terça-feira, abril 28, 2015

Dança e Poética Contemporânea




A Desfazer-se
Vera Mantero


A cultura está em erosão.
O espírito está em erosão, estão os dois a desfazer-se, estão a desaparecer.

O espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O espírito é uma criatura muito ávida de ocupação, precisa de se ocupar-se constantemente. O espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com uma qualquer coisa. Se dissermos a coisa assim, a palavra “entretenimento” torna-se muito menos pecaminosa. enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta. Necessitamos das artes para não morrermos, as artes falam conosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam,  não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio. Naquele silêncio das casas, aquele silêncio das casas onde não há livros e uma pessoa anda de assoalhada para assoalhada cheia de fome de livros, casas burguesas, muitas vezes, onde não falta dinheiro para pôr as paredes a falar mas onde o espírito já deve ter morrido, porque os mortos não precisam de se entreter, os mortos não precisam que falem com eles, não precisam que lhes contem nada, não precisam de fazer uma leitura das coisas, ou precisamente não querem fazer leitura nenhuma das coisas, não se querem ler nem se querem saber. É sempre duro apercebermo-nos de que estamos mortos, os mortos endinheirados. Vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. talvez não só de possibilidade como de interesse. um ponto em que é possível e interessante existir. estas coisas que mantêm o espírito nesse ponto são coisas que algures, não sei se no tempo ou no espaço, estão espalhadas pela vida das pessoas, estão espalhadas pela existência em geral, e que aqui, ou agora, se confinaram a determinados locais, a determinados objetosúltimos redutos dessas coisas. O ser humano precisa de ler o mundo. Precisa de ir fazendo leituras do mundo, provavelmente não para entende-lo, para explicar qualquer coisa, para arrumar de vez um assunto, mas simplesmente para se situar num ponto, para ter um ponto onde se possa estar, dos milhares de pontos possíveis onde se pode estar. A arte é pensar, é fazer uma leitura do mundo. (normalmente, a esta altura do campeonato, gosto sempre de citar um pedacinho da Marguerite Duras que diz assim: “nada se passa na televisão. ninguém fala na televisão, falar como falar, quer dizer: a partir de qualquer coisa, de seja o que for, um cão atropelado, por ex., repor em marcha o imaginário do ser humano, a sua leitura criadora do universo, esse estranho gênio, tão espalhado pelo mundo, e isto a partir de um cão que foi atropelado. O ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quoti-diano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objetivos diferentes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais sutil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer essas coisas, assiná-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em ações, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando, é preciso olear o espírito, olear o ser, é preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. é preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade (é muito importante não termos medo da sujidade), na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objetos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso não esquecer que há uma coisa que se chama êxtase, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, na relação com os outros. Nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro .


Vera Mantero nasceu em Lisboa em 1966. Estudou dança clássica até aos 18 anos. Foi bailarina do Ballet Gulbenkian (1984/1989). Em Nova Iorque e Paris estudou técnicas de dança contemporânea, voz e teatro, fazendo então um corte com a sua formação clássica. Como bailarina trabalhou em França com Catherine Diverrès. Começou a coreografar os seus próprios trabalhos em 1987, e desde 1991 tem mostrado as suas peças em teatros e festivais na Europa, Brasil, EUA, Canadá e Singapura. No ano de 2002 foi-lhe atribuído o Prémio Almada (IPAE/Ministério da Cultura Português) pela sua carreira como criadora e intérprete.

segunda-feira, abril 20, 2015

Psicanalise e Cultura






Psicanálise e transmissão do saber

Paolo Lollo



O discurso universitário nos faz ouvir a ideia de um saber que se transmite integralmente. O mestre endereça um saber ao discípulo, considerando-o um receptáculo vazio a ser completamente preenchido. O discurso científico - previamente esboçado pelos gregos e teorizado por Galileu, Isaac Newton e René Descartes - procura aproximar-se do real pela matematização e pela apreensão dos fenômenos da natureza por meio de cifras e letras. Galileu abre o livro da natureza, escrito "em linguagem matemática", e o decifra. Aprendendo essa linguagem, o homem pode ter acesso aos segredos da natureza, que obedeceria a leis universais e eternas. Trata-se, então, de descobrir essas leis, para que a ciência domine as forças da natureza.

