O
SUJEITO NA PSICANÁLISE E NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Tania Rivera
DOR
Em
1984, a artista francesa Sophie Calle recebeu uma bolsa para uma temporada no
exterior e partiu rumo ao Japão. Ao cabo de três meses, seu companheiro deveria
encontrá-la em um hotel na Índia. Ele não chega, e Sophie vive o pior momento
de sua vida, a dor mais terrível que já havia experimentado. Após várias horas
de tentativas, ela consegue falar com ele ao telefone e fica sabendo que ele
encontrou outra mulher.
De
volta a Paris, ela resolve contar a história deste rompimento, mais do que a de
seu périplo pelo oriente. Como uma forma de “conjuração”, Sophie narra durante
99 dias, a cada dia, essa história a amigos ou desconhecidos, perguntando-lhes
em seguida: “Quando você mais sofreu?”. Esta troca cessaria, diz a artista,
quando ela tivesse esgotado sua história de tanto contá-la, ou quando tivesse
“relativizado sua dor face à dos outros” (Calle, 2003: 202-203).
“O
método”, afirma Sophie, “foi radical: em três meses estava curada” (Calle, 2003:
203). Com medo de uma recaída, porém, ela abandona esse projeto artístico.
Apenas quinze anos mais tarde ela o retoma e lança o livro intitulado Douleur
exquise, documentação fotográfica e textual de sua viagem sob o prisma desta
ruptura. A primeira parte do livro traz fotografias da viagem e cartas enviadas
a seu amor ou por ele enviadas, sempre marcadas pela contagem regressiva do dia
do não-encontro. Após o instante da ruptura, fixado na imagem fotográfica do
telefone vermelho sobre a cama do quarto de hotel, temos a cada dia uma pequena
reprodução desta foto, seguida do relato de Sophie, a cada vez ligeiramente
diferente, dessa história. No alto da contrapágina, há também uma pequena foto,
cada vez diferente, seguida do relato anônimo de uma situação de extremo
sofrimento. Os relatos de Sophie vão pouco a pouco tornando-se mais curtos e
literalmente apagados (as letras brancas vão apresentando menos contraste em
relação ao seu fundo negro). No dia número 99, não há mais texto sob a foto do
telefone, que permanece, contudo – curiosamente –, intacta. Esta imagem nítida
torna-se aí uma espécie de resto da ruptura entre Sophie e seu companheiro.
Algo fica, mas se perdeu nesse objeto que liga para o outro, nos liga ao outro,
chama o outro (às vezes em vão, sem resposta). Na contrapágina, o texto
continua nítido, mas não parece, como os demais, um relato. Parece antes
tratar-se de uma pequena fabulação de Sophie – ou de qualquer um, mantendo o
caráter anônimo dos demais. Ele conta uma notícia lida no jornal: no dia 28 de
março, uma senhora de sessenta e dois anos, Maria G., teria sido acusada por um
vigia de supermercado de roubar um potinho de creme de leite e teria sido
revistada diante dos outros clientes. O texto prossegue:
Maria
voltou para casa. Ela não falou de sua desventura com ninguém. No dia 10 de
abril, ela foi ver o túmulo de seus pais. Na volta, passou perto do canal no
qual acabam de repescar e identificar seu corpo. Ela havia deixado um bilhete para
seu filho: “Roland, eu não cometi o roubo do potinho de creme do qual me acusam
os pilantras do supermercado. Juro sobre a cabeça de meus netos. Diante da
morte, não minto. Tua mãe” (Calle, 2003: 275).
