AULA
INAUGURAL DA CADEIRA DE SEMIOLOGIA LITERÁRIA DO COLÉGIO DE FRANÇA
pronunciada
dia 7 de janeiro de 1977
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Uma outra alegria me vem hoje, mais
grave porque mais responsável: a de entrar num lugar que pode ser dito
rigorosamente: fora do poder. Pois se me é permitido interpretar, por minha vez,
o Colégio, direi que, na ordem das instituições, ele é como uma das últimas
astúcias da História; a honra é geralmente uma sobra do poder; aqui, ela é sua
subtração, sua parte intocada: o professor não tem aqui outra atividade senão a
de pesquisar e de falar — eu diria prazerosamente de sonhar alto sua pesquisa —
não de julgar, de escolher, de promover, de sujeitar-se a um saber dirigido:
privilégio enorme, quase injusto, num momento em que o ensino das letras está
dilacerado até o cansaço, entre as pressões da demanda tecnocrática e o desejo
revolucionário de seus estudantes. Sem dúvida ensinar, falar simplesmente, fora
de toda sanção institucional, não constitui uma atividade que seja, por
direito, pura de qualquer poder: o poder (a libido dominandi) aí está,
emboscado em todo e qualquer discurso, mesmo quando este parte de um lugar fora
do poder. Assim, quanto mais livre for esse ensino, tanto mais será necessário
indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se
de todo desejo de agarrar. Esta interrogação constitui, a meu ver, o projeto
profundo do ensino que hoje se inaugura.
É, com efeito, de poder que se
tratará aqui, indireta mais obstinadamente. A “inocência” moderna fala do poder
como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o
têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político;
acreditamos agora que é também um objeto ideológico, que ele se insinua nos
lugares onde não o ouvíamos de início, nas instituições, nos ensinos, mas, em
suma, que ele é sempre uno. E no entanto, se o poder fosse plural, como os
demônios? “Meu nome é Legião”, poderia ele dizer: por toda parte, de todos os
lados, chefes, aparelhos, maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de
pressão: por toda parte, vozes “autorizadas”, que se autorizam a fazer ouvir o
discurso de todo poder: o discurso da arrogância. Adivinhamos então que o poder
está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente no
Estado, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes,
nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações
familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos liberadores que tentam
contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por
conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe. Alguns esperam de nós,
intelectuais, que nos agitemos a todo momento contra o Poder; mas nossa
verdadeira guerra está alhures: ela é contra os poderes, e não é um combate fácil:
pois, plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo
histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam uma
revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no novo
estado de coisas. A razão dessa resistência e dessa ubiquidade é que o poder é
o parasita de um organismo transsocial, ligado à história inteira do homem, e
não somente à sua história política, histórica. Esse objeto em que se inscreve
o poder, desde toda eternidade humana, é: a linguagem — ou, para ser mais
preciso, sua expressão obrigatória: a língua.
A linguagem é uma legislação, a língua
é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que
toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo
quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jakobson mostrou que um
idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que por aquilo que ele
obriga a dizer. Em nossa língua francesa (e esses são exemplos grosseiros),
vejo-me adstrito a colocar-me primeiramente como sujeito, antes de enunciar a
ação que, desde então, será apenas meu atributo: o que faço não é mais do que a
consequência e a consecução do que sou; da mesma maneira, sou obrigado a
escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são
proibidos; do mesmo modo, ainda, sou obrigado a marcar minha relação com o
outro recorrendo quer ao tu, quer ao vós; o suspense afetivo ou social me é
recusado. Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal
de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se
repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição
generalizada.
Vou citar um dito de Renan “O
francês, Senhoras e Senhores, dizia ele, numa conferência, nunca será a língua
do absurdo; também nunca será uma língua reacionária. Não posso imaginar uma
reação séria tendo por órgão o francês.” Pois bem, à sua maneira, Renan era
perspicaz; ele adivinhava que a língua não se esgota na mensagem que engendra;
que ela pode sobreviver a essa mensagem e nela fazer ouvir, numa ressonância
muitas vezes terrível, outra coisa para além do que é dito, superimprimindo à
voz consciente, razoável do sujeito, a voz dominadora, teimosa, implacável da
estrutura, isto é, da espécie enquanto falante; o erro de Renan era histórico,
não estrutural; ele acreditava que a língua francesa, formada, pensava ele,
pela razão, obrigava à expressão de uma razão política que, em seu espírito, só
podia ser democrática. Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é
nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o
fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.
Assim que ela é proferida, mesmo
que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um
poder. Nela, infalivelmente, duas rubricas se delineiam: a autoridade da
asserção, o gregarismo da repetição. Por um lado, a língua é imediatamente
assertiva: a negação, a dúvida, a possibilidade, a suspensão de julgamento
requerem operadores particulares que são eles próprios retomados num jogo de
máscaras linguageiras; o que os linguistas chamam de modalidade nunca é mais do
que o suplemento da língua, aquilo através de que, como uma súplica, tento
dobrar seu poder implacável de constatação. Por outro lado, os signos de que a língua é feita,
os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em
que se repetem; o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro:
um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua.
Assim que enuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo
mestre e escravo: não me contento com repetir o que foi dito, com alojar-me
confortavelmente na servidão dos signos: digo, afirmo, assento o que repito.
Na língua, portanto, servidão e
poder se confundem inelutavelmente. Se chamamos de liberdade não só a potência
de subtrair-se ao poder, mas também e sobretudo a de não submeter ninguém, não
pode então haver liberdade senão fora da linguagem. Infelizmente, a linguagem
humana é sem exterior: é um lugar fechado. Só se pode sair dela pelo preço do
impossível: pela singularidade mística, tal como a descreve Kierkegaard, quando
define o sacrifício de Abraão como um ato inédito, vazio de toda palavra, mesmo
interior, erguido contra a generalidade, o gregarismo, a moralidade da
linguagem; ou então pelo amem nietzschiano, que é como uma sacudida jubilatória
dada ao servilismo da língua, àquilo que Deleuze chama de “capa reativa”. Mas a
nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim
dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa
esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no
esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim:
literatura.
TEXTO COMPLETO IN:
http://copyfight.me/Acervo/livros/BARTHES,%20Roland.%20Aula.pdf
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