ARTISTAS
DA FOME
Sérgio
Telles
Freud
diz que nós, forçados que fomos a abandonar a onipotência narcísica, ficamos
fascinados por aqueles que não passaram por isso, como as crianças, as mulheres
muito belas e os grandes felinos, os tigres e leões. Eles são tão
autocentrados, tão satisfeitos consigo mesmos, que não se dão ao trabalho de
nos dar atenção. Eles simplesmente nos ignoram.
Uma fascinação desse tipo ocorre num desfile de moda. Com o semblante fechado, as modelos não riem ou olham para ninguém, parecem estar absorvidas em seus mundos particulares, enclausuradas em redomas indevassáveis. São seres de outra espécie, distantes, inatingíveis. Sua impostada forma de andar e se movimentar, seus gestos estudados, tudo as distanciam das pessoas comuns.
Num
desfile, o narcisismo das modelos é reforçado pelo prazer exibicionista de ser
olhada e admirada pelo público, que, por sua vez, goza de forma voyerista. Mas
não só. Como os desfiles são concorridos acontecimentos sociais, os
espectadores e convidados também estão ali para ver e serem vistos. Narcisismo,
exibicionismo e voyerismo são os elementos constituintes de um bom desfile de
moda.
Os
desfiles ressaltam a carga simbólica que reveste as roupagens, que de há muito
se afastaram da função básica original de nos proteger das intempéries e
passaram a ser indicadores significantes de classe social, poder econômico,
raízes étnicas e culturais, preferências estéticas.
Mais ainda, as roupas se prestam para marcar a diferença
sexual, estimulando o olhar erótico ao mostrar e/ou ocultar determinadas partes
do corpo, essa estranha parte de nós mesmos da qual, apesar de sua
materialidade espessa, visível e mensurável, temos uma apreensão evanescente e
pouco definida. O corpo não é redutível a uma forma orgânica tangível. Ele está
transpassado pela fantasia e pelo desejo e a imagem mental que cada um faz de
seu próprio corpo frequentemente não corresponde a sua realidade física.
Os padrões atuais de beleza – mulheres magras, homens sarados
– obsecam especialmente os adolescentes, que perderam a imagem corporal
infantil em função das mudanças características da idade e estão à procura de
uma nova. As preocupações com a aparência do corpo não se encerram na
adolescência. Continuam pela vida afora, agravadas pelo inevitável envelhecimento
que dá vez às cirurgias estéticas rejuvenescedoras, algumas delas com
resultados desastrosos senão mutiladores.
Muitas vezes ao observar as modelos dos desfiles, constatamos
que apesar de sua beleza extraordinária, elas parecem seres andróginos. A
excessiva magreza anula os volumes dos seios e nádegas, as curvas e
reentrâncias próprias de seu sexo. O gestual duro e mecânico que adotam na
passarela não condiz com a doçura e a sedução tidas como atributos femininos,
dando-lhes um aspecto levemente masculinizado.
Esses seres de sexo indefinido evocam o fim da infância,
quando se tem de fazer o luto pelo corpo infantil e pelas fantasias bissexuais,
assumindo de uma vez por todas as diferenças entre os sexos, com todas suas
complexas consequências.
A magreza e a obesidade podem ser formas defensivas contra as angústias trazidas pela assunção do corpo adulto. Os muito magros e os muito gordos igualmente ocultam as formas próprias de cada sexo, numa tentativa de driblar a castração, passagem momentosa pela qual temos necessariamente de transitar para atingir a nossa identidade sexual.
A magreza e a obesidade podem ser formas defensivas contra as angústias trazidas pela assunção do corpo adulto. Os muito magros e os muito gordos igualmente ocultam as formas próprias de cada sexo, numa tentativa de driblar a castração, passagem momentosa pela qual temos necessariamente de transitar para atingir a nossa identidade sexual.
Comer muito em fartos banquetes ou jejuar piedosamente são
hábitos opostos arraigados em todas as culturas. O primeiro é uma das formas
mais consagradas de festejo entre as pessoas e o segundo é prática religiosa
purificadora, que libera o espírito dos acicates da carne.
Anorexia e obesidade são variações desses hábitos universais,
distúrbios alimentares de larga prevalência na clínica de hoje. O que era
comemoração e congraçamento social se encaminhou para um solitário
empanturrar-se de comida, a elevação espiritual do jejum degradou-se numa
exigência fútil da moda.
Ambos os quadros têm uma vinculação com a mídia. A anorexia,
pela veiculação impositiva de padrões de beleza; a obesidade, pela propaganda
de alimentos poucos saudáveis.
Muito mais decisivo que esses fatores que influenciam a
patologia alimentar, são os mecanismos psíquicos ligados às experiências
primárias com nosso primeiro alimento, o leite materno, e ao mundo fantasmático
que então o envolvia.
Kafka em seu conto “Um artista da fome” mostra aspectos
importantes da dinâmica inconsciente em jogo na alimentação.
Do inicio do século 18 até final do século 19, jejuadores profissionais, que se intitulavam “artistas da fome”, se exibiam em cidades da Europa e América do Norte em turnês muito populares. Os expectadores se divertiam apostando por quanto tempo eles manteriam o jejum ou se o fraudariam, pois muitos eram vistos como farsantes.