EFEITOS DE SUJEITO
O
trabalho de Sophie Calle não pode ser rapidamente tomado como paradigma da arte
contemporânea. Mas ele nos interessa aqui por apresentar de forma inequívoca
algo que é central à arte, mas muitas vezes se apresenta de forma dissimulada:
sua potência de convocação do sujeito. Douleur exquise mostra que tal
convocação visa justamente o que é mais próprio ao sujeito, sua dor. E o gozo
que a acompanha, misterioso e terrível – belo, às vezes, sublime –, surgimento
do sujeito sob o primado da pulsão de morte. O adjetivo francês exquis refere-se,
comumente, ao que de mais sofisticado e sutil pode-se conceber nas delícias
gastronômicas. Ele tem a mesma origem latina de “esquisito”, mas designa algo
refinado, raro, delicado, precioso. No vocabulário médico, douleur exquise tem
a significação, citada por Calle, de dor viva e nitidamente localizada. A dor é
preciosa e pode ser bela. Ou, ainda: em toda beleza há dor, na dor pode haver
alguma beleza sutil e preciosa. Como diz o filósofo irlandês Edmund Burke em
1757, “tudo que é de alguma maneira capaz de excitar ideias de dor e perigo
[...] é uma fonte do sublime, ou seja, pode produzir a emoção mais forte que a
mente é capaz de sentir” (Burke, [1757] 2004: 86; tradução nossa). Essa é a
posição romântica do sublime. E não deixa de ser a posição de Freud, sublime
herdeiro do Romantismo, quando afirma, no belo ensaio “Sobre a
transitoriedade”, que “o doloroso também pode ser verdadeiro” (Freud, [1915]
1946: 358- 359; tradução nossa). A iminência da perda, do inverno, torna mais
bela a natureza primaveril.
Calle
concebe seu trabalho artístico como uma espécie de tratamento analítico ou
psicoterápico, e nisso ela radicaliza a relação entre arte contemporânea e
psicanálise, em geral bem mais matizada ou mesmo francamente problemática. Sua
obra se apresenta como radicalmente subjetiva, e nisso poderia ser tomada como
pertencendo a uma espécie particular, dentro de uma pretensa classificação de
gêneros artísticos. Porém parece-nos que há aí algo de fundamental ao diálogo
entre arte e psicanálise, algo que se enoda na passagem para o século XX e que constitui,
hoje, um importante motor para a reflexão nos dois campos: ambos visam
despertar efeitos de sujeito.
Tal
efeito de sujeito não diz respeito à presença do autor, do artista, em uma
obra. O artista designa-se por sua obra e não antes dela, ele não preexiste
como artista a seu trabalho. Por mais que uma obra apresente-se como
francamente autobiográfica, ela distancia-se do eu que a enuncia em prol de uma
universalidade. Freud afirma que a verdadeira arte poética residiria na
conjuração do que é estritamente pessoal em prol de um laço com o outro, o espectador
ou leitor (Freud, [1908] 1976). No entanto, não deixam de ser as fantasias do
sujeito seu ponto de partida. As fantasias são próprias ao sujeito, ou melhor,
ele com elas se forma, constituindo-se ao tornar suas as fantasias do Outro,
que a ele preexistem. Mas tais fantasias devem, para enlaçar o outro,
tornar-se, diríamos, impróprias: convite à apropriação, ou seja, capazes de
(re)convocar o sujeito a fantasiar, (re)constituindo-se como a elas
assujeitado. Assim, a dor de Sophie nos relança a questão de nossa própria dor.
Sua história nos é endereçada e é um convite para que se refaça a nossa. Em
outro trabalho de 1979 (Les Dormeurs), Sophie já havia convidado amigos e
desconhecidos (nos convidado) a dormir em sua cama. Ela olhava e fotografava
esses dormidores de empréstimo, tentando talvez captar o que não se deixa ver:
seus sonhos.
A
psicanálise vem ressaltar algo antigo, talvez, no universo artístico: o fato de
que a autoria implica uma certa subversão do sujeito. Na poesia, poderíamos
dizer com Rimbaud, o eu é um outro.
EFEITOS DA TRAGÉDIA,
EFETIVIDADE DO ÉDIPO
Com
seu enunciado de que “o eu não é mais senhor em sua própria casa” (Freud,
[1917] 1944: 295; tradução nossa), de que ele é outro e seus atos dão prova de
uma determinação inconsciente, a psicanálise nasce no contexto mais amplo da
violenta crítica à mímesis explorada pela arte moderna. A organização mimética
do campo da arte data do Renascimento e tem seu paradigma no esquema
perspectivo, que pressupõe uma relação homogênea e simétrica entre o homem e o
mundo. O homem torna-se a partir daí o ponto fixo que organiza a representação
de forma inequívoca e bem estruturada em nome de um naturalismo que esconde seu
caráter convencional. A arte talvez não deixe nunca, apesar de se construir
sobre estes alicerces, de relançar para o sujeito a questão de seu lugar (ou
falta de lugar) no mundo. De forma um tanto grosseira, pois não nos cabe aqui
estender-nos no terreno da História da Arte, podemos dizer que é na passagem
para o século XX, porém, que a ilusória simetria especular entre homem e mundo
é radicalmente posta em questão, ao mesmo tempo com a psicanálise e a arte
moderna. “No século XX”, como diz Francis Ponge falando da obra de Picasso, “os
espelhos voaram em pedaços” (citado por Gagnebin, [s.d.]: 39; tradução nossa).
