Nova
economia do narcisismo
Colette Soler
Não
acreditem que meu título venha do fato de que peguei o vírus da novidade a
qualquer preço, o que caracteriza nossa época. Não é absolutamente o caso, pois
não gosto realmente dessa epidemia. Estou trabalhando sobre esse tema a partir
de duas fontes. Primeiramente, faz muito tempo que tenho impressão de que
aquilo que retivemos do ensino de Lacan, essencialmente antes dos anos 1965,
não permite pensar nem responder às evoluções da época em todos os níveis – dos
costumes, das estruturas sociais, dos instrumentos técnico-científicos. Dito de
outra maneira, acho que os instrumentos teóricos da prática dos analistas não
são atuais neste início de século. Tampouco são atuais quanto a Lacan, pois
como ignorar que ele mesmo operou mudanças de perspectivas consideráveis? Essa
mudança é considerável no que concerne o narcisismo. Primeiro, colocou-o por
conta do imaginário, isso é notório, mas um imaginário subordinado à cadeia do
simbólico. Porém, a partir de 1973, ao longo de suas lições, ele repetiu
continuamente que as três consistências – Imaginário, Simbólico e Real – são
equivalentes e não subordinadas umas às outras, como antes havia afirmado. Pois
bem, concluí que não somente é preciso apreender as razões dessas mudanças, que
não são arbitrárias, mas, sobretudo, é preciso repensar, em todo caso tornar
atual, tudo aquilo que desenvolveu sobre a base dessa primeira tese de um
simbólico relativo à linguagem que ordena e, portanto, subordina tudo o que se
apresenta no imaginário, em primeira posição o lugar do narcisismo e da
consistência imaginária do eu, em contraste com a divisão própria do sujeito do
significante. Observem os esquemas L e R, o texto sobre Schreber e o grafo do
desejo, são límpidos: todos eles desdobram, visualizam e topologizam esse
postulado que, seguindo essas elaborações, chamei anteriormente de “imagem
serva” de um simbólico soberano. De fato, após Função e Campo da Fala e da Linguagem, Lacan (1953/1998) subordinou o imaginário do espelho
ao simbólico da linguagem, assim como o significado é subordinado ao
significante. Em consequência disso, sublinhou que a presença do Outro, grande
Outro, condiciona mesmo o fato de a criança se reconhecer e se amar na sua
imagem. Quando, com o nó borromeano, ele reconsidera e recusa essa
subordinação, quando martela que as três consistências são autônomas e
equivalentes, como não se perguntar o que isso muda no plano clínico e
analítico?
Vejam
o que está em jogo. Antes de qualquer exame, podemos colocar a questão: se o
imaginário não é subordinado ao simbólico, como poderemos continuar a pensar
que o narcisismo do eu seja redutível pelo simbólico e que uma análise, ao
construir o sujeito dividido do significante, reduzirá as pretensões
narcísicas? O desafio analítico é muito importante tanto quanto a concepção que
se faz do homem, que Lacan vai escrever UOM,
a partir de sua hipótese que define a estrutura, não a estrutura da linguagem,
mas a estrutura dita “efeito da linguagem” sobre o ser vivo. O que isso muda?
Primeiramente, na concepção daquilo que está no cerne do imaginário, do qual
Lacan partiu, ou seja, a função do espelho, e, em seguida, no campo das
significações que pertencem ao registro do imaginário ordenado pelo simbólico,
como o significado é subordinado ao significante. O que é um imaginário
autônomo e qual a diferença entre subordinação e enodamento eventual no nó
borromeano?
O que está no jogo do
espelho
O
que está em jogo para Lacan e para o sujeito? Parto do início e da evidência: o
espelho é primeiro. Para marcar as balizas do percurso de Lacan, sublinho
imediatamente que construí essa fórmula a partir do modelo de uma outra que se
encontra na “Conferência sobre Joyce” (LACAN, 1975a/2003): o SKbelo[i]
é primeiro. No ensino de Lacan, não somente o estádio do espelho se situa em
seus antecedentes, mas, além disso, segundo sua tese, ele é igualmente primeiro
para a criança. Ele é mesmo anterior ao sujeito. Vou retomar isso.
