Gostaria
de tentar desdobrar nosso assunto tomando como eixo a palavra “diferença”. Para
isso, proponho um caminho que, aliás, é o título que dei à minha fala: “Da diferença
sexual à diferença feminina”. Desde já uma pergunta se impõe: será que se trata
mesmo de um caminho, de uma separação, uma separação radical, um impasse entre a
diferença sexual e a diferença feminina?
A
diferença é uma determinação. Se digo que A
≠ B, estou determinando que existe algo em A que não existe em B, ou
vice-versa. Nesse sentido, a diferença parte necessariamente de uma comparação:
comparam-se dois opostos e se determina onde estaria o ponto em que os dois se
separam ou que não permite que os dois possam se sobrepor. Uma parte dos atributos
de um dado conjunto, A, não pertence ao outro, B, ou vice-versa. Seria uma
maneira muito simples de definir ou de aproximar o que seria uma diferença.
É
claro que sobre a questão da diferença sexual, pensamos no que Freud chamou de
“diferenças anatômicas”, de onde extraiu as consequências psíquicas. Essa
seria, me parece, a primeira proposta que eu traria para pensarmos, e que está
na base da ideia de que o homem representa uma dimensão positiva, enquanto a
mulher é uma dimensão negativa. Penso que não é impossível atrelarmos essa
diferença imediatamente à percepção do corpo que Freud chamava diferenças
anatômicas. É uma aproximação um tanto grosseira, mas também é intuitiva. Pode
ser autorizada como uma primeira aproximação. Há uma expressão usada por Jacques-Alain
Miller em seu texto Mulheres e semblantes (1993), onde ele afirma que o Penisneid representa a “subjetivação do não
ter”
Há
uma extensa bibliografia sobre isso. Podemos buscar essa ideia muito
remotamente em Aristóteles: a ideia que ele fazia da mulher não era muito
elogiosa, mas enfim ele está na base do pensamento ocidental. Em Geração dos
Animais, Aristóteles trata exatamente do que o título indica, ou seja, como os
animais se reproduzem: “[...] é macho o ser capaz de engendrar em um outro,
fêmea aquele que engendra em si e do qual nasce o ser engendrado que existia no
gerador”
É macho o ser capaz de engendrar em um outro,
em outro corpo, diferente daquele que engendra. É fêmea aquele ser que engendra
em si e do qual nasce o ser engendrado que existia no gerador. A mulher
engendra no próprio corpo aquele ser que foi gerado fora dela. Isso se
relaciona ao que se sabia na época sobre a reprodução. Não se conhecia o óvulo.
Há uma série de detalhes que torna essa frase pesada. Essa ideia terá
influência no Ocidente, no terreno da Cristandade, já que Aristóteles é inspiração
para São Tomás de Aquino que foi quem seguiu, mais ou menos sobre a mulher e o
homem, a inferioridade natural da mulher.
Poderíamos
encontrar inúmeras citações que vão nessa mesma direção: a mulher é um
continente, um vazio, um oco, enquanto o homem é um conteúdo e,
consequentemente, algo cheio. No plano do imaginário corporal, da percepção do corpo,
o sexo da mulher é faltante em relação ao masculino, está em negativo, o que
Lacan resumiu certa vez comparando o sexo da mulher a um invólucro. Na tradição
freudiana, o positivo feminino, representado pelo clitóris, é masculino.
Isso
torna complicadíssima a decisão de definir a mulher em psicanálise a partir de
um paradigma positivo. Foi nesse plano que Freud começou a discutir a diferença
sexual. Como disse, isso é bem anterior a Freud: Santo Tomás de Aquino, no
século XIII, já se ocupava dessas questões da diferença entre homem e mulher, a
ponto de considerar que a mulher era uma espécie de homem imperfeito, um homem
falho, faltoso. Se ela avançasse um pouco, viraria homem; ela seria alguém
formado antes do tempo. Nesse sentido, existiria um a menos na mulher que não
está apenas plugado no negativo corporal, nas entrâncias do corpo, mas também
no fato de que ela seria em relação ao homem mal formada. É o que, aliás,
podemos encontrar no livro do Gênesis: o homem teria sido criado por Deus; já a
mulher foi criada a partir do homem. Tratasse da estória na qual Eva é criada a
partir da costela de Adão.