O discurso universitário se outorga a tarefa de transmitir esse saber que seria mensurável, matematizável. Submetido ao discurso científico, ele faz da avaliação o guarda de honra da transmissão. A partir de um determinado conteúdo, que pode ser medido, há um esforço para avaliar que porção desse "todo" foi transferida do mestre para o aluno. A operação de transmissão é considerada bem sucedida, até mesmo perfeita, se a transmissão é total, sem resto. Mas como podemos medir, avaliar a transmissão do saber? Para isso precisamos de uma unidade de medida precisa: uma espécie de cálice de graduação capaz de transferir integralmente um conteúdo de saber perceptível na passagem de um a outro continente. Para a psicanálise, que concebe a matéria do saber como um estado psíquico, portanto proteiforme, o instrumento de medida é necessariamente impreciso e produz uma perda, que é não apenas necessária, mas também, como veremos adiante, útil à operação da transferência. Um instrumento semelhante a uma rede de pesca feita de uma malha grossa será suficiente para medir e também para transferir algum saber. Quanto mais grossa a malha, maior a perda na avaliação. Contudo, não significa que não haja um ponto ótimo de transferência do saber. O saber não se transmite de forma integral e, sobretudo, não da mesma maneira, já que sua forma e qualidade se transformam em cada transferência. São, portanto, variadas e não determinadas de antemão.

Para Jacques Lacan, o saber é transmissível graças ao fato de que permanece parcialmente escondido, velado. Explicar-se-ia, assim, porque sua retórica visa quebrar, fragmentar o discurso, por meio de jogos de palavras burlescos, digressões e interrupções, mas também por interjeições, onomatopeias, deslizamentos vocais e silêncios, tudo isso para transmitir a um público atento um saber que ofusca e "passa." Com as rupturas do discurso, Jacques Lacan corta o continuum de uma transmissão predeterminada em que significante e significado estariam colados e na impossibilidade de se separar, de se distinguir. A separação só pode ser concluída com a irrupção do sujeito que canta e que dança, um sujeito desejante (de-siderante), capaz de introduzir no discurso algo de humano e imprevisível, abrindo-o ao inconsciente (Lacan, 1991).

O discurso científico sustenta-se na exclusão do sujeito desejante, e visa à simbolização completa do real ( por exemplo, a grande teoria da unificação). Mas é verdade que esse discurso põe em cena o sujeito como observador externo de um objeto da natureza, a physis, razão pela qual poderíamos, então, entender o motivo por que se possa pelo menos conceber uma atitude neutra diante do real. O que parece problemático é calcar o discurso universitário no discurso científico: não podemos conceber um discurso universitário neutro que faça economia do sujeito desejante, do quid humano e de sua singularidade.
Quando um professor se dirige a um estudante para lhe transmitir um saber, ele põe em movimento uma dinâmica entre dois sujeitos. Assim, ele não pode abstrair-se do domínio humano que procede da singularidade. Se, na física, o ponto de vista do observador muda o objeto observado, no discurso das ciências humanas, o ponto de vista do professor forma e transforma o discípulo, mas ele também pode vir a ser transformado por um verdadeiro receptor que nunca é passivo. Assim, o objeto saber, o conteúdo transmitido no ensino, acaba se transformando nessa viagem de vai-e-vem.

Saber humanista e ato analítico
A psicanálise transmite um saber humanista cuja ética deve levar em conta a especificidade humana: a singularidade, o fato de que se vem ao mundo, se vive e se morre, um a um. Porém, ao mesmo tempo, a especificidade também se liga à universalidade humana: a liberdade do devir. Cada homem e cada mulher é impelido ao extremo dessa liberdade para se tornar ator e criador de seu próprio destino. A psicanálise procura ativar a singular força criativa de cada analisante, liberar a pulsão de vida, de modo que ela se torne capaz de desativar a força mortífera da repetição do mesmo. Rearticulando pulsão de vida e pulsão de morte, ligando-as às forças de criação, o trabalho analítico busca não apenas deslocar o sintoma, mas também transformá-lo.