Questionado
fortemente em seus próprios fundamentos, o homem não pode mais ocupar a posição
de garantia fixa da representação, que começa então a ser retrabalhada sob
outras bases que não a mimética (Rivera, 2006). Subvertem-se homem e arte, em
um mesmo movimento crítico que vivemos até hoje.
É
importante que se note que a teoria da arte voltou-se recentemente para a
psicanálise de forma gritante, com representantes do peso de um Georges Didi- Huberman
(1998), na França, ou ainda de Rosalind Krauss (1993) e Hal Foster (1996), nos
Estados Unidos. Como chega a afirmar este último, a história da arte
necessitaria de uma teoria do sujeito, o mais adequado sendo, portanto,
tomarmos o “mais sofisticado modelo do sujeito que existe, o psicanalítico”
(Foster, 1996: 28; tradução nossa).
Ora,
se a História da Arte precisa de uma teoria do sujeito, é porque escapa à
abordagem historiográfica isso de que se trata na arte: o sujeito. Não é à-toa
que Freud concede à arte (mais especialmente, como sabemos, à literatura) um
papel de peso na própria fundação da psicanálise. O contato entre teoria
freudiana e arte não se restringe a uma utilização erudita de obras,
privilegiadamente literárias, como belas ilustrações da teoria. Ele se revela
um verdadeiro entrelaçamento que, aliado à clínica psicanalítica, constitui um
momento originário da psicanálise e uma mola propulsora que permite que esta se
expanda para além dos limites da psicopatologia, para além da terapêutica da histeria,
para atingir um registro universal, da constituição do sujeito. “A
interpretação dos sonhos” (Freud, [1900] 1999) nos apresenta este momento
fundante em que o Complexo de Édipo se engendra através e na companhia da
célebre Tragédia de Sófocles.
Se
Édipo Rei afeta (erschüttern) tanto uma plateia moderna quanto fazia com a plateia
grega da época, a explicação só pode ser que seu efeito (Wirkung) não está no
contraste entre o destino e a vontade humana, mas deve ser procurado na
natureza específica do material com que esse contraste é exemplificado. Deve
haver algo que desperta dentro de nós uma voz que está pronta a reconhecer a
força compulsiva do destino no Édipo [...]. E há realmente um fator dessa
natureza na história do Rei Édipo. Seu destino nos toca (ergreifen) apenas
porque poderia ter sido o nosso – porque o oráculo lançou sobre nós, antes de
nascermos, a mesma maldição que caiu sobre ele (Freud, [1900] 1999: 262-263;
itálicos nossos).
O
que propulsiona a universalidade do Complexo de Édipo, para além dos limites da
sintomatologia e etiologia da psiconeurose, é um certo “efeito”, ou uma certa
“efetividade” artística. Édipo torna-se o efetivo princípio organizador da
subjetividade, graças à ligação subterrânea, porém tenaz, aí efetuada entre a
teoria psicanalítica e este monumento da Arte ocidental que é o Édipo Rei.
Freud
não definirá tal “efeito” produzido pela tragédia de Sófocles, não é seu
interesse aí refletir sobre a contemplação artística ou outros assuntos
clássicos da Estética. Interessa a ele se apoiar na força da tragédia para
fazer de Édipo um “complexo” – e, ao fazê-lo, é o próprio núcleo da
Psicanálise, ficção estruturante do sujeito, que ele implica irremediavelmente
à arte.
Se
Freud não se debruça sobre o “efeito” produzido pela arte, ele não deixa de
trazer a seu respeito indicações preciosas. Em primeiro lugar, a de que é ao
próprio núcleo da constituição subjetiva, o Édipo, ficção que efetiva a perda,
a dor, a castração, que se refere tal efeito. Em segundo, a de que se trata,
quando somos “tocados” por uma obra, de uma verdadeira captura (Ergreifung). A
dor de Sophie não convoca a de seu interlocutor, dando voz à dor deste – assim
como, fora do livro, à nossa? Uma obra seria então uma espécie de armadilha
para o sujeito, uma captura deste que estaria, com sua dor e beleza, escondido
de si mesmo. Captura do outro no eu, comemorando seu nascimento sempre
doloroso, traumático mas efetivo.