Depois
da tese sobre Aimé e sua psicose, O
estádio do espelho (LACAN, 1949/1998) é seu texto principal, jamais colocado em causa, embora
completado e remanejado – deixo de lado o texto sobre a família (LACAN,
1938/2003), um pedido
de Henri Wallon. Ora, chamo a atenção que, no texto do estádio do espelho
faltam duas grandes referências que poderíamos esperar, pois nem Narciso, o
mito, e, sobretudo, nem Freud são evocados. O que será que isso indica? Penso
que isso nos coloca na pista de uma questão implícita que subentende o texto de
Lacan. Não há leitura de um texto teórico, que seja de filosofia ou de
psicanálise, de que não se possa extrair a questão que o texto procura
resolver. Aliás, Sobre o narcisismo: uma introdução, de Freud (1914/1985), assim como o mito de Narciso, vem
resolver a questão do posicionamento da libido erótica, o que chamamos de
investimento dos objetos ou relação de objeto, noção célebre da psicanálise no
início de Lacan. A questão subjacente ao estádio do espelho é um tanto defasada
em relação a essa problemática, sendo mais ampla. Certamente neste estádio, a
imagem se torna o primeiro objeto; então podemos ver aí um estádio da libido,
porém esse amor da imagem é determinado por outra coisa, a saber, a função
identitária: ela é constituinte de um primeiro estrato da identidade. Daí
podemos dizer o que é a questão fundamental, implícita, à qual responde o estádio
do espelho: saber como a criança, que é um pequeno organismo, um pequeno
animal, se torna um humano socializado e socializável. É outra questão distinta
daquela de Freud, que pressupõe a humanidade da criança como dada. Mas era
também a questão dos psicólogos da época, especialmente Wallon, que havia
pedido a Lacan seu artigo sobre a família, pois, no fundo, todos estavam
preocupados com o advento do humano socializado ou socializável propriamente
dito. Daí o interesse apaixonado pelas crianças selvagens. Lacan estava nesse
eixo que era do seu tempo.
Aqui
a identificação é reconhecida como o instrumento primeiro da socialização. O
que será que funda a importância, e até mesmo a necessidade dessa primeira
identificação no pequeno homem? Era preciso que Lacan colocasse essa questão,
visto que a imagem tem aí uma função distinta no animal, que aparentemente não
toca nem à sobrevivência nem à reprodução. Em sua tese mais geral e a mais
conhecida, embora posterior, Lacan responde: a identificação é necessitada pelo
efeito da falta-a-ser do sujeito que a linguagem produz. Mas para a criança que
ainda não usa lalíngua – a linguagem
é isso, o uso da lalíngua – não pode
ser o caso. Lacan vai procurar outra causa e se referir a uma causa real, ou
seja, aos efeitos da prematuração do nascimento no animal humano, com o
despedaçamento das funções vitais que ocorre nos primeiros anos, e que ele
supõe produzir uma experiência de “insuficiência” que a identificação ao Um da
imagem, “ortopédica em sua totalidade” (LACAN, 1949/1998, p. 100), resolveria, antecipando a solução
que só virá de fato pela maturação do sistema nervoso. Para dizer a verdade,
nada indica esse mal-estar na criança, é o contrário. Freud (1914/1985) é mais convincente quando, no
início do texto Sobre o narcisismo: uma introdução, coloca que o que precede a
unidade do eu não é um doloroso sentimento de insuficiência repercutindo a
imaturidade das funções adaptativas, mas um autoerotismo que pode se dizer
feliz, satisfeito, o prazer obtido no próprio corpo, em derivação das funções
vitais, certamente múltiplas, mas cujo despedaçamento não é sinônimo de
mal-estar vital, desde que a demanda do Outro não venha se misturar. A
psicanálise encontra certamente as fantasias e as angústias do corpo
despedaçado, porém em analisantes, adultos ou crianças, cuja unidade do eu já
está estabelecida. Aliás, não vemos como poderia ter aí uma consciência do
despedaçamento sem uma consciência da unidade, pois são relativas uma à outra.
Mais tarde, Lacan não deixou de zombar de sua construção e de brincar de seu
apelo à prematuração, no momento em que colocou em evidência que o verdadeiro
princípio do corpo despedaçado não é a prematuração, mas o significante.
A
identidade pela identificação evidentemente é uma identidade alienada, feita de
um primeiro semblante. Lacan insistiu suficientemente sobre esse traço da
alienação à imagem e da aspiração correspondente de se liberar dessa alienação,
com a esperança que isso fosse possível. Essa esperança surtiu efeitos
devastadores s na psicanálise lacaniana em seu início, encorajada por Lacan ao
construir a oposição entre a enfatuação narcísica do eu e o sujeito dividido do
significante.
Com
essa identificação escópica, notem que o projetor de Lacan é dirigido,
curiosamente, sobre o que há de mais estrangeiro ao inconsciente, ou seja, o
registro daquilo que se vê. Era preciso que Lacan tivesse uma outra questão
insistente para ser assim. Ele especifica que essa imagem é o “limiar do
visível” que abre assim o registro escópico, núcleo de todo parecer. Aqui se
trata de ver, e Lacan não toma de Freud, mas da etologia que estabeleceu o que
não é absolutamente um mito, mas uma função vital, bem real, da imagem
visualmente percebida no animal. Qual será sua função no animal?