A
própria palavra “vagina”, que em latim significa bainha, já indica isso,
sobretudo no Brasil onde o homem, como se diz, é “espada”. Espada correlativa a
uma bainha, no plano da diferença sexual. Disso decorrem outras polaridades,
tais como: a mulher passiva e o homem ativo, a mulher na família e o homem na
sociedade ou no Estado, etc. A esse respeito, eu aconselharia a leitura do interessante
comentário de Hegel na fenomenologia do Espírito, não só sobre Antígona, mas
também a respeito da concepção que é possível ter sobre as diferentes funções da
mulher, na família, etc. Algumas mulheres romperam com essa lógica, a exemplo
de certos personagens das tragédias, como Medeia e Antígona.
Aristóteles
disse: “Uma mulher é como se fosse um homem infértil; a fêmea, de fato, é fêmea
devido a uma espécie de inabilidade. Falta-lhe o poder da preparação do sêmen
num estado final de nutrição [...] por causa
da frieza da sua natureza. (729a) O macho provê a ‘forma’ e o ‘princípio
do movimento’, a fêmea provê o corpo, em outras palavras, o material”.
Lacan,
por seu lado, afirma em Mais, ainda: “O estranho
é que nessa grosseira polaridade, essa que da matéria faz o passivo e da forma,
o agente que a anima, alguma coisa, mas alguma coisa de ambíguo, de qualquer modo,
passou, isto é, essa animação, no
sentido da etimologia da palavra, não é outra coisa senão esse a cujo agente
anima o quê? – ele não anima nada, ele toma o outro por sua alma”.
Outra
coisa bem diversa é dizer A é diferente,
no absoluto, sem comparação, sem o seu oposto B, ou seja, num plano que não
passa pelo especular. A essa diferença absoluta – à qual Lacan se refere
no Seminário 11 com relação ao final de
análise; diz que a análise visaria atingir uma diferença absoluta - talvez
possamos chamá-la simplesmente de alteridade. Alteridade é uma diferença que não
tem necessariamente um oposto.
Lembrei
de uma distinção feita por Hegel entre fronteira e limite. A fronteira é a
linha que divide o Brasil da Argentina; só existe fronteira quando você pode nomear
o outro lado. O limite é a orla, aquilo além do qual não se precisa dizer o que
há. Por exemplo: este é o limite das minhas terras; daqui para frente não
preciso definir, talvez eu nem saiba. Existe alguma coisa nessa noção de limite
que não é muito distante desta que estou tentando mostrar como alteridade.
Esse
caráter de absoluto é coerente com a conhecida afirmação de Lacan, segundo a
qual é “heterossexual quem ama as mulheres, qualquer que seja o seu sexo
próprio”: um homem que ama as mulheres é heterossexual, uma mulher que ama as
mulheres é heterossexual. A primeira, a
que ama, é diferente da segunda, das que são amadas.
Lacan
situa, portanto, esse elemento, “as mulheres”, fora da polaridade homem-mulher.
A mulher que ama é diferente das que são amadas. Uma outra afirmação de Lacan vai
na mesma direção. Trata-se, aliás, do título da conferência de nossa colega
Maria Josefina Sota Fuentes no próximo mês: “A mulher é um Outro para si mesma”.
Existe uma alteridade na mulher que, contrariamente à lógica da comparação, não
é representada pelo homem, e sequer pode ser facilmente compreendida pela
própria mulher, se ela tenta compreendê-la a partir da relação homem-mulher ou
da relação de dois polos. A análise de uma mulher pode ter por objetivo fazer
com que ela se aproxime um pouco desse ponto de dissimetria que, na prática, é
de desencontro, de solidão. Podemos ouvir isso, com certa frequência, nos testemunhos
de passe de mulheres. Esse momento em que, de repente, alguma coisa nessa
lógica costumeira da comparação se rompe como momento analítico, e marcará uma diferença
entre antes e depois.
