coloca na atualidade. Com efeito, existem novas
pressões hoje para que a psicanálise seja uma prática estritamente médica, de
forma que mesmo os psicólogos que a exerçam sejam tutorados por médicos na sua
prática clínica. Existem na atualidade lobbies poderosos circulando no
Congresso Nacional que trabalham para esse fim. No que concerne a isso, somente
o futuro nos dirá se eles terão êxito nas suas pretensões políticas, apesar da
oposição existente da grande maioria do campo psicanalítico sobre isso.
Ao
lado disso, um outro debate se dissemina hoje igualmente, qual seja, se a
psicanálise deve ser uma profissão como as demais ou se aquela deve manter a
sua autonomia social perante o Estado, devendo os analistas prestarem apenas
contas do que fazem aos seus pares e às instituições de que fazem parte. É
novamente a questão da laicidade da psicanálise que se recoloca aqui, que foi
sustentada por Freud nos anos 20. Assim, alguns grupos evangélicos, que
promovem hoje cursos de formação psicanalítica, pressionam o Congresso Nacional
pela profissionalização da psicanálise, encontrando aqui a resistência cerrada
de todos os grupos psicanalíticos brasileiros que querem manter a dimensão
laica da prática psicanalítica.
Finalmente,
é preciso destacar ainda a inscrição da psicanálise na universidade brasileira.
Se nos anos 50 e 60 essa presença se restringia inicialmente aos cursos de
medicina – nas disciplinas de psiquiatria, psicologia médica e psicossomática –
e posteriormente de psicologia, o que nos caracteriza desde a segunda metade
dos anos 80 é a constituição de centros avançados de pesquisa e de ensino de
pós-graduação, que contam com o apoio da Capes e do CNPq. Presentes
inicialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, com o boom da psicanálise esses
cursos se disseminaram pelo território brasileiro, de maneira a constituir uma
situação inigualável se comparada com o que ocorre na Europa, nos Estados
Unidos e nos demais países da América Latina. Temos pois aqui uma presença da
psicanálise na universidade que é única no mundo, caracterizando uma certa
originalidade da tradição brasileira.
Esse
processo revela a maturidade intelectual indiscutível atingida pela psicanálise
no Brasil, já que indica poder essa hoje ser interpelada pelos outros domínios
do saber, o que não ocorria quando a psicanálise ficava ilhada nas instituições
analíticas. As críticas que se formulavam então eram sempre consideradas como
signos indiscutíveis de resistência à psicanálise. Esse argumento hoje é
francamente insustentável e mesmo francamente risível. Isso indica ao mesmo
tempo, enfim, que os destinos da psicanálise no Brasil não estão na estrita
dependência das instituições psicanalíticas, delineando novas possibilidades
para a sua pesquisa e para o seu ensino.
Joel Birman
psicanalista,
professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e professor adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro
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