segunda-feira, novembro 26, 2012

Da diferença sexual à diferença feminina


Gostaria de tentar desdobrar nosso assunto tomando como eixo a palavra “diferença”. Para isso, proponho um caminho que, aliás, é o título que dei à minha fala: “Da diferença sexual à diferença feminina”. Desde já uma pergunta se impõe: será que se trata mesmo de um caminho, de uma separação, uma separação radical, um impasse entre a diferença sexual e a diferença feminina?

A diferença é uma determinação. Se digo que A  ≠ B, estou determinando que existe algo em A que não existe em B, ou vice-versa. Nesse sentido, a diferença parte necessariamente de uma comparação: comparam-se dois opostos e se determina onde estaria o ponto em que os dois se separam ou que não permite que os dois possam se sobrepor. Uma parte dos atributos de um dado conjunto, A, não pertence ao outro, B, ou vice-versa. Seria uma maneira muito simples de definir ou de aproximar o que seria uma diferença. 

É claro que sobre a questão da diferença sexual, pensamos no que Freud chamou de “diferenças anatômicas”, de onde extraiu as consequências psíquicas. Essa seria, me parece, a primeira proposta que eu traria para pensarmos, e que está na base da ideia de que o homem representa uma dimensão positiva, enquanto a mulher é uma dimensão negativa. Penso que não é impossível atrelarmos essa diferença imediatamente à percepção do corpo que Freud chamava diferenças anatômicas. É uma aproximação um tanto grosseira, mas também é intuitiva. Pode ser autorizada como uma primeira aproximação. Há uma expressão usada por Jacques-Alain Miller em seu texto Mulheres e semblantes (1993), onde ele afirma que o  Penisneid representa a “subjetivação do não ter”

Há uma extensa bibliografia sobre isso. Podemos buscar essa ideia muito remotamente em Aristóteles: a ideia que ele fazia da mulher não era muito elogiosa, mas enfim ele está na base do pensamento ocidental. Em Geração dos Animais, Aristóteles trata exatamente do que o título indica, ou seja, como os animais se reproduzem: “[...] é macho o ser capaz de engendrar em um outro, fêmea aquele que engendra em si e do qual nasce o ser engendrado que existia no gerador”

É macho o ser capaz de engendrar em um outro, em outro corpo, diferente daquele que engendra. É fêmea aquele ser que engendra em si e do qual nasce o ser engendrado que existia no gerador. A mulher engendra no próprio corpo aquele ser que foi gerado fora dela. Isso se relaciona ao que se sabia na época sobre a reprodução. Não se conhecia o óvulo. Há uma série de detalhes que torna essa frase pesada. Essa ideia terá influência no Ocidente, no terreno da Cristandade, já que Aristóteles é inspiração para São Tomás de Aquino que foi quem seguiu, mais ou menos sobre a mulher e o homem, a inferioridade natural da mulher.

Poderíamos encontrar inúmeras citações que vão nessa mesma direção: a mulher é um continente, um vazio, um oco, enquanto o homem é um conteúdo e, consequentemente, algo cheio. No plano do imaginário corporal, da percepção do corpo, o sexo da mulher é faltante em relação ao masculino, está em negativo, o que Lacan resumiu certa vez comparando o sexo da mulher a um invólucro. Na tradição freudiana, o positivo feminino, representado pelo clitóris, é masculino.

Isso torna complicadíssima a decisão de definir a mulher em psicanálise a partir de um paradigma positivo. Foi nesse plano que Freud começou a discutir a diferença sexual. Como disse, isso é bem anterior a Freud: Santo Tomás de Aquino, no século XIII, já se ocupava dessas questões da diferença entre homem e mulher, a ponto de considerar que a mulher era uma espécie de homem imperfeito, um homem falho, faltoso. Se ela avançasse um pouco, viraria homem; ela seria alguém formado antes do tempo. Nesse sentido, existiria um a menos na mulher que não está apenas plugado no negativo corporal, nas entrâncias do corpo, mas também no fato de que ela seria em relação ao homem mal formada. É o que, aliás, podemos encontrar no livro do Gênesis: o homem teria sido criado por Deus; já a mulher foi criada a partir do homem. Tratasse da estória na qual Eva é criada a partir da costela de Adão.