POR UMA TEORIA-SUJEITO
A
arte é capaz de descentrar um tanto a psicanálise ao relembrar sua posição de
produto cultural, fruto de uma época e seus destinos. Após alguns exageros
interpretativos por parte do próprio Freud e de alguns de seus seguidores, a
psicanálise retoma uma posição de destaque na reflexão crítica acerca da
cultura, ao mesmo tempo que se deixa questionar e transformar pelo saber acerca
do sujeito transmitido pela arte.
Sabemos
que a psicanálise influenciou de forma marcante a produção artística de seu
tempo, sobretudo com os surrealistas (Rivera, 2002). Em retorno, o surrealismo
marcou as elaborações psicanalíticas de Lacan de uma maneira ainda pouco
reconhecida por boa parte dos lacanianos. Mais do que a crença quase ingênua em
uma surrealidade capaz de unificar o mundo dos sonhos e o da realidade, os
surrealistas contribuem para fragmentar as convenções artísticas de maneira a
recolocar de forma potente a questão do sujeito. Notadamente, a escrita
automática de Breton e Aragon subverte o princípio da autoria em prol do
surgimento da poesia como “acaso objetivo”, encontro fortuito que é emergência fugaz
do sujeito. No domínio da teoria psicanalítica, não seria também necessário um
método semelhante para tentar furar o discurso do eu, em prol de um surgimento
do sujeito em sua potência disruptiva – e perlaborativa? Não seria uma marca do
ensino de Lacan, em seus seminários como em seus escritos, uma tentativa de
operar uma subversão do sujeito no âmbito do próprio pensamento teórico?
Buscar
tornar a teoria fiel ao que realiza uma análise é, sem dúvida, o maior desafio
da teorização psicanalítica. Poderia o pensamento psicanalítico performar o
efeito de sujeito? A teoria não é capaz de substituir nem de longe a
experiência analítica, mas estaria ela condenada a não chegar nem perto desta,
a passar ao largo do essencial, do que efetiva sua prática? A teoria é limitada
e lida sempre, como diz Freud, com analogias. Isso não é assim tão
extraordinário, dá-se o mesmo em outros campos do saber. Mas em psicanálise
“temos que estar constantemente a modificar essas analogias, pois nenhuma delas
nos dura bastante” (Freud, [1926] 1976: 23). Buscando ressuscitar sua “magia”
original (Idem: 214) – suscitar um efeito de sujeito –, a palavra deve aí se
reinventar para não se tornar letra morta. Análise interminável, teoria
interminável – elaboração sem fim, repetida mas minimamente diferente, a que
estamos submetidos, sob o primado das pulsões. Fazer da psicanálise letra viva, capaz de convocar o sujeito
um tanto dolorosamente, intensamente, eficazmente:
tal é a aposta que guia nossa convocação da arte para com ela dialogar.
Trata-se,
portanto, de uma posição metodológica que, partindo do nó freudiano entre
teoria psicanalítica e arte, busca assegurar à elaboração teórica a incitação da
alteridade de um outro campo. O motor da análise, a transferência, não deveria
ser também o princípio impulsionador da elaboração teórica psicanalítica? Com
Outro domínio da produção cultural, pode-se talvez realçar e vivificar este
ponto efêmero onde se traça algo comum à arte e à psicanálise: o efeito de
sujeito.
OBJETOS
Isso
que a psicanálise teoriza e promove, o descentramento do sujeito, a produção
artística o efetua, em seu próprio campo, e mais agudamente (ou com outro
relevo) a partir das décadas de 50-60. De modo que não se trata mais de tomar o
artista em oposição complementar ao espectador, mas de conceber o sujeito como
algo que se produz fugidiamente entre os dois, graças a um certo arranjo
situacional que é sempre um arranjo simbólico. Seja ele um dispositivo, uma
ação, um conceito ou certa presença de um corpo, um objeto ou um lugar, ele
deve estar em medida de convocar o sujeito e reconfigurar suas relações ao
objeto.
No
jogo do Fort-Da do netinho de Freud, essa brincadeira que o menino de 18 meses
inventa fazendo desaparecer um carretel que ele segura por um fio, trata-se do
surgimento do sujeito, na alternância do desaparecimento do objeto e do eu.
