No dia 5 de setembro,
John Cage fez cem anos. Provavelmente, esta data passará em silêncio. Um dos
maiores compositores do século 20 continua sendo um estranho para a
sensibilidade contemporânea. Alguém cujas questões permanecem sob a forma de
desafios abertos.
Não é complicado entender a razão deste estranhamento.
Dificilmente encontraremos alguém que foi tão longe da negação sistemática dos
parâmetros que normalmente definem a racionalidade da forma musical quanto John
Cage. O que explica por que sua obra continua sendo, em larga medida,
desconhecida e de difícil abordagem.
No entanto, aqueles que quiserem entrar a partir de uma porta que
se abre mais facilmente podem começar com a audição do CD Music
for Non Prepared Piano, gravado pelo grande pianista Jay Gottlieb.
Neste CD, que apresenta vários momentos da produção de Cage a partir de suas
peças para piano, é possível encontrar algumas das obras mais líricas e
contemplativas do compositor, como “In a Landscape” e “Dream”, assim como obras
que expõem claramente a inventividade de sua música, como “Ophelia” e o belo
ciclo “Metamorphosis”.
Mas, se voltarmos à negação cageana dos parâmetros tradicionais da
racionalidade musical e da própria noção de forma, veremos como ela respondeu a
um impulso fundamental para a crítica modernista. Se Schoenberg representa a
crítica a uma linguagem estética arruinada feita através da possibilidade de
apresentar novos processos construtivos (no caso, o dodecafonismo), Cage será
aquele que irá desenvolver uma crítica totalizante da razão musical através de
um certo retorno à origem, ao arcaico. Como se a música tivesse a força de
liberar uma origem há muito recalcada pelos processos de racionalização. Uma
origem que atende por seu nome clássico, a saber, a natureza. Não por outra
razão, Cage escreverá, de maneira explícita: “Arte = imitação da natureza em
seus modos de operação”.
A princípio, não deixa de ser irônico que um dos mais radicais
músicos de vanguarda pareça endossar a proposição tradicional da arte como mimesis da natureza. Contra a pretensa
autonomia do fato musical, Cage estaria insistindo na necessidade da música
conformar-se ao que é extramusical e assegurado no solo estático da natureza.
No entanto, tudo muda se nos perguntarmos: qual é esta natureza
que parece garantir a Cage a realização do programa modernista de ruptura e
renovação?
Esta é uma pergunta fundamental, já que Cage sabe que a imagem da
natureza socialmente construída em nada se assemelha a esta natureza cujos
modos de operação a arte deve ser capaz de imitar. Na verdade, tal natureza só
aparece quando somos capazes de destruir todos os padrões de ordenamento e
estabilidade que tendem a se passar por naturais. Nunca a crítica à reificação
da linguagem musical foi tão longe.
Na verdade, a natureza em Cage será o espaço da contingência
radical, do acaso sem télos, dos fenômenos que
não se submetem à direção de uma intenção ou à valoração de um interesse. Uma
natureza que desconhece regularidades, que não funciona mais como a imagem de
um sistema de causalidade fechada.
Só aceitando uma natureza tal como esta seria possível, ao menos
aos olhos de Cage, “fazer algo que escape à dominação do Eu”. Uma natureza que
só se manifestaria quando a música se transformasse no espaço de acontecimentos
que não poderiam ser previstos nem pelo compositor, nem pelo interprete e nem
pelo ouvinte.
Neste sentido, é digno
de nota que um dos setores mais avançados do modernismo musical precise
reconstruir profundamente o conceito de natureza para abrir o espaço a uma
linguagem que não teme flertar com a indiferença, com a indeterminação e com a
inexpressão para voltar a ter inventividade. Prova maior de que, quando a
linguagem parece mortificada, nossos melhores artistas não temem sequer em
flertar com sua própria autodissolução simbólica.
by: VLADIMIR SAFATLE
FONTE– Revista CULT
Nenhum comentário:
Postar um comentário