Furar o bloqueio dos editores alemães
Quando o livro finalmente saiu, depois de tantas tentativas de furar a
barreira dos editores alemães, foi um sucesso inesperado. E causou uma polêmica
ainda mais inesperada, uma verdadeira onda flusseriana, com críticos
implacáveis (coisa que ele sempre apreciava) e com defensores irredutíveis. Für eine
Philosophie der Fotografie (Por
uma filosofia da fotografia) saiu em 1983 pela European Photography (uma
pequena editora, sim, mas com uma vocação bem direcionada, um público escolhido
a dedo e publicações com esmero artístico). O autor, quem seria esse Flusser?,
passa a circular performaticamente em eventos de potencial explosivo,
contradizendo o discurso hegemônico de demonização da técnica e seus produtos,
cada vez mais presentes no dia-a-dia das pessoas. Era um sobrevivente tardio da
catástrofe do programa de Auschwitz (quem não se lembrava?) que, depois de 30
anos convivendo com tupiniquins e tupinambás na selvagem São Paulo, também
sobrevivera a uma ditadura militar? E estava agora a fazer uma filosofia sem
citações nem notas de rodapé, nem ao menos bibliografia, uma autêntica
filosofia tupinambá, não escolar? Mas em suas aparições públicas contestava
ícones globais e locais com atrevidas e embaraçosas questões a contrapelo. Bem,
o “livrinho” (apenas 77 páginas, 84 páginas na versão brasileira da Hucitec, de
1985) fez e faz carreira pelo mundo. Está traduzido em mais de vinte línguas
estrangeiras e só a versão alemã já tinha 11 reedições em 2011. E em sua
esteira foram publicados outros livros do autor, que se revelava versátil e
muito produtivo, mas sobretudo ousado. E as editoras alemãs que lhe haviam
batido as portas na cara por vinte anos (a vasta correspondência dá provas das
inúmeras e hoje inacreditáveis recusas, nem sempre educadas), agora o
cortejavam.
Em 1985 sai a versão
brasileira, traduzida pelo próprio autor, com o título menos transparente
de Filosofia da caixa preta. É o mesmo livro, mas reescrito. O
português se tornara também sua língua. E sua copiosa obra de fundo – seus
inúmeros cursos sobre filosofia, arte e cultura grega, cristã, judaica, todos
zelosamente datilografados ao longo da vida com cópia carbono – foi escrita
toda apenas em português (e continua inédita no arquivo que agora retorna a São
Paulo, depois de sua partida para o último desterro, em 1973).
O aparato como um animal
feroz
É, sem sombra de dúvida,
um livro instigante, pioneiro, ousado, que apresenta na fotografia a grande
ruptura de um paradigma perceptivo ocidental. E vê na câmera fotográfica não
mais uma ferramenta ou uma extensão do olho, mas um aparato que contém um
programa que sabe muito mais que seu usuário ou, na terminologia de Flusser,
faz do usuário seu “funcionário”. Tal tema do complexo aparato-operador já
seria por si suficiente para demolir muitas crenças na autonomia de decisão do
homem no mundo moderno, em sua crença na autodeterminação. Contudo, é também um
livro de outras incontáveis possibilidades de leitura. É uma demonstração
prática de “ciência arqueológica”, faz escavações conceituais notáveis, como o
paralelo entre o gesto de fotografar e o bote (ilustra-o com a etimologia da
palavra “aparato”, que vem do latim apparatus, com o significado de
“preparativo”, como um estar à espreita). Diz Flusser: “Esse caráter de animal
feroz prestes a lançar-se, implícito na raiz do termo, deve ser mantido ao
tratar-se de aparelhos”.
A caixa preta e a
obscuridade que programa nossas escolhas e decisões
A outra escavação
conceitual é a própria “caixa preta”, que já consta no corpo da versão alemã
como na brasileira, mas na brasileira é o próprio título. A caixa preta é um
sistema tão complexo que não se permite decifrar. Sabe-se dele apenas que
funciona quando o acionamos – e isso nos basta, somos apenas funcionários! –,
mas não se sabe como o faz. A natureza de caixa preta dos aparatos faz deles
brinquedos e é apenas brincando que podemos explorar suas infinitas
possibilidades. Isto porque tais caixas pretas também “brincam de pensar”
mimetizando o próprio pensamento humano. É também metáfora do lado obscuro da
civilização e seus avanços técnicos (talvez um diálogo ou uma crítica sutil a
Walter Benjamin?). A caixa preta pode ser lida, ainda, como uma reunião de
saberes secretos acessíveis apenas aos iniciados, ou seja, seus programadores,
com um possível entendimento que as luzes da racionalidade e sua transparente
demonstrabilidade encerraram sua breve carreira com o advento das imagens
técnicas e seus aparatos que tomam decisões previamente programadas. O triunfo
do livre arbítrio transforma-se no triunfo da heterodeterminação: só posso
querer aquilo que o programa anteriormente quis que eu quisesse.