Esse jogo mostra a Freud que o menino realiza um grande feito cultural ao
refazer ativamente a partida da mãe. Ao fazer desaparecer o carretel, o menino
pode nomeá-lo, emitindo um “óooo” que seus familiares reconhecem como “fort”,
algo como “longe”, em alemão. E pode, então, convocá-lo de volta,
rejubilando-se com um “aaaa” entendido como “da”, “aí está” (Freud, [1920]
1976). Isso que o menino vivia traumaticamente, ele pode então, ao repeti-lo,
tornar-se dele minimamente senhor – assim como da linguagem. A mãe, tornada
objeto, carretel, pode cair, desaparecer. Mas isso não reafirma o menino em seu
eu. Freud nota, em uma nota de rodapé, que o menino um dia recebe as pessoas
com a surpreendente fala “bebê óooo” (Freud, [1920] 1976: 27, n. 1).
Percebe-se, então, que ele havia encontrado a maneira de se fazer “ir embora”,
desaparecer, ao agachar-se diante de um espelho que não ia até o chão. Ele
joga, portanto, também com sua própria imagem no espelho, fazendo-se
desaparecer, perder de vista – fazendo de seu próprio eu, também, um objeto
perdido. Por um lado, jogar com o objeto de maneira a separar-se dele e, por
outro, distanciar-se da alienação de sua imagem no espelho: é na articulação
entre esses dois atos que se aloja, efemeramente, o grande feito cultural da
criança. Ela não é exatamente o que o espelho lhe mostra: ela está além e
surge, como sujeito, em um lugar incerto e móvel.
O
efeito de sujeito se dá graças a um certo jogo entre eu e o objeto onde um se
apresenta em sua perda para convocar o outro, por sua vez, a cair. O objeto
pode, portanto, materializar-se fortemente, em sua presença, de modo a pôr em
xeque a presença e a localização do sujeito. É graças a essa constatação (não
teórica, mas poética) que Tony Smith um dia manda construir um cubo preto em
aço, de seis pés (aproximadamente 182,4cm) de lado, a que dá o título Die
(“Morra”). Nada além de um cubo. Nenhuma figura onde o homem possa se
reconhecer. Um objeto deste tipo, um ícone do Minimal Art, nega de forma vigorosa
qualquer problemática, digamos, “subjetivista”. Este objeto não deixa ver algo
da vida de Smith, tampouco deixa reconhecer algo das nossas e qualquer figura
ou “sentimento”. Ele nega também a dimensão da fatura, da mestria do artista em
seu fazer. Smith o encomenda passando as medidas por telefone, qualquer um de
nós poderia fazê-lo seguindo rigorosamente suas instruções.
No
entanto, tal objeto de grande dimensão, em sua materialidade exposta ao máximo,
sem fio possível que nos possibilite fazer dele um carretel como o do menino de
Freud, não deixa de carregar um apelo ao sujeito. Seis pés remetem
aproximadamente ao tamanho de um homem. “Seis pés”, afirma o artista, “sugere que
se está morto. Uma caixa de seis pés. Seis pés sob a terra” (citado por Didi Huberman,
1998: 91). O objeto apresenta-se como tal, ele se recusa a estender ao homem um
espelho onde este possa se reconhecer, e com isso ele quase o mata. Há aí um
forte apelo ao sujeito, justamente quando se realiza um desaparecimento do eu –
implicitamente conjugado a uma denúncia de sua finitude.
Esses
objetos “específicos”, como defende Donald Judd ([1965] 2006), um de seus maiores
nomes, negam o homem como seu par, destacando-se da representação mimética.
Eles são quase “entidades” autônomas, não são imagens de nada, mas “puros”
objetos. Eles levam a um ponto radical a alternância entre sujeito e objeto,
apresentando-se quase como senhores de um fio na ponta do qual corremos talvez
o risco de nos tornar meros carretéis. Eles quebram nosso espelho e nos
convidam então a um retorno do sujeito, não mais senhor da representação, mas
radicalmente limitado, subvertido, e tanto mais fortemente presente em sua
radical efemeridade (Rivera, 2007). Após ter sido desalojado de sua “própria
casa”, o sujeito encontra-se convocado a retornar de forma fragmentada,
disseminada em não mais que súbitos efeitos. Tal convocação está ligada ao que
o crítico e teórico da arte americano Hal Foster (1996) chama de “retorno do
real”: uma mudança de concepção “da realidade como efeito da representação para
o real como uma coisa de trauma” (Foster, 1996: 146; tradução nossa).