A própria palavra “vagina”, que em latim significa bainha, já indica isso, sobretudo no Brasil onde o homem, como se diz, é “espada”. Espada correlativa a uma bainha, no plano da diferença sexual. Disso decorrem outras polaridades, tais como: a mulher passiva e o homem ativo, a mulher na família e o homem na sociedade ou no Estado, etc. A esse respeito, eu aconselharia a leitura do interessante comentário de Hegel na fenomenologia do Espírito, não só sobre Antígona, mas também a respeito da concepção que é possível ter sobre as diferentes funções da mulher, na família, etc. Algumas mulheres romperam com essa lógica, a exemplo de certos personagens das tragédias, como Medeia e Antígona.

Aristóteles disse: “Uma mulher é como se fosse um homem infértil; a fêmea, de fato, é fêmea devido a uma espécie de inabilidade. Falta-lhe o poder da preparação do sêmen num estado final de nutrição [...] por causa  da frieza da sua natureza. (729a) O macho provê a ‘forma’ e o ‘princípio do movimento’, a fêmea provê o corpo, em outras palavras, o material”.

Lacan, por seu lado, afirma em  Mais, ainda: “O estranho é que nessa grosseira polaridade, essa que da matéria faz o passivo e da forma, o agente que a anima, alguma coisa, mas alguma coisa de ambíguo, de qualquer modo, passou, isto é, essa animação,  no sentido da etimologia da palavra, não é outra coisa senão esse a cujo agente anima o quê? – ele não anima nada, ele toma o outro por sua alma”.

Outra coisa bem diversa é dizer A  é diferente, no absoluto, sem comparação, sem o seu oposto B, ou seja, num plano que não passa pelo especular. A essa diferença absoluta – à qual Lacan se refere no  Seminário 11 com relação ao final de análise; diz que a análise visaria atingir uma diferença absoluta - talvez possamos chamá-la simplesmente de alteridade. Alteridade é uma diferença que não tem necessariamente um oposto. 

Lembrei de uma distinção feita por Hegel entre fronteira e limite. A fronteira é a linha que divide o Brasil da Argentina; só existe fronteira quando você pode nomear o outro lado. O limite é a orla, aquilo além do qual não se precisa dizer o que há. Por exemplo: este é o limite das minhas terras; daqui para frente não preciso definir, talvez eu nem saiba. Existe alguma coisa nessa noção de limite que não é muito distante desta que estou tentando mostrar como alteridade.

Esse caráter de absoluto é coerente com a conhecida afirmação de Lacan, segundo a qual é “heterossexual quem ama as mulheres, qualquer que seja o seu sexo próprio”: um homem que ama as mulheres é heterossexual, uma mulher que ama as mulheres é  heterossexual. A primeira, a que ama, é diferente da segunda, das que são amadas. 

Lacan situa, portanto, esse elemento, “as mulheres”, fora da polaridade homem-mulher. A mulher que ama é diferente das que são amadas. Uma outra afirmação de Lacan vai na mesma direção. Trata-se, aliás, do título da conferência de nossa colega Maria Josefina Sota Fuentes no próximo mês: “A mulher é um Outro para si mesma”. Existe uma alteridade na mulher que, contrariamente à lógica da comparação, não é representada pelo homem, e sequer pode ser facilmente compreendida pela própria mulher, se ela tenta compreendê-la a partir da relação homem-mulher ou da relação de dois polos. A análise de uma mulher pode ter por objetivo fazer com que ela se aproxime um pouco desse ponto de dissimetria que, na prática, é de desencontro, de solidão. Podemos ouvir isso, com certa frequência, nos testemunhos de passe de mulheres. Esse momento em que, de repente, alguma coisa nessa lógica costumeira da comparação se rompe como momento analítico, e marcará uma diferença entre antes e depois.

Na mesma página, Lacan diz que “na dialética falocêntrica”, que tem como centro o falo, ela representa o “Outro absoluto”. Ou seja, na dialética que significa de alguma forma um encontro de opostos, e cujos elementos são por definição relativos, a mulher representa o Outro que, em certo sentido, está fora da relação, fora da dialética. É interessante essa aproximação que Lacan faz entre dialética e absoluto; ela exige que comecemos a destrinchar os termos para perceber que a frase tem um movimento próprio. Podemos pensar na duplicação da mulher: existe a mulher da dialética, do encontro falocêntrico, e a mulher como Outro absoluto, que escapa à própria mulher do encontro falocêntrico. A mulher “é a que não tem”, segundo Miller. Em m outro texto publicado no mesmo ano, Miller define a “verdadeira mulher” - que, como sabem, foi a qualificação dada por Lacan a Madeleine Gide, que rasgou as cartas do marido como vingança por sua traição, objeto precioso para Gide, ato que Lacan compara ao gesto de Medeia: “A verdadeira mulher - diz Miller - não é a mãe”. A mãe, completa Miller em seguida, é a que tem. Ou seja, a mãe é a que tem um objeto que não é o falo, mas que o representa metonimicamente; trata-se do que Freud chamava equação simbólica. Ou seja, a mãe dissimula a verdadeira mulher. Resta saber se a psicanálise acede à verdadeira mulher, aquela que não tem ou simplesmente que pode dialetizar as várias posições da mulher como mãe, como futura mãe, etc., mas em torno da ideia de ser mãe, de possuir um representante fálico que dê conta da dialética do ter, ou não ter, o falo.

Vocês já devem ter entendido qual o meu principal objetivo na palestra de hoje: tentar apontar, se conseguir demonstrar, a passagem de uma diferença entre homem e mulher – cuja base pode ser tanto anatomia como a cultura, tanto o sexo quanto o gênero - a uma diferença que permita situar a mulher como diferente no absoluto, o que implica que ela é diferente de si mesma; portanto em um plano que excede a comparação, a começar pela comparação com ela própria. Esta seria a diferença feminina, que não é exatamente a figura ideal à qual deveriam tender ou deveriam tentar se aproximar as mulheres concretas, através da luta política ou das práticas sociais, ou porque não de uma análise, mas, pelo contrário, essa diferença reside em um resíduo do encontro com o sexo. Não se trata de uma passagem para cima, mas para baixo. Não se trata de uma elevação, de uma sublimação da diferença sexual, mas sim da assunção de um resíduo. 

A pergunta sobre uma outra dimensão da sexualidade feminina - difícil de fazer, pois está fora da comparação e da diferença relativa entre os sexos - deve se fundar, necessariamente, em alguma coisa além da diferença anatômica. Não somente da diferença anatômica tal qual se vê no corpo, mas diferença anatômica no sentido de tudo aquilo que a diferença anatômica inspirou ao longo da história do pensamento, das práticas clínicas, etc. Por exemplo, podemos pensar ou traçar, se isso tiver algum interesse, a história da histeria como tentativa de responder a isso. O que uma mulher pode fazer se não basta a simples percepção da diferença anatômica, do menos, do ter ou do não ter, positivo ou negativo, para uma diferença que se aproxime um pouco de uma resposta à pergunta de Freud: o que uma mulher quer? Essa pergunta deve se situar em uma dimensão suplementar, como ensina Lacan no  Seminário 20: “Vocês notarão que eu disse suplementar. Se tivesse dito  complementar, onde é que estaríamos! Recairíamos no todo”.

O suplemente excede o todo se pensarmos que o todo significa macho + fêmea. É neste ponto preciso que se situa a questão que nos interessa de perto: a relação da mulher com a loucura, ou entre a mulher e Deus.

Trata-se de um novo paradigma para uma discussão sobre o gozo feminino: contrariamente à lógica corporal, existe uma positividade na loucura, assim como há uma positividade em Deus, que, desde Aristóteles, é puro ato.

É claro que não é suficiente dizer que há uma relação particular entre a mulher e a loucura. Essa questão pode ser igualmente respondida em uma perspectiva comparativa ou complementar. No começo dos anos setenta, por exemplo, em 1972, Phylis Chesler, escritora americana, publicou um livro intitulado  As mulheres e a Loucura que fez grande sucesso. Nele, a autora procurava demonstrar, não como a mulher tinha relação com algo que ia além da justiça fálica e da castração, ou seja, com a distribuição do ter, mas como, devido aos seus papéis sociais e culturais, as mulheres são mais facilmente consideradas doentes mentais do que os homens e, consequentemente, eram majoritárias nos centros de tratamento psiquiátrico. Nesse plano dos papéis sociais e culturais, a situação da mulher não oferece muitas saídas, como observa a autora de uma resenha do livro de Phylis Chesler: se a mulher cumpre estritamente esses papéis é masoquista e submissa, se não os cumpre, é louca.

