Ao longo do século 20, a melhor literatura erótica foi escrita por
mulheres - de Anaïs Nin a Régine Deforges e Mara. "Emmanuelle", o elo
fraco do conjunto, foi, de fato, escrito por um homem. A obra-prima da série é
"História de O", de Pauline Réage (eternamente esgotado na Ediouro).
Juntando
"História de O" com, por exemplo, "A Vida Sexual de Catherine
M.", de Catherine Millet (Pocket Ouro), seria tentador chegar à conclusão
de que as mulheres sejam especialistas em fantasias de submissão.
Esse
"achado" seria confirmado pela nova onda de literatura erótica
escrita por mulheres, nos EUA.
Já
mencionei, nesta coluna, os romances de E. L. James (http://migre.me/aE4KL). E
acaba de sair o primeiro da série "Crossfire", de Sylvia Day:
"Toda Sua" (Paralela).
A
heroína de E. L. James lida com um homem que lhe propõe amarras e chicotes.
Eva, a heroína de Sylvia Day, lida com um parceiro mais interessado no controle
mental e sexual do que no domínio físico. Mesmo assim, alguns homens correrão
para a padaria para anunciar aos amigos, entre piadas e tragos, que as mulheres
"gostam de apanhar".
Essa
roda de padaria sobre a suposta submissão feminina revela uma dupla fraqueza
dos homens.
1) Em qualquer encontro da comunidade sadomasoquista (real ou
virtual), constata-se que sempre faltam mestres (dominadores), enquanto sobram
submissos e submissas. Uma anedota explica por quê.
Uma
mulher, que conheci muito tempo atrás, estava radiante por ter encontrado,
enfim, um mestre rigoroso como ela queria. Um dia, o mestre, ao deixar o
apartamento da escrava, descobriu que seu carro tinha sido levado pela polícia
e só podia ser resgatado pagando multa na hora. O mestre voltou para o
apartamento da escrava e pediu um dinheiro emprestado. Foi o fim. A escrava
aceitaria e adoraria ser explorada, mas achou intolerável o pedido de um
dinheiro "emprestado", porque esse pedido diminuía o mestre.
Conclusão.
O que leva alguns homens até a padaria mais próxima para fazer piadas entre
amigos sobre as mulheres supostamente submissas? É o medo de sua insuficiência
como mestres. Mas é também o medo de suas próprias fantasias de submissão, como
explico a seguir.
2) Se faltam mestres e sobram submissos, não é só porque é difícil
ser mestre; é também porque a fantasia de submissão é comum a todos - isso, aliás,
explica o sucesso da literatura erótica de submissão: todos, homens e mulheres,
gozam com fantasias de submissão.
Para
explicar por que a submissão é uma fantasia básica universal, baste isto: 1)
vivemos com a ideia de que o protótipo do prazer é o do bebê pendurado no seio
materno, 2) você acha que tem muita diferença entre, sei lá, ser possuído/a de
mãos presas, sem poder reagir, e a condição do bebê entregue, indefeso, aos
cuidados de quem troca sua fralda?
Em
outras palavras, um ideal nostálgico define para nós o prazer ao qual parecemos
mais aspirar: é o ideal de estar literalmente nas mãos de outro que nos ama.
Quem estranha que a submissão seja uma fantasia fundamental?
Enfim,
uma comparação entre a literatura erótica do século 20 e a onda de hoje revela
uma diferença significativa.
Na literatura erótica do século 20, cujos melhores exemplos são,
em grande parte, franceses, não me lembro que as fantasias de um protagonista
ou de um personagem, por mais que fossem bizarras, fossem
"justificadas" pelo relato de sua infância difícil.
Ou
seja, na literatura erótica (francesa e feminina) do século 20, alguém pode se
excitar com fantasias sádicas, masoquistas ou outras e pode praticá-las,
simplesmente, porque gosta. Não é necessário que o protagonista ou o personagem
tenha sido abusado quando criança.
Na
recente literatura erótica feminina do século 21, que, até agora, parece vir
sobretudo dos EUA, acontece o contrário. É possível desejar (um pouco ou muito)
fora dos trilhos, mas à condição que esse desejo seja apresentado como o
destino patológico de quem foi "traumatizado" na infância.
Em
outras palavras, podemos admitir que homens e mulheres transem de maneiras
aventurosas, mas o bom costume será salvo se eles transam assim porque foram
maltratados quando pequenininhos.
É uma diferença cultural entre Europa e EUA, ou seja, é caretice
norte-americana? Ou é o sinal de um novo passo na longa luta da cultura
ocidental (a nossa) para disciplinar o prazer? Algo assim: se não basta mais
ele ser pecaminoso, que seja, ao menos, doentio...
Contardo Calligaris –
Jornal Folha de São Paulo
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