Magia, desmagia, nova
magia: imagem, escrita e imagem técnica
Os outros desdobramentos
abertos por sua “Filosofia” são aqueles ligados ao tema da imagem e seu papel
no emergir do homem pré-histórico, da escrita no emergir do homem histórico e
da imagem técnica no emergir do homem pós-histórico. A imagem tradicional é
aquele registro icônico de cenas da vida humana, é feita pelo gesto do desenho
e da pintura que deixa rastros sobre superfícies. Ela cria ambientes culturais,
deuses, temporalidades, espacialidades e processos cognitivos próprios. Está
vinculada a um mundo que se manifesta na forma de ciclos que sempre retornam.
Ela é registro desses ciclos, das passagens pelas quais transitamos e às quais
retornaremos. A imagem tradicional magiciza o mundo quando o transpõe
para a superfície, permitindo que sempre retornemos o olhar para ela, em algum
ponto específico ou para o todo, em uma operação que reproduz nos movimentos do
olhar a reversibilidade do tempo, dos ciclos do eterno retorno.
Mas a imagem tradicional
vai se transformando aos poucos em signo abstrato e passa a apenas evocar uma
imagem (virando pictograma), uma ideia (virando ideograma) ou um som (virando
letra alfabética). Deixa de ser um plano, superfície a ser olhada
circularmente, passa a ser linha que deve ser seguida com os olhos sempre em
uma única direção. A imagem é rasgada em tiras. E tal imagem rasgada em tiras
desmagiciza o mundo. Nasce aí outro pensamento, linear, lógico, histórico. Não
mais somos idólatras, adoradores de imagens. Seremos daí em diante textólatras,
adoradores de textos e escrituras que apresentam um caminho unívoco, sem
retorno, uma caminhada linear, sempre voltada para um ponto de fuga previamente
calculado, almejado, ambicionado ou desejado. Tal civilização gera grandes
abstrações que se constituem em um sistema de saber lógico chamado ciência. E a
ciência desenvolve aparatos cada vez mais elaborados e complexos para realizar
tarefas diversas, desde as mais simples até as mais refinadas, difíceis e
demoradas. Incluem-se aí aquelas de registrar, fixar, capturar coisas,
transformando-as em imagens.
Mas tais imagens, diz
Flusser, já não têm muito mais a ver com suas ancestrais, pois são imagens
técnicas, frutos de processos lógicos, conquistas do pensamento racional e
científico. Não são mais superfícies, nem são mais linhas, mas são pontos,
grãos, grânulos ou “cálculos” que se coagulam, dando a impressão de planos ou
linhas. São “abstrações de terceiro grau” (enquanto as imagens tradicionais são
“abstrações de primeiro grau”), pois nascem a partir de um triplo processo de
filtragem (ou de cifragem) das coisas que pretendem representar. São abstrações
a partir da escrita, que é uma abstração a partir da imagem tradicional, que
por sua vez já é uma abstração das coisas que quer apresentar. Em muitas de
suas conferências, Flusser define o que é uma “abstração” também
etimologicamente, como sendo nada mais, nada menos que uma “subtração”. Assim,
as imagens técnicas são triplas operações de subtração. Por isso, tanto elas
como as imagens tradicionais que são vistas como se fossem janelas para o mundo
não passam de janelas para elas mesmas; são, a rigor, “biombos”. Por passarem a
ilusão de serem janelas, evocam a crença em sua objetividade (quem já não ouviu
a frase “as imagens não mentem”?). Diz Flusser: “Seu propósito é serem mapas
para o mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens
em função do mundo, passa a viver em função de imagens”. Isto deve-se também ao
fato de que elas remagicizam o mundo, mas não como o faziam suas ancestrais
pré-históricas. Com suas próprias palavras: “É magia de segunda ordem: feitiço
abstrato”.
Assim, a função da fotografia (e com ela o cinema, a televisão e todos os posteriores desenvolvimentos da imagem técnica) não é outra que remagicizar os textos que haviam desmagicizado as imagens tradicionais. Com isso, elas devem também substituir a consciência histórica introduzida pela escrita por uma consciência mágica de um novo tipo e trocar a capacidade conceitual por uma nova capacidade imaginativa subordinada, desta feita não mais aos deuses do pensamento mítico, mas aos programas gerados por funcionários e instalados no interior das caixas pretas.
Norval Baitello Júnior é doutor em Comunicação pela Universidade Livre de Berlim e
professor titular na Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Fonte: site revista Cult
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