O “artista da fome” de Kafka tem características muito
especiais. Ele efetivamente cumpre com seu jejum e jamais tenta enganar o
público. Lamenta quando o tempo determinado se esgota e tem de sair de sua
jaula para retomar a vida normal. Ele se sente incompreendido, pois, ao contrário
do que pensam, o jejuar não lhe era um sacrifício; por desprezar o alimento,
continuaria a jejuar indefinidamente. Com o tempo, aquele tipo de espetáculo
cai em desgraça e o artista da fome, antes renomado e gozando de grande
prestígio, se vê obrigado a trabalhar humildemente num circo. Ao invés de
ocupar o centro do palco como antes, sua jaula é colocada perto dos estábulos e
dos animais. Ninguém mais se interessa por suas façanhas. As pessoas percebem
sua existência apenas porque ele está no trajeto onde ficam as feras que vão
olhar. Em completo ostracismo, um dia um funcionário do circo o encontra num
monte de palha apodrecida no chão de sua jaula, em seus últimos estertores.
Antes de morrer, ele diz para o funcionário que jejuava não por não gostar de
comer, mas por nunca ter encontrado um alimento que o agradasse. Com sua morte,
o lugar que ocupava é substituído pela jaula de uma pantera estuante de vida,
que se alimenta ruidosamente de grandes pedaços de carne, como, de resto, todas
as demais feras do circo.
O artista da fome passou a vida afirmando seu desprezo pelo
alimento. Acreditava poder prescindir da comida e ser capaz de jejuar sem
nenhum limite, como se com isso não colocasse sua vida em risco. Sua arrogância
ocultava a infelicidade de nunca ter encontrado o alimento almejado.
Podemos supor que o alimento desejado e jamais encontrado
tenha alguma relação com o seio materno, o primeiro alimento, aquele que
representa a relação constituinte com a mãe. Ao dizer que nunca encontrou esse
alimento, o artista da fome sinaliza quão insatisfatório foi sua relação com o
seio, seja por dificuldades da mãe, que nunca pode lhe dar de forma adequada e
prazerosa o “alimento” (amor, carinho, cuidados), seja por dificuldades dele
mesmo, pela forma invejosa e voraz, como diria Melanie Klein, com que teria
recebido a oferenda materna. De uma forma ou de outra, o resultado foi uma
grande frustração, desencadeadora de ódios e culpas, condição possivelmente
agravada com o posterior aparecimento do pai.
O artista da fome age como uma criança ressentida com a “crueldade” da mãe que lhe “recusou” a alimentação desejada. Ele se mostra incapaz de elaborar a perda do seio e substituí-lo por seus derivados e substitutos.
O artista da fome age como uma criança ressentida com a “crueldade” da mãe que lhe “recusou” a alimentação desejada. Ele se mostra incapaz de elaborar a perda do seio e substituí-lo por seus derivados e substitutos.
Ao jejuar, o artista da fome veicula vários e contraditórios
sentimentos. Mostra a insatisfação com o alimento oferecido na atualidade, que
é desvalorizado por estar muito aquém daquele perdido, idealizado e
inacessível. Ao recusar a comida, de forma reativa, expressa sua onipotência,
afirmando prescindir do alimento, da mãe. Além disso, controla a voracidade
despertada pelo falta do alimento desejado ao transformar no contrário o desejo
canibalesco de devorar vingativamente tudo a seu redor, especialmente aqueles
que considera como responsáveis por sua fome insaciável.
No conto, esses elementos de agressividade oral são representados pela pantera que o substitui na jaula após sua morte. A pantera jamais esconde seu apetite e seu prazer em comer.
É importante notar que a relação do artista da fome com os
animais antecede o aparecimento da pantera. Desde o início do conto o lugar que
ocupa durante o espetáculo da fome é chamado de “jaula” e com o declínio de sua
arte, quando vai para o circo, sua “jaula” é colocada longe do picadeiro,
próximo dos animais, das bestas e feras. Vemos então que, enquanto ele tem de
inibir completamente o prazer com a comida, as feras podem satisfazê-lo
plenamente – elas comem grandes nacos de carne crua e rugem de satisfação
durante a alimentação.
Essa significativa proximidade com os animais e a atitude
oposta frente à maneira como eles se alimentam denunciam o real motivo de seu
jejum. O artista da fome não pode satisfazer seus desejos orais por temer que
eles desencadeiem uma voracidade canibalesca que a tudo e a todos destruiria,
tendo consequentemente de ser inibida. A melancolia provocada pela introjeção
da agressividade o desvitaliza e o transforma num amontoado de “palha
apodrecida”, o que inicialmente afasta seu público e termina por lhe roubar a
vida.
O conto de Kafka pode ser entendido como uma elaboração
metafórica dos conflitos arcaicos da criança com a mãe. Os sintomas que mais
tarde aparecerão no adulto sob a forma de distúrbios da alimentação, como em
suas duas vertentes extremas de anorexia e obesidade mórbida, são resquícios
desses antigos e decisivos embates.
(*) Artigo publicado no caderno “Aliás” do jornal “O Estado de São Paulo” em 19/04/2015, sob o título “Artistas da fome”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário