Psicanálise e transmissão do saber
Paolo Lollo
O discurso universitário nos faz ouvir a ideia de um saber que se
transmite integralmente. O mestre endereça um saber ao discípulo,
considerando-o um receptáculo vazio a ser completamente preenchido. O discurso
científico - previamente esboçado pelos gregos e teorizado por Galileu, Isaac
Newton e René Descartes - procura aproximar-se do real pela matematização e
pela apreensão dos fenômenos da natureza por meio de cifras e letras. Galileu
abre o livro da natureza, escrito "em linguagem matemática", e o decifra.
Aprendendo essa linguagem, o homem pode ter acesso aos segredos da natureza,
que obedeceria a leis universais e eternas. Trata-se, então, de descobrir essas
leis, para que a ciência domine as forças da natureza.
O discurso universitário
se outorga a tarefa de transmitir esse saber que seria mensurável,
matematizável. Submetido ao discurso científico, ele faz da avaliação o guarda
de honra da transmissão. A partir de um determinado conteúdo, que pode ser
medido, há um esforço para avaliar que porção desse "todo" foi
transferida do mestre para o aluno. A operação de transmissão é considerada bem
sucedida, até mesmo perfeita, se a transmissão é total, sem resto. Mas como
podemos medir, avaliar a transmissão do saber? Para isso precisamos de uma
unidade de medida precisa: uma espécie de cálice
de graduação capaz de
transferir integralmente um conteúdo de saber perceptível na passagem de um a
outro continente. Para a psicanálise, que concebe a matéria do saber como um
estado psíquico, portanto proteiforme, o instrumento de medida é
necessariamente impreciso e produz uma perda, que é não apenas necessária, mas
também, como veremos adiante, útil à operação da transferência. Um instrumento
semelhante a uma rede de pesca feita de uma malha grossa será suficiente para
medir e também para transferir algum saber. Quanto mais grossa a malha, maior a
perda na avaliação. Contudo, não significa que não haja um ponto ótimo de
transferência do saber. O saber não se transmite de forma integral e,
sobretudo, não da mesma maneira, já que sua forma e qualidade se transformam em
cada transferência. São, portanto, variadas e não determinadas de antemão.
Para Jacques Lacan, o saber é transmissível graças ao fato de que
permanece parcialmente escondido, velado. Explicar-se-ia, assim, porque sua
retórica visa quebrar, fragmentar o discurso, por meio de jogos de palavras
burlescos, digressões e interrupções, mas também por interjeições,
onomatopeias, deslizamentos vocais e silêncios, tudo isso para transmitir a um
público atento um saber que ofusca e "passa." Com as rupturas do
discurso, Jacques Lacan corta o continuum de uma transmissão predeterminada em
que significante e significado estariam colados e na impossibilidade de se
separar, de se distinguir. A separação só pode ser concluída com a irrupção do
sujeito que canta e que dança, um sujeito desejante (de-siderante), capaz de
introduzir no discurso algo de humano e imprevisível, abrindo-o ao inconsciente
(Lacan, 1991).
O discurso científico sustenta-se na exclusão do sujeito desejante,
e visa à simbolização completa do real ( por exemplo, a grande teoria da
unificação). Mas é verdade que esse discurso põe em cena o sujeito como
observador externo de um objeto da natureza, a physis, razão pela qual
poderíamos, então, entender o motivo por que se possa pelo menos conceber uma
atitude neutra diante do real. O que parece problemático é calcar o discurso
universitário no discurso científico: não podemos conceber um discurso
universitário neutro que faça economia do sujeito desejante, do quid humano e de sua singularidade.
Quando um professor se
dirige a um estudante para lhe transmitir um saber, ele põe em movimento uma
dinâmica entre dois sujeitos. Assim, ele não pode abstrair-se do domínio humano
que procede da singularidade. Se, na física, o ponto de vista do observador
muda o objeto observado, no discurso das ciências humanas, o ponto de vista do
professor forma e transforma o discípulo, mas ele também pode vir a ser
transformado por um verdadeiro receptor que nunca é passivo. Assim, o objeto
saber, o conteúdo transmitido no ensino, acaba se transformando nessa viagem de
vai-e-vem.
Saber humanista e ato analítico
A psicanálise transmite
um saber humanista cuja ética deve levar em conta a especificidade humana: a
singularidade, o fato de que se vem ao mundo, se vive e se morre, um a um.
Porém, ao mesmo tempo, a especificidade também se liga à universalidade humana:
a liberdade do devir. Cada homem e cada mulher é impelido ao extremo dessa
liberdade para se tornar ator e criador de seu próprio destino. A psicanálise
procura ativar a singular força criativa de cada analisante, liberar a pulsão
de vida, de modo que ela se torne capaz de desativar a força mortífera da
repetição do mesmo. Rearticulando pulsão de vida e pulsão de morte, ligando-as
às forças de criação, o trabalho analítico busca não apenas deslocar o sintoma,
mas também transformá-lo.
A palavra
"humano" remete a "húmus" e a húmido, portanto, a
uma terra cujas qualidades lhe permitem engendrar o vivo, reproduzi-lo
e cria-lo. A psicanálise e a transmissão de saber referem-se a esse húmus
singular. Não haverá transmissão nem transformação da realidade se não houver
obra de criação, ao mesmo tempo em que há repetição ou apreensão do saber. O
saber pragmático da psicologia e da psicoterapia limita-se, no melhor dos
casos, à cura por meio do deslocamento do sintoma. Sua ferramenta é o exercício
(training) cujo princípio é a repetição do mesmo. A pulsão de morte é
uma repetição, semelhante à de um disco quebrado que gira incessantemente. Uma
repetição que não se associa a uma ação criadora, produtora, mas que é
destinada a reproduzir os sintomas. A psicologia desloca o sintoma de um lugar
para outro, mascarando-o e escondendo-o sob o tapete. Por isso, o trabalho
analítico procura não apenas transferir, mas também transformar os sintomas. Do
mesmo modo, o discurso da psicanálise visa transmitir o saber e, ao mesmo
tempo, transformá-lo.
A ambição do ato
analítico é movimentar uma dinâmica que enode repetição e criação, no intuito
de deslocar o sintoma e de transformá-lo em seu ponto de origem, para que uma
parte da energia que servia à repetição, ao deslocamento e ao recalque, possa
ser utilizada na criação de objetos de arte, por meio da sublimação, assim como
na autocriação e na recuperação. A energia que empregamos na manutenção e na
repetição do sintoma pode ser usada para tornar possível o deslocamento
criativo que podemos chamar "desejo", "desiderio",
"de-sirius", que é uma energia usada para nos distanciar da
estrela Sírio, prendendo-nos em uma órbita repetitiva. Mudar de órbita, ou até
de estrela, é o objetivo da ação analítica e de cada transmissão de saber.
Transmissão da psicanálise
A psicanálise lê a
natureza como um real em movimento que foge da apreensão por meio de categorias
e dos instrumentos de medida dos geômetras. A physis,
o real, é, para Lacan, "o que não cessa de não se escrever" (Lacan,
1985, p.127). Ela escapa à apreensão conceitual do saber humano. Essa recusa
não significa que ela não aja no simbólico, mas temos que "saber
lidar" com a presença ausente que não pode integrar nosso saber de forma
plena e aberta. Por isso, a transmissão do saber analítico é uma empreitada
difícil que não pode ser feita na universidade. Pela mesma razão, é difícil
transmitir qualquer saber.
Sigmund Freud não
desejava que a formação analítica fosse feita na universidade, pois ela seria
transmitida somente "de forma dogmática, através de cursos teóricos ...
sem a possibilidade de efetuar experiências ou demonstrações práticas"
(Freud, 1976, pp. 217-220). Em contrapartida, ele desejava que todos os
estudantes tivessem contato com a psicanálise durante seu percurso de formação
universitária, pois ela lhes poderia abrir inúmeros horizontes nas mais
diferentes disciplinas. Todavia, ele também pensava que apenas a literatura
poderia oferecer aos psicanalistas em formação aquilo que a universidade não
seria capaz de fazer. É instigante encontrar Freud opondo literatura e
universidade. A literatura poderia transmitir aquilo que a universidade não está
em condições de transmitir.
Modalidades da transmissão do saber
Há quatro frações de
saber numa transmissão:
*Um saber que é
transferido e que pode ser medido
Jacques Lacan chama esse
saber de "o que cessa de não se escrever" (1985, p. 127). Em outros
termos, um saber que pode ser transmitido por meio da teoria que consegue
traduzir uma parte do real na linguagem das diferentes especialidades
(matemática, física, filosófica etc.). O que cessa de não se escrever é uma
pequena parte do real que encontra uma forma de representação simbólica. Mas
essa parte mensurável, matematizável, traduzível em linguagem, não é todo o
saber que uma transmissão coloca em jogo. Além disso, essa pequena parte do
saber que passa nem mesmo poderia ser transmitida sem que as outras modalidades
de transmissão também estivessem operando.
*Um saber que foi
transferido, mas que não pôde ser medido
"O que não cessa de
não se escrever" (Lacan, 1985, p.127). Um saber que está no real, que pode
surgir ex-nihilo (do furo simbolicamente real), que é
"pulsante" e pode ser transferido. Nós não sabemos quanto desse saber
no real passou de fato através do ensino, já que não é mensurável. Mas podemos
crer que esse saber tem uma existência que pode ser verificada. É precisamente
ele que torna possível o processo de transferência sem o qual não há ensino. O
saber no real, que não deixa rastro e do qual não temos representação, é a
condição da transmissão do saber, pois possibilita o processo. Ele possui uma
intensidade que se torna qualidade, pois constatamos que determinados alunos
aprendem de forma rápida e eficiente, de maneira singular, enquanto outros não
obtém o mesmo resultado. Este saber é um mistério para nós. Ele permanece em
grande parte inacessível, mas é a condição da transferência e se pode
verificá-lo no fato de que o saber mensurável passou satisfatoriamente. Ele é
causa da qualidade dessa passagem e da criação de significantes novos. Logo, da
qualidade da formação.
*Um saber que não pôde ser transferido: ele se perdeu, não chegou
até o aluno a que estava destinado
"O que cessa de se
escrever" (Lacan, J., 1985, p. 127). Nesse caso, trata-se de um saber real
recalcado ou prescrito (forclos) que bloqueia a máquina da aprendizagem
e da transferência. Algo do real não pode mais ser escrito, alguma coisa do
real da transmissão se torna rígida, impossível de ser transmitida, de fazer
vibrar a caneta sobre o corpo do papel e da letra. Trata-se do furo do
traumatismo(1),
do vazio produzido por uma sideração (verblüffung), estase do desejo.
Uma estase que, certamente, pode ter a forma de uma repetição, como a do disco
quebrado que gira ininterruptamente. Uma repetição que se torna pulsão de
morte, que não se associa a uma ação criativa. Uma sideração que interrompe o
caráter "pulsante" da physis, que não chega mais a se tornar lugar
de emergência do real, nem a atravessar, furar ou quebrar a escritura para
produzir algo de simbólico. No entanto, a paralisia apaga tudo, até mesmo o
texto superegóico, por isso ela pode criar, de forma paradoxal, as condições de
um novo arrebatamento, de um entusiasmo que levaria à produção de um novo
texto.
Uma sideração é uma
experiência de abertura fulgurante para o real, provocando a estagnação e
podendo se transformar na condição de uma retroação que permitiria uma nova
escritura simbólica. Nos seminários de Jacques Lacan de 8 de fevereiro de 1977
e de 5 de maio de 1979, Alain Didier-Weill buscou levantar e responder a três
questões: o que possibilita a experiência da sideração? Como o analisante pode
ultrapassar o muro da denegação para reencontrar o real? Como ele poderia fazer
surgir um significante novo a partir da experiência siderante? Para Alain
Didier-Weill, haveria três tempos lógicos passíveis de conduzir o analisante à
produção de um significante novo: 1. Atravessamento da denegação que impede ao
sujeito encontrar o real; 2. Experiência siderante; 3. Reação e resposta do
analisante com a criação de um significante novo. O significante novo brota ex- nihilo do furo real e originário,
evidentemente diferente do furo simbólico, mas capaz de antecipá-lo e criá-lo
(Didier-Weill, A., 2010).
• Um saber que não
pôde ser transmitido, mas que emergiu do nada, produzido pelo aluno, por sua
pulsão criativa
"O
que não cessa de se escrever" (Lacan, J., 1985, p.127). Trata-se de um
saber pulsante que tem lugar na passagem do real através do simbólico. Ele
emerge de um furo real na cadeia dos significantes inconscientes que Sigmund
Freud chamou de "o umbigo do sonho" (1972, p.119). Um lugar de aparecimento,
de nascimento e criação. O saber pôde surgir porque alguma coisa foi perdida na
transferência e deixou um vazio ("o que cessa, por se escrever"); é
um furo criador que permite sair do furo do traumatismo (trou-matisme) e
da sideração, permitindo ao aluno ( e ao analisante) a produção do saber que
falta no apelo; um saber que é produção e, portanto, uma atividade singular, e
que é suposto produzir significantes novos.
Assim,
o conjunto do processo de transmissão pode realizar-se. Já que uma transmissão
é sempre singular, ela não pode estar referida a um sistema de avaliação
universal. O problema é que não se pode avaliar nem medir com precisão o real
psíquico. Podemos medir seus sinais externos, mas não podemos transmitir o que
é da ordem da experiência de forma unívoca e integral... A aprendizagem dos
animais que não falam permanece mecânica, superficial, externa. No saber
humano, o inconsciente trabalha, um saber opera no íntimo, e o intima. Um
espaço interno no qual um tempo (time) singular permite um novo tipo de
aprendizagem que põe em movimento e questiona o sujeito aprendiz, e o convida a
criar o seu próprio saber.
Saber e "Transcriação (2)"
Ensinar a aprender (3) é uma experiência singular que cada um
cria da maneira que lhe é própria, mas pode ser induzida por uma transmissão
que sugere e respeita o espaço de liberdade do receptor. Transmitir o saber
significa primeiramente ensinar a receber o que nos é dado e a produzir o que
não podemos receber diretamente e que devemos criar em nós a partir do novo.
Transmitir o saber significa, então, criar as condições para que o saber seja a
um só tempo recebido e produzido. Há na transmissão uma parte que é
intransmissível e que não pode ser transferida, simplesmente porque não se
encontra lá onde se crê que ela esteja e talvez não seja o que se crê que seja.
Ela não é transferível pois ainda não existe em uma forma que possa ser
acolhida e recebida. Chamarei "transcriação" essa parte que só pode
ser transferida e recebida depois de criada.
Cada saber é sempre
singular, porque produzido, em grande parte, por aquele que o recebe, mesmo
quando se trata do saber científico, pois ele se encontra em simbiose com o
sujeito que o produz e sustenta simultaneamente. Transmitir um saber significa,
então, transmitir o transmissível, mas, também, fazer com que o não
transmissível possa se reproduzir. Por isso, o problema não é apenas
transmitir, doar um saber, é também perceber o "como", isto é, a
maneira como ele pode ser recebido. Só há transmissão na presença da escuta do
outro. Essa escuta é um "receptor" que , somente a posteriori, realiza a
transmissão em um novo "dizer" (nova transmissão). O dizer constitui
o agenciamento de dois movimentos: recepção e transmissão, a qual reúne, na
transferência, repetição e criação.
Notas
(1)
(N.T.) No original: trou - matisme, neologismo em que Lacan condensa os
vocábulos trou, furo, etraumatisme,
traumatismo.
(2)
(N. A.) Neologismo que condensa o verbo "transferir" e o nome
"criação", para significar uma transferência de saber que só opera
mediante uma produção ex novo.
(3)
(N. T.) No original: "apprendre à apprendre" também se poderia
traduzir por "ensinar a ensinar" ou "aprender a ensinar".
Optamos pela tradução que nos pareceu mais próxima ao encadeamento do texto.
Referências Bibliográficas
DIDIER-WEILL, A. (2010). Un
mystère plus lointain que l' inconscient. Paris, Aubier.
FREUD, S. (1900). A
interpretação dos sonhos in Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Edição
Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1972, vol. IV.
______ (1900) L'interprétation
des rêves, in Oeuvres
complètes, tome IV, Paris PUF, 2003.
FREUD, S. (1919[1918]). Sobre
o ensino da psicanálise nas universidades in Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Edição
Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976, vol. XVII.
______ (1919[1918]). Faut-il
enseigner la psychanalyse á l' université ? in Oeuvres complètes, tome XV,
Paris PUF, 2002.
LACAN, J. (1969-70). O
Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
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______ Le
Séminaire, Livre XVII. L'envers de la psychanalyse. Paris, Seuil, 1991.
LACAN, J. (1972-73). O
Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
______ (1972-73). Le
Séminaire. Livre XX. Encore. Paris, Seuil, 1975.
Psicanalista, filósofo, pesquisador associado à Universidade de
Paris VIII; exerce a clínica no Hospital da Piété- Salpêtrière e é secretário
geral da Associação "Insistance" (arte-psicanálise- política)
FONTE: TRIVIUM - Estudos Interdisciplinares Psicanalise e Cultura
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