O Amor e o Super-Eu na Contemporaneidade
O que é o amor para o
super-eu na lógica da vida amorosa dos dias atuais?
Partamos da afirmação de
J.-A. Miller no texto, Extimidade (1) –
“...há uma solidariedade entre o amor e o
gozo”.
Ao dizer que “...só o amor
consente ao gozo condescender ao desejo”(2),
Lacan nos permite deduzir que a relação entre amor e gozo não deve ser pensada
exclusivamente como uma relação de oposição, mas que existem pontos de
aproximação entre o amor e o gozo que devemos observar, uma vez que, na
experiência analítica ambos se expressam como uma demanda e no nível da
contingência.
Sabemos com Lacan que
nenhum dizer escapa à parcialidade da pulsão sexual. A linguagem despedaça as
pulsões tornando-as sempre parciais. O objeto da pulsão é assexuado, o que quer
dizer que a sexualidade do falasser não está ligada à diferença anatômica dos
sexos sobre a qual o inconsciente nada sabe, o inconsciente é mudo.
Enquanto as pulsões
parciais ignoram a diferença dos sexos, no inconsciente, essa diferença é significantizada
e reduzida à dialética do ser ou ter o falo. O Édipo freudiano põe uma questão:
como pode um homem amar sexualmente uma mulher?
E do lado mulher? Freud
responde com a famosa pergunta: “o que é uma mulher”? Porque sabe que o Édipo
freudiano faz o homem, mas não faz a mulher, Lacan tentou responder a questão
de Freud com a lógica do não-todo. Se o final de análise diz respeito à lógica
do não-todo, como o modo de gozo do homem e da mulher se aproximam e como estão
separados? São dessas questões que vamos tentar nos aproximar nesse trabalho.
Lacan constrói as fórmulas
da sexuação no Seminário 20 (3) para circunscrever o modo
de gozo próprio a cada sexo. Apresenta a sexuação do falasser submetida a duas
lógicas diferentes: do lado masculino, a lógica organizada pelo signifi cante do
gozo, cuja presença/ausência nos remete a castração. A lógica fálica é
responsável pela organização de um modo de gozo fi nito e contável – o gozo
fálico, que permite fazer conjunto sob a fórmula de que todo x é castrado. E,
do lado mulher, a lógica do não--todo, a lógica do feminino, onde falta um
significante que possa circunscrever o gozo e que resulta no gozo-excesso, no
gozo que tende ao infinito – o gozo suplementar.
Desse modo, o estatuto da
mulher, em oposição ao estatuto fálico, é o estatuto do não-toda, fora do
universal que poderia escrever o conjunto das mulheres. Assim, A mulher não se
escreve, formulado no axioma de Lacan – “A mulher não existe”, contudo, existe
A/ mulher. Quer dizer, o feminino não forma um conjunto, pois não se tem o
critério que estabelece que todo x é castrado. No feminino, temos o não-todo –
nem todo x está submetido à castração – do lado da mulher e que pode ser
alcançado pelo homem, no final de análise.
Com essas duas modalidades
de gozo Lacan tenta dar conta, respectivamente, do amor fetichista do homem e
do amor erotomaníaco da mulher. Essas formas de gozo indicam o que um sexo irá
procurar no Outro – o modo de relação com o objeto.
No fantasma fetichista do
homem – $ ◊ a – o gozo se objetifica, aparece sem relação ao Outro, na imagem de
um objeto inerte e opaco, um objeto mudo que permite copular sem falar,
enquanto que o objeto erotomaníaco do fantasma feminino, é um objeto que toma a
forma do Outro que fala, porque para a mulher, é imprescindível falar para amar
e amar para desejar – falar é dar o que não se tem, é dar amor.
A partir desse binarismo
da sexuação, Miller vai dizer que “...a mulher
é um sintoma para o homem e o homem é uma devastação para a mulher”(4).
O sintoma é passível de
ser identificado e decifrado, enquanto o sintoma da devastação como retorno da
demanda de amor, como a outra face do amor, leva ao sem limite, ao infinito,
porque está articulada à inconsistência do Outro – S(A/). A ausência do significante
fálico, da qual padece o feminino, aparece e torna evidente a demanda por um
significante do campo do Outro que possa nomear o seu ser de gozo. A armadilha
do amor erotomaníaco se desvela, quando de arrebatada e deslumbrada com a
condição de amada e única, a mulher passa a resto abandonado. Aí, é quando, ao
retornar a posição de sujeito, o amor tornar-se o ódio.