Na
mesma página, Lacan diz que “na dialética falocêntrica”, que tem como centro o
falo, ela representa o “Outro absoluto”. Ou seja, na dialética que significa de
alguma forma um encontro de opostos, e cujos elementos são por definição
relativos, a mulher representa o Outro que, em certo sentido, está fora da
relação, fora da dialética. É interessante essa aproximação que Lacan faz entre
dialética e absoluto; ela exige que comecemos a destrinchar os termos para
perceber que a frase tem um movimento próprio. Podemos pensar na duplicação da
mulher: existe a mulher da dialética, do encontro falocêntrico, e a mulher como
Outro absoluto, que escapa à própria mulher do encontro falocêntrico. A mulher
“é a que não tem”, segundo Miller. Em m outro texto publicado no mesmo ano, Miller
define a “verdadeira mulher” - que, como sabem, foi a qualificação dada por
Lacan a Madeleine Gide, que rasgou as cartas do marido como vingança por sua
traição, objeto precioso para Gide, ato que Lacan compara ao gesto de Medeia:
“A verdadeira mulher - diz Miller - não é a mãe”. A mãe, completa Miller em
seguida, é a que tem. Ou seja, a mãe é a que tem um objeto que não é o falo,
mas que o representa metonimicamente; trata-se do que Freud chamava equação
simbólica. Ou seja, a mãe dissimula a verdadeira mulher. Resta saber se a
psicanálise acede à verdadeira mulher, aquela que não tem ou simplesmente que
pode dialetizar as várias posições da mulher como mãe, como futura mãe, etc.,
mas em torno da ideia de ser mãe, de possuir um representante fálico que dê
conta da dialética do ter, ou não ter, o falo.
Vocês
já devem ter entendido qual o meu principal objetivo na palestra de hoje:
tentar apontar, se conseguir demonstrar, a passagem de uma diferença entre homem
e mulher – cuja base pode ser tanto anatomia como a cultura, tanto o sexo
quanto o gênero - a uma diferença que permita situar a mulher como diferente no
absoluto, o que implica que ela é diferente de si mesma; portanto em um plano
que excede a comparação, a começar pela comparação com ela própria. Esta seria
a diferença feminina, que não é exatamente a figura ideal à qual deveriam
tender ou deveriam tentar se aproximar as mulheres concretas, através da luta
política ou das práticas sociais, ou porque não de uma análise, mas, pelo contrário,
essa diferença reside em um resíduo do encontro com o sexo. Não se trata de uma
passagem para cima, mas para baixo. Não se trata de uma elevação, de uma sublimação
da diferença sexual, mas sim da assunção de um resíduo.
A
pergunta sobre uma outra dimensão da sexualidade feminina - difícil de fazer,
pois está fora da comparação e da diferença relativa entre os sexos - deve se
fundar, necessariamente, em alguma coisa além da diferença anatômica. Não
somente da diferença anatômica tal qual se vê no corpo, mas diferença anatômica
no sentido de tudo aquilo que a diferença anatômica inspirou ao longo da história
do pensamento, das práticas clínicas, etc. Por exemplo, podemos pensar ou
traçar, se isso tiver algum interesse, a história da histeria como tentativa de
responder a isso. O que uma mulher pode fazer se não basta a simples percepção
da diferença anatômica, do menos, do ter ou do não ter, positivo ou negativo,
para uma diferença
que se aproxime um pouco de uma resposta à pergunta de Freud: o que uma mulher
quer? Essa pergunta deve se situar em uma dimensão suplementar, como ensina Lacan
no Seminário 20: “Vocês notarão que eu
disse suplementar. Se tivesse dito
complementar, onde é que estaríamos! Recairíamos no todo”.
O
suplemente excede o todo se pensarmos que o todo significa macho + fêmea. É
neste ponto preciso que se situa a questão que nos interessa de perto: a
relação da mulher com a loucura, ou entre a mulher e Deus.
Trata-se
de um novo paradigma para uma discussão sobre o gozo feminino: contrariamente à
lógica corporal, existe uma positividade na loucura, assim como há uma positividade
em Deus, que, desde Aristóteles, é puro ato.
É
claro que não é suficiente dizer que há uma relação particular entre a mulher e
a loucura. Essa questão pode ser igualmente respondida em uma perspectiva
comparativa ou complementar. No começo dos anos setenta, por exemplo, em 1972,
Phylis Chesler, escritora americana, publicou um livro intitulado As mulheres e a Loucura que fez grande sucesso.
Nele, a autora procurava demonstrar, não como a mulher tinha relação com algo
que ia além da justiça fálica e da castração, ou seja, com a distribuição do
ter, mas como, devido aos seus papéis sociais e culturais, as mulheres são mais
facilmente consideradas doentes mentais do que os homens e, consequentemente,
eram majoritárias nos centros de tratamento psiquiátrico. Nesse plano dos papéis
sociais e culturais, a situação da mulher não oferece muitas saídas, como
observa a autora de uma resenha do livro de Phylis Chesler: se a mulher cumpre estritamente
esses papéis é masoquista e submissa, se não os cumpre, é louca.
By:Romildo do Rêgo Barros
FONTE:
Opção Lacaniana Online – novembro/2012