By:Romildo do Rêgo  Barros 
FONTE: Opção Lacaniana Online – novembro/2012

sexta-feira, novembro 16, 2012

Museu de Freud


http://www.freud.org.uk/



O Museu de Freud - de Londres - tem um ótimo site,
com muitas informações sobre a vida e obra de Freud,
e de sua filha Anna. 
O link - Eventos e Conferências - traz informações atualizadas sobre os eventos do Museu.

segunda-feira, novembro 12, 2012

O músico revolucionário



No dia 5 de setembro, John Cage fez cem anos. Provavelmente, esta data passará em silêncio. Um dos maiores compositores do século 20 continua sendo um estranho para a sensibilidade contemporânea. Alguém cujas questões permanecem sob a forma de desafios abertos.

Não é complicado entender a razão deste estranhamento. Dificilmente encontraremos alguém que foi tão longe da negação sistemática dos parâmetros que normalmente definem a racionalidade da forma musical quanto John Cage. O que explica por que sua obra continua sendo, em larga medida, desconhecida e de difícil abordagem.

No entanto, aqueles que quiserem entrar a partir de uma porta que se abre mais facilmente podem começar com a audição do CD Music for Non Prepared Piano, gravado pelo grande pianista Jay Gottlieb. Neste CD, que apresenta vários momentos da produção de Cage a partir de suas peças para piano, é possível encontrar algumas das obras mais líricas e contemplativas do compositor, como “In a Landscape” e “Dream”, assim como obras que expõem claramente a inventividade de sua música, como “Ophelia” e o belo ciclo “Metamorphosis”.

Mas, se voltarmos à negação cageana dos parâmetros tradicionais da racionalidade musical e da própria noção de forma, veremos como ela respondeu a um impulso fundamental para a crítica modernista. Se Schoenberg representa a crítica a uma linguagem estética arruinada feita através da possibilidade de apresentar novos processos construtivos (no caso, o dodecafonismo), Cage será aquele que irá desenvolver uma crítica totalizante da razão musical através de um certo retorno à origem, ao arcaico. Como se a música tivesse a força de liberar uma origem há muito recalcada pelos processos de racionalização. Uma origem que atende por seu nome clássico, a saber, a natureza. Não por outra razão, Cage escreverá, de maneira explícita: “Arte = imitação da natureza em seus modos de operação”.

A princípio, não deixa de ser irônico que um dos mais radicais músicos de vanguarda pareça endossar a proposição tradicional da arte como mimesis da natureza. Contra a pretensa autonomia do fato musical, Cage estaria insistindo na necessidade da música conformar-se ao que é extramusical e assegurado no solo estático da natureza.

No entanto, tudo muda se nos perguntarmos: qual é esta natureza que parece garantir a Cage a realização do programa modernista de ruptura e renovação?

Esta é uma pergunta fundamental, já que Cage sabe que a imagem da natureza socialmente construída em nada se assemelha a esta natureza cujos modos de operação a arte deve ser capaz de imitar. Na verdade, tal natureza só aparece quando somos capazes de destruir todos os padrões de ordenamento e estabilidade que tendem a se passar por naturais. Nunca a crítica à reificação da linguagem musical foi tão longe.

Na verdade, a natureza em Cage será o espaço da contingência radical, do acaso sem télos, dos fenômenos que não se submetem à direção de uma intenção ou à valoração de um interesse. Uma natureza que desconhece regularidades, que não funciona mais como a imagem de um sistema de causalidade fechada.

Só aceitando uma natureza tal como esta seria possível, ao menos aos olhos de Cage, “fazer algo que escape à dominação do Eu”. Uma natureza que só se manifestaria quando a música se transformasse no espaço de acontecimentos que não poderiam ser previstos nem pelo compositor, nem pelo interprete e nem pelo ouvinte.

Neste sentido, é digno de nota que um dos setores mais avançados do modernismo musical precise reconstruir profundamente o conceito de natureza para abrir o espaço a uma linguagem que não teme flertar com a indiferença, com a indeterminação e com a inexpressão para voltar a ter inventividade. Prova maior de que, quando a linguagem parece mortificada, nossos melhores artistas não temem sequer em flertar com sua própria autodissolução simbólica.

by: VLADIMIR SAFATLE 
FONTE– Revista CULT

EXPRESSIVIDADE FEMININA: TRANSFORMANDO MEDO EM AÇÃO

  As mulheres e o medo de agir por  Karen Horney Tradução  |  Larissa Ramos da Silva   Palestra proferida em 1935 na National Federation of ...