O
potinho de creme da personagem de Calle já nos mostrou o quanto um pequeno
objeto, quase nada, pode ser o pivô de uma tragédia, levando o sujeito a se
precipitar – cair, perder-se, suicidar-se até. É sobre o fundo de uma terrível
angústia provocada por esta “coisa de trauma” (para falar como Foster) que o
cubo de Smith nos tira o tapete, nos faz quase cair nesse caixão preto, nos
descentra violentamente. Onde estamos? Com esse retorno, esse giro, todo o
espaço ao redor desta escultura passa então a fazer parte da obra, tendo como
ponto agudo, quase doloroso, nossa (falta de) posição em relação a ele. Diante
do cubo de Smith, diz Georges Didi-Huberman, “nosso ver é inquietado”
(Didi-Huberman, 1998: 95), pois somos postos diante do que Mallarmé chama de
“calmo bloco caído de um desastre obscuro” (citado por Didi-Huberman, 1998:
116).
Die é um convite ao deslocamento, ao
descentramento, a uma movimentação do sujeito. “As três dimensões são
principalmente um espaço para mover-se”, já reconhecia Judd em seu fundamental Objetos específicos (Judd, [1965] 2006: 102).
A TEORIA E SEU OUTRO
Mover-se.
Subverter-se. Entrar em movimento entre si e o objeto, sendo tomado então de
uma certa vertigem (a vertigem do carretel). Re-tornar-se: convocação
analítica, convocação artística.
Lacan
refere-se a um “gesto”, como o de passar uma página, que seria capaz de mudar o
sujeito (Lacan, [1967-1968] 2001). Simples gesto sem objetivo, gratuito, que
vem matizar o ato chamado analítico, unidade mínima, essencial, de um processo
analítico, que resultaria no que Lacan chama “efeito de sujeito”. Ora, trata-se
de um “ato cujo trajeto de alguma maneira tem que ser cumprido pelo outro”
(Lacan, sessão de 20/03/1968 do Seminário,
transcrição inédita). O sujeito é efeito de um ato que se dá numa trajetória,
num circuito que necessita do outro, o convoca e só com ele se completa.
E
a teoria teria um circuito só seu, ou é capaz de dar à clínica seu lugar de
Outro fundador? Será a clínica analítica reconhecida em seu lugar de motor da
teoria exatamente da mesma forma que a transferência é motor de análise? Nos
autores pós-freudianos, ou a experiência clínica torna-se duplo da teoria,
capaz de ilustrá-la, ou é, em geral, deixada de lado. Queremos acreditar que
ela esteja sempre presente e, quando não às claras, que esteja implícita em
todo trabalho teórico, como uma espécie de rio subterrâneo que brota na
superfície apenas em alguns lugares, mas está sempre umidificando o terreno.
Mas a clínica opõe à teoria uma resistência, seu caráter, digamos, real, que dificulta a sua presença direta no
texto psicanalítico – e lhe assegura o lugar imprescindível de pedra no caminho
da elaboração teórica, muito mais do que flui do rio a irrigá-la. Recoloca-se
então a questão: o que se passa em uma análise, o que realmente acontece em uma
análise, o que ali se efetua, os pequenos atos e gestos determinantes para que
algo surja revirando o sujeito, isso se deixa transmitir na teoria?
Ora,
como nos diz Lacan, não é do próprio “discurso do inconsciente que iremos
recolher a teoria que dele dê conta” (Lacan, [1967] 2001: 330). Não há ponto
seguro de apreensão do inconsciente, ele não é seu próprio centro, mas remete
ao campo do Outro. Ao dele nos aproximarmos, nos descentramos. Para assegurar a
necessária resistência real e o pulsante enigma que a clínica oferece à teoria,
talvez seja necessário se valer de uma estratégia metodológica, um dispositivo
estruturalmente análogo à transferência na clínica analítica. Podemos trazer novamente
para o diálogo com a teoria um Outro efetivo, ou seja, um outro terreno de atos
(não analíticos, desta vez, mas culturais) que nos obriguem a refazer de forma
vívida a torção do sujeito em seu jogo com o objeto. Propor objetos que estão
entre o sujeito e o Outro e fazê-los cair, recolocando em vertigem o sujeito.
Brincar de Fort-Da com eles. Talvez
somente a arte possa relançar a psicanálise, em ato, à torção, tão efêmera
quanto explosiva, do efeito de sujeito.
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