A palavra "humano" remete a "húmus" e a húmido, portanto, a uma terra cujas qualidades lhe permitem engendrar o vivo, reproduzi-lo e cria-lo. A psicanálise e a transmissão de saber referem-se a esse húmus singular. Não haverá transmissão nem transformação da realidade se não houver obra de criação, ao mesmo tempo em que há repetição ou apreensão do saber. O saber pragmático da psicologia e da psicoterapia limita-se, no melhor dos casos, à cura por meio do deslocamento do sintoma. Sua ferramenta é o exercício (training) cujo princípio é a repetição do mesmo. A pulsão de morte é uma repetição, semelhante à de um disco quebrado que gira incessantemente. Uma repetição que não se associa a uma ação criadora, produtora, mas que é destinada a reproduzir os sintomas. A psicologia desloca o sintoma de um lugar para outro, mascarando-o e escondendo-o sob o tapete. Por isso, o trabalho analítico procura não apenas transferir, mas também transformar os sintomas. Do mesmo modo, o discurso da psicanálise visa transmitir o saber e, ao mesmo tempo, transformá-lo.

A ambição do ato analítico é movimentar uma dinâmica que enode repetição e criação, no intuito de deslocar o sintoma e de transformá-lo em seu ponto de origem, para que uma parte da energia que servia à repetição, ao deslocamento e ao recalque, possa ser utilizada na criação de objetos de arte, por meio da sublimação, assim como na autocriação e na recuperação. A energia que empregamos na manutenção e na repetição do sintoma pode ser usada para tornar possível o deslocamento criativo que podemos chamar "desejo", "desiderio", "de-sirius", que é uma energia usada para nos distanciar da estrela Sírio, prendendo-nos em uma órbita repetitiva. Mudar de órbita, ou até de estrela, é o objetivo da ação analítica e de cada transmissão de saber.

Transmissão da psicanálise
A psicanálise lê a natureza como um real em movimento que foge da apreensão por meio de categorias e dos instrumentos de medida dos geômetras. A physis, o real, é, para Lacan, "o que não cessa de não se escrever" (Lacan, 1985, p.127). Ela escapa à apreensão conceitual do saber humano. Essa recusa não significa que ela não aja no simbólico, mas temos que "saber lidar" com a presença ausente que não pode integrar nosso saber de forma plena e aberta. Por isso, a transmissão do saber analítico é uma empreitada difícil que não pode ser feita na universidade. Pela mesma razão, é difícil transmitir qualquer saber.

Sigmund Freud não desejava que a formação analítica fosse feita na universidade, pois ela seria transmitida somente "de forma dogmática, através de cursos teóricos ... sem a possibilidade de efetuar experiências ou demonstrações práticas" (Freud, 1976, pp. 217-220). Em contrapartida, ele desejava que todos os estudantes tivessem contato com a psicanálise durante seu percurso de formação universitária, pois ela lhes poderia abrir inúmeros horizontes nas mais diferentes disciplinas. Todavia, ele também pensava que apenas a literatura poderia oferecer aos psicanalistas em formação aquilo que a universidade não seria capaz de fazer. É instigante encontrar Freud opondo literatura e universidade. A literatura poderia transmitir aquilo que a universidade não está em condições de transmitir.

Modalidades da transmissão do saber
Há quatro frações de saber numa transmissão:

*Um saber que é transferido e que pode ser medido

Jacques Lacan chama esse saber de "o que cessa de não se escrever" (1985, p. 127). Em outros termos, um saber que pode ser transmitido por meio da teoria que consegue traduzir uma parte do real na linguagem das diferentes especialidades (matemática, física, filosófica etc.). O que cessa de não se escrever é uma pequena parte do real que encontra uma forma de representação simbólica. Mas essa parte mensurável, matematizável, traduzível em linguagem, não é todo o saber que uma transmissão coloca em jogo. Além disso, essa pequena parte do saber que passa nem mesmo poderia ser transmitida sem que as outras modalidades de transmissão também estivessem operando.

*Um saber que foi transferido, mas que não pôde ser medido

"O que não cessa de não se escrever" (Lacan, 1985, p.127). Um saber que está no real, que pode surgir ex-nihilo (do furo simbolicamente real), que é "pulsante" e pode ser transferido. Nós não sabemos quanto desse saber no real passou de fato através do ensino, já que não é mensurável. Mas podemos crer que esse saber tem uma existência que pode ser verificada. É precisamente ele que torna possível o processo de transferência sem o qual não há ensino. O saber no real, que não deixa rastro e do qual não temos representação, é a condição da transmissão do saber, pois possibilita o processo. Ele possui uma intensidade que se torna qualidade, pois constatamos que determinados alunos aprendem de forma rápida e eficiente, de maneira singular, enquanto outros não obtém o mesmo resultado. Este saber é um mistério para nós. Ele permanece em grande parte inacessível, mas é a condição da transferência e se pode verificá-lo no fato de que o saber mensurável passou satisfatoriamente. Ele é causa da qualidade dessa passagem e da criação de significantes novos. Logo, da qualidade da formação.

*Um saber que não pôde ser transferido: ele se perdeu, não chegou até o aluno a que estava destinado

"O que cessa de se escrever" (Lacan, J., 1985, p. 127). Nesse caso, trata-se de um saber real recalcado ou prescrito (forclos) que bloqueia a máquina da aprendizagem e da transferência. Algo do real não pode mais ser escrito, alguma coisa do real da transmissão se torna rígida, impossível de ser transmitida, de fazer vibrar a caneta sobre o corpo do papel e da letra. Trata-se do furo do traumatismo(1), do vazio produzido por uma sideração (verblüffung), estase do desejo. Uma estase que, certamente, pode ter a forma de uma repetição, como a do disco quebrado que gira ininterruptamente. Uma repetição que se torna pulsão de morte, que não se associa a uma ação criativa. Uma sideração que interrompe o caráter "pulsante" da physis, que não chega mais a se tornar lugar de emergência do real, nem a atravessar, furar ou quebrar a escritura para produzir algo de simbólico. No entanto, a paralisia apaga tudo, até mesmo o texto superegóico, por isso ela pode criar, de forma paradoxal, as condições de um novo arrebatamento, de um entusiasmo que levaria à produção de um novo texto.

Uma sideração é uma experiência de abertura fulgurante para o real, provocando a estagnação e podendo se transformar na condição de uma retroação que permitiria uma nova escritura simbólica. Nos seminários de Jacques Lacan de 8 de fevereiro de 1977 e de 5 de maio de 1979, Alain Didier-Weill buscou levantar e responder a três questões: o que possibilita a experiência da sideração? Como o analisante pode ultrapassar o muro da denegação para reencontrar o real? Como ele poderia fazer surgir um significante novo a partir da experiência siderante? Para Alain Didier-Weill, haveria três tempos lógicos passíveis de conduzir o analisante à produção de um significante novo: 1. Atravessamento da denegação que impede ao sujeito encontrar o real; 2. Experiência siderante; 3. Reação e resposta do analisante com a criação de um significante novo. O significante novo brota ex- nihilo do furo real e originário, evidentemente diferente do furo simbólico, mas capaz de antecipá-lo e criá-lo (Didier-Weill, A., 2010).

• Um saber que não pôde ser transmitido, mas que emergiu do nada, produzido pelo aluno, por sua pulsão criativa
"O que não cessa de se escrever" (Lacan, J., 1985, p.127). Trata-se de um saber pulsante que tem lugar na passagem do real através do simbólico. Ele emerge de um furo real na cadeia dos significantes inconscientes que Sigmund Freud chamou de "o umbigo do sonho" (1972, p.119). Um lugar de aparecimento, de nascimento e criação. O saber pôde surgir porque alguma coisa foi perdida na transferência e deixou um vazio ("o que cessa, por se escrever"); é um furo criador que permite sair do furo do traumatismo (trou-matisme) e da sideração, permitindo ao aluno ( e ao analisante) a produção do saber que falta no apelo; um saber que é produção e, portanto, uma atividade singular, e que é suposto produzir significantes novos.

Assim, o conjunto do processo de transmissão pode realizar-se. Já que uma transmissão é sempre singular, ela não pode estar referida a um sistema de avaliação universal. O problema é que não se pode avaliar nem medir com precisão o real psíquico. Podemos medir seus sinais externos, mas não podemos transmitir o que é da ordem da experiência de forma unívoca e integral... A aprendizagem dos animais que não falam permanece mecânica, superficial, externa. No saber humano, o inconsciente trabalha, um saber opera no íntimo, e o intima. Um espaço interno no qual um tempo (time) singular permite um novo tipo de aprendizagem que põe em movimento e questiona o sujeito aprendiz, e o convida a criar o seu próprio saber.

Saber e "Transcriação (2)"

Ensinar a aprender (3) é uma experiência singular que cada um cria da maneira que lhe é própria, mas pode ser induzida por uma transmissão que sugere e respeita o espaço de liberdade do receptor. Transmitir o saber significa primeiramente ensinar a receber o que nos é dado e a produzir o que não podemos receber diretamente e que devemos criar em nós a partir do novo. Transmitir o saber significa, então, criar as condições para que o saber seja a um só tempo recebido e produzido. Há na transmissão uma parte que é intransmissível e que não pode ser transferida, simplesmente porque não se encontra lá onde se crê que ela esteja e talvez não seja o que se crê que seja. Ela não é transferível pois ainda não existe em uma forma que possa ser acolhida e recebida. Chamarei "transcriação" essa parte que só pode ser transferida e recebida depois de criada.

Cada saber é sempre singular, porque produzido, em grande parte, por aquele que o recebe, mesmo quando se trata do saber científico, pois ele se encontra em simbiose com o sujeito que o produz e sustenta simultaneamente. Transmitir um saber significa, então, transmitir o transmissível, mas, também, fazer com que o não transmissível possa se reproduzir. Por isso, o problema não é apenas transmitir, doar um saber, é também perceber o "como", isto é, a maneira como ele pode ser recebido. Só há transmissão na presença da escuta do outro. Essa escuta é um "receptor" que , somente a posteriori, realiza a transmissão em um novo "dizer" (nova transmissão). O dizer constitui o agenciamento de dois movimentos: recepção e transmissão, a qual reúne, na transferência, repetição e criação.

Notas
(1) (N.T.) No original: trou - matisme, neologismo em que Lacan condensa os vocábulos trou, furo, etraumatisme, traumatismo.
(2) (N. A.) Neologismo que condensa o verbo "transferir" e o nome "criação", para significar uma transferência de saber que só opera mediante uma produção ex novo.
(3) (N. T.) No original: "apprendre à apprendre" também se poderia traduzir por "ensinar a ensinar" ou "aprender a ensinar". Optamos pela tradução que nos pareceu mais próxima ao encadeamento do texto.


Referências Bibliográficas
DIDIER-WEILL, A. (2010). Un mystère plus lointain que l' inconscient. Paris, Aubier.
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972, vol. IV.
______ (1900) L'interprétation des rêves, in Oeuvres complètes, tome IV, Paris PUF, 2003.
FREUD, S. (1919[1918]). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades in Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976, vol. XVII.
______ (1919[1918]). Faut-il enseigner la psychanalyse á l' université ? in Oeuvres complètes, tome XV, Paris PUF, 2002.
LACAN, J. (1969-70). O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
______ Le Séminaire, Livre XVII. L'envers de la psychanalyse. Paris, Seuil, 1991.
LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
______ (1972-73). Le Séminaire. Livre XX. Encore. Paris, Seuil, 1975.



Psicanalista, filósofo, pesquisador associado à Universidade de Paris VIII; exerce a clínica no Hospital da Piété- Salpêtrière e é secretário geral da Associação "Insistance" (arte-psicanálise- política)


FONTE: TRIVIUM - Estudos Interdisciplinares Psicanalise e Cultura


  


segunda-feira, abril 06, 2015

Felicidade Programada



Happynomics: a felicidade utópica

 Pierre-Gilles Guéguen

Em 14 de outubro de 2007, o jornal britânico The Independent – com tendência liberal-democrata, portanto à esquerda do Partido Trabalhista, teve como manchete: “Uma vitória do pensamento positivo”, referindo-se ao relatório de pré-orçamento do ministro das Finanças, Gordon Brown. Diante do desastre do sistema psiquiátrico inglês, o ministério tomou as rédeas: liberou £30.000 imediatamente, seguidos de £170.000 que, a partir de 2010 seriam dedicados ao retorno das “terapias pela palavra”.

Uma lei que altera o plano de saúde mental é votada no parlamento. Ela ratifica o fracasso das terapias medicamentosas e inicia uma mudança nas prioridades: “Os médicos generalistas não tem tempo para falar com os seus pacientes; se eles se queixam de estresse ou depressão, a lista de espera para consulta é de 18 meses. Agora sabemos que o tratamento pela palavra é mais eficaz para muitas dessas doenças”, disse o The Independent, que realiza uma campanha de pressão política nesse sentido há cinco anos. “A depressão e a ansiedade geram custos enormes, tanto para as pessoas diretamente envolvidas, como para o país. Isto é ainda mais caro do que o desemprego”, garante Layard, professor da renomada Escola de Economia de Londres. Ele é a inspiração por trás do projeto, e autor de um livro com título delirante: Felicidade: Lições de uma nova ciência. Ao sabermos que o diretor de uma escola pública elitista - o Colégio Wellington – incluiu no programa de seus alunos cursos de felicidade ministrados pelos professores de religião e supervisionados pelo professor da Universidade de Cambridge, Nick Baylis, fundador de um “Instituto da Felicidade”, não deve surpreender a ideia de que quase todo o crédito do plano Layard será direcionado à formação de psicólogos em TCC – os quais devem designar os termos de “terapias pela palavra” e “pensamento positivo”.

Algumas vozes, no entanto, parecem entrar em dissonância com essa loucura generalizada, como a do Professor Rufus May, da Universidade de Bradford, que fez valer o argumento econômico: “O pensamento do governo sobre a saúde mental não é a longo prazo. Tudo é a curto prazo: ninguém quer saber nada além da maneira mais econômica de resolver o problema. Precisamos pensar em um sistema mais global”. Entretanto, no suposto quadro para “melhorar a perspectiva do público em relação às psicoterapias”, dois centros-piloto foram implementados e um vasto programa nacional deve dar continuidade ao projeto: “os terapeutas não terão que ser graduados em psicologia e, por isso, o treinamento pode ser feito em algumas semanas por cognitivistas que apliquem protocolos sob a supervisão de um psicólogo diplomado”. Nossa colega britânica Julia Evans se referiu corretamente a estes centros como “fábricas do bem-estar”.

Se é verdade que recentemente a política global de saúde tem sido amplamente modificada sob a pressão de conservadores liberais – no sentido tradicional e europeu de liberalismo –, eu não pude, contudo, me assegurar que esses projetos duvidosos tenham sido abandonados. É verdade que o governo de David Cameron é, em boa parte, composto de conservadores autoritários, de acordo com uma política da saúde intervencionista, definida ainda sob os governos trabalhistas de Tony Blair e Gordon Brown, que foi chamada de New Labour.

Em 12 de março de 2011, surgiu uma matéria um tanto irônica do colunista britânico Roger Cohen, do The New York Times, sob o título “Os happynomics da vida”, que gerou inúmeros comentários. A matéria anuncia que, a partir de abril de 2011, cada cidadão britânico deveria estar preparado para responder às seguintes perguntas em uma escala de 0 a 10: Você se sentiu feliz no dia de ontem? Você se sentiu ansioso no dia de ontem? Você se sente satisfeito com a sua vida hoje? Até que ponto você acha que o que você faz da sua vida vale a pena?

O governo de David Cameron quer instituir o primeiro índice econômico de felicidade dos sujeitos de Sua Majestade, como indicado pelo repórter: “Isto é para dar o valor das coisas que não têm rótulos,” ao invés de código de barras. Isso faz parte do projeto Big Society de Cameron.

Poderíamos identificar aí um gosto bastante britânico pela excentricidade, à la Lytton Strachey, nesses projetos renovados de Bentham, não coincidisse isso com uma tendência profunda entre especialistas em economia em todo o mundo. Layard é professor na Escola de Economia de Londres e trabalha numa linha muito próxima dos economistas americanos. Seu relatório sobre a depressão na Grã-Bretanha, que é a origem do projeto, assim como o trabalho de seus colegas, é baseado em agregados tão sofisticados como vazios de dados cognitivo-comportamentais.