A clínica com o feminino demonstra que o
movimento em direção ao infinito, próprio ao gozo suplementar, pode facilmente
adquirir o estatuto de um imperativo super-egóico mortífero que arrebata o
sujeito e do qual ele não mais detém o controle. E, quando o sujeito consente e
se entrega a este impulso da pulsão de morte, pode arruinar a sua própria
existência.
Assim sendo, podemos dizer
que a devastação é o outro nome do que diz Lacan: “amo em ti algo mais do que tu – o objeto a minúsculo, Eu te mutilo”(5).
A ESCRITA, O ESCRITO E O GOZO
J.- A. Miller no texto “Uma conversa sobre o amor”(6),
comenta que na vida amorosa há o vínculo do gozo com o Outro do significante, com
o Outro do amor e o vínculo com o gozo como tal, com o gozo da Coisa.
Lacan ao falar do valor da
“Carta de Almor”(7), demonstra
que na escrita, o amor está constituído no nível em que o gozo se articula com o
Outro do significante. Lacan situa a carta de amor do lado feminino da sexuação,
porque representa uma exigência de que o objeto seja um Outro que fale. A carta
de amor é uma escrita a partir da ausência do objeto de desejo, movida pela
nostalgia do objeto perdido, porém, não sem esperança de recuperá-lo.
A carta de amor é uma
escrita onde, ao ler, vamos encontrar, no olhar, a demanda do sujeito pelo
desejo do Outro e, na voz, a demanda do Outro pelo desejo do sujeito. Portanto,
tanto o olhar quanto a voz como objetos do desejo, estão presentes na carta
escrita do lado da demanda, já que o desejo comporta, desde sempre, a falta do
objeto perdido, daí a impossibilidade de se alcançar a satisfação plena.
Isto é, a carta de amor
alcança apenas o gozo pulsional. E, na medida em que a pulsão é sem objeto, o
sujeito fica apenas com a carta escrita, extraindo satisfação da ausência do
objeto amado.
Do lado feminino, na falta
de um significante fálico que possa circunscrever e organizar o gozo, podemos
supor que a escrita de uma carta de amor, pode servir ao sujeito para se
defender do gozo desenfreado e excessivo do super-eu, mesmo que nela, o sentido
sobre o seu ser esteja ausente.
A escrita permite
distinguir o gozo da demanda infinita ao Outro, gozo do sentido, do gozo do escrito
no significante, do gozo sem-sentido, do gozo da letra, do gozo do Um sozinho,
sem o Outro – gozo de das Ding.
No escrito a letra é
comutada a objeto de gozo, sem Outro. No escrito o gozo é silencioso, independe
da demanda, não se espera mais que a demanda seja atendida. Trata-se de saber
fazer com o gozo na ausência do amado.
O sujeito suposto saber demonstra que ao falar
em análise, a voz ilumina o escuro do que “já estava escrito”, no ato de ler e
se fazer escutar, pacificando a relação do falasser com a voracidade do
super-eu.
Enfim, escrever é a via possível de apreender o
que a palavra não alcança, apreender o escrito na palavra e poder ser artífice
do seu próprio bem-estar.
NOTAS
1 Miller, J.-A - Conferência de 19 de fevereiro de 1986,
em Paris. (Separata)
2 Lacan, J. –
“Kant com Sade”. In Escritos. Jorge Zahar Ed, p. 776
3 Idem – “Letra de uma Carta de Almor”. In O Seminário,
livro 20: mais,ainda. Jorge Zahar Ed, p.
105
4 Miller, J.-A – “O osso de uma análise”. Biblioteca –
agente, p. 114. Salvador-Ba, 1998
5 Lacan, J. – O Seminário, livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Jorge Zahar Ed, p. 249
6 Miller, J.-A – “Uma conversa sobre o amor”. Opção
lacaniana On line. Julho de 2010
7 Lacan, J. – “Letra de uma Carta de Almor”. In O
Seminário, livro 20: mais,ainda. Jorge Zahar Ed, p. 105.
Texto de: Reinaldo
Pamponet
FONTE: Gente –
Revista de Psicanálise
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