O mais conhecido entre esses economistas é o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2002, Daniel Kahneman, da Universidade Princeton nos EUA, mas outros economistas mundialmente conhecidos como Joseph Stiglitz também se juntaram a essa linha de trabalho, alguns para minimizar os custos das intervenções do Estado na política de saúde (do lado dos conservadores), e outros para encontrar uma maneira de se opor ao poder do dinheiro nas mudanças dos indicadores do PIB e fazer valer o argumento de que a qualidade de vida não pode se reduzir inteiramente à posse de riquezas.

Se os franceses se consideram imunes, lembrem-se apenas que um relatório de mais de 400 páginas, encomendado por, e com prefácio de Nicolas Sarkozy, foi publicado pela Editora Odile Jacob em novembro de 2009, sob a direção dos Prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz e Amartya Sem, e do professor e especialista francês bastante conhecido, Jean-Paul Fitoussi. Trata-se, como eles dizem, de garantir a mensuração e boa gestão do que chamam de “capital humano”.

Como indicado na contracapa: “Para enfrentar o futuro, devemos, em primeiro lugar, decifrar melhor o mundo em torno de nós e compreender melhor como ele muda. Não há outro meio senão o de melhorar a aritmética das nações”.

Portanto, para além dessa ou daquela nação, é o conjunto dos países da economia mundial que estão envolvidos nesta abordagem econômica.

Além das crises econômicas - ocorridas repetidamente desde 2008, e bem antes por certo – outros fatores demonstram a inutilidade de tais empresas. A “aritmética das nações” não obedece à lógica do inconsciente nem ao do mal-estar na civilização. Ela está baseada na suposição de que o gozo poderia se escrever sem resto, ou seja, poderia ser totalmente inscrita dentro de um sistema de ficções que não tocam o real, do tipo benthamiano. Ora, trata-se, para o ser humano, de uma relação entre o corpo e a letra, relação que os happynomics ignoram, mas da qual Lacan tratou especialmente no final do seu texto “Lituraterra”. Remito-os aqui a uma apaixonante discussão entre Éric Laurent e Jacques-Alain Miller, onde o problema é formulado a partir da frase conclusiva de Lacan: “Uma ascese da escrita não me parece poder ser atingida senão alcançando um ‘está escrito’ onde se inscreveria a relação sexual”.

A conclusão desta breve apresentação poderia, então, apoiar-se neste comentário que tomo emprestado de E. Laurent: “O discurso analítico só passará se conseguir fazer escutar sua prática da não-relação, o que explica a abundância de termos em Lituraterra que designam as não-relações; que vemos aparecer ora como substantivo (Lacan fala de ruptura, de quebra), ora como verbo (ele fala de dissolver, de quebrar), tudo isto aplicado ao significante.

Isso indica que a letra está no corpo e que ela marca a ligação indissolúvel entre a fala e o corpo pulsional, extraindo um resto que cava a não-relação, e que Lacan põe em marcha sob o termo de objeto a.

O impasse dos happynomics reside no fato de que eles acreditam que a fala não comporta nenhuma não-relação e, portanto, nenhum resto. Esses economistas imaginam que é possível fazer os consumidores felizes mesmo que eles não saibam, enquanto Lacan, mais prudente, sabia que de, entrada, “o sujeito é feliz”, porque ele goza de seu sinthoma, isto é, do vivente que há nele. Os happynomics, pelo contrário, sonham com um mundo cuja enunciação, quer dizer, a tomada do corpo naquilo que se diz, tenha desaparecido. Sobrariam apenas enunciados sem sujeito – teatro de sombras, algo próximo do Bunkaru japonês, do qual Roland Barthes dizia, em O Império dos Signos, ter experimentado, ao assistir, o alívio de quem abandona toda a responsabilidade para se submeter a um outro gozo.

A psicanálise vai na direção oposta, e os jovens da Puerta del Sol, ou da Praça Syntagma, nos fazem lembrar disso ao usarem como slogan: “Nós somos seres humanos, e não os números do desemprego”.
Tradução: Priscylla Guedes


Revisão: Alma Rosas e Marcelo Veras

Fonte: Agente - Revista de Psicanálise

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