Primeiramente,
uma função de transmissão entre as gerações animais de nada menos que o saber
instintual. Esse saber instintual opera em dois planos. Ele é necessário
primeiramente para a sobrevivência – o pinto só cisca quando vê a galinha
ciscar – em seguida intervém naquilo que assegura a reprodução da espécie, que
vai junto com os rituais da parada visual; e o peixinho de rio não se reproduz
sem a imagem da espécie, porém a sua imagem no espelho funciona tão bem quanto
a de um congênere. Para a criança, diferentemente do animal, a imagem não serve
nem à sobrevivência, que é assegurada pelo Outro devido à prematuração; nem ao
sexo, que só vem mais tarde. Sua função é de identificação, fornecendo o núcleo
do amor de si, da libido e da identidade fusionando nessa ocasião com a imagem
do próprio corpo. E isso muito antes de toda problemática sexuada. Ela precede
diacronicamente não a lalíngua, que é um banho de origem, mas a aquisição da
linguagem. Trata-se da criança que ainda não fala, Lacan sublinha esse ponto.
Nada
disso evoca o inconsciente, o que é surpreendente! É somente na sequência desse
estádio do espelho, num segundo tempo, em A
causalidade psíquica, que Lacan (1946/1998) repensa o inconsciente freudiano.
Faz isso a partir da função da imagem, limiar do mundo visível, previamente
verificada de modo experimental pela observação, não pela fala – e a observação
é um outro ponto de amarração no pensamento científico, distinto de Freud, a
amarração experimental – e avança um inconsciente-imago, feito de imago
originárias, aquelas das primeiras relações experimentadas no contexto dos
primeiros anos. Portanto, um inconsciente feito das primeiras marcas sociais,
além de um set de imagens fixas que, em razão de sua fixidez, já são vizinhas
do significante.
Essa
colocação em suspenso da questão do inconsciente se concebe, pois nessa fase do
espelho, o sujeito ainda não fez sua “entrada no real” (LACAN,
1960b/1998, p. 661).
Trata-se de uma fase anterior ao sujeito. A expressão anterior ao sujeito pode
surpreender, pois estamos habituados a dizer, com Lacan, que antes mesmo de
nascer à criança é sujeito para o Outro. Sim, “fazer dele sujeito no dizer de
seus pais” (LACAN, 1972/2003, p. 460), diz Lacan em O aturdito, e é um prejuízo a
priori. Certamente a priori visto
que os efeitos prejudiciais desse dizer são programados antes mesmo de a
criança existir e independentemente do que serão suas próprias características,
especialmente quanto ao sexo, quer seja menino ou menina. Que nasça
hermafrodita para ver, exclama Lacan! No entanto, é preciso fazer a diferença
entre ser sujeito do dizer de Outro e ser sujeito “no real”. Cito: “É preciso
que à necessidade [...] venha somar-se a demanda, para que o sujeito [...] faça
sua entrada no real, enquanto a necessidade transforma-se em pulsão [...]” (LACAN,
1960b/1998, p. 661).
Ele
só entra no real, ou seja, sai do Outro, com a demanda articulada como primeira
forma de um dinamismo libidinal induzido não pela imagem especular do
transitivismo, mas pela linguagem, geradora ao mesmo tempo do sujeito e das
pulsões. O transitivismo é mais uma confusão de imagens do que uma ordem entre
as imagens, e é a linguagem evidentemente que vai infundir retroativamente na
imagem o estatuto de um diferencial próprio ao significante.
Um outro narcisismo
Quais
serão as funções para o sujeito desse narcisismo da imagem tal como percebemos
nessa primeira elaboração? Falaram-me de uma frase muito bonita de Oscar Wilde:
“o amor de si é um amor que dura toda a vida” (WILDE, 1993, p.
239), portanto mais
confiável que os outros. Vale a pena pensar nisso.
A
primeira função que sublinhei é uma função identitária. A criança se reconhece
nessa imagem. Evidentemente, toda função identitária supõe o Um, aqui é o Um da
Gestalt da imagem, precedendo o Um do
significante. Então, o narcisismo, se devemos lhe dar uma definição simples a
partir do mito, é o amor de si mesmo, um si mesmo identificado pela unidade
dessa imagem, independentemente de suas outras características, e especialmente
de sua beleza, só contando sua unidade gestáltica, como acentuou Lacan.
Como
todo amor comporta uma dimensão de idealização, indo até suas variantes de
idealização: a superestimação, a vaidade, a enfatuação. Ele “se acha”, o
pequeno narciso. Às vezes isso beira a loucura; o delírio megalomaníaco é seu
lado derrisório, e cada vez é surpreendente quando se constata, por exemplo, o
quanto a auto-avaliação satisfeita pode até se esconder atrás daquilo que se
apresenta como uma falta de confiança em si, especialmente nas mulheres. Não
vou insistir mais, é um dos motores tragicômicos da vida social, mas quero
sublinhar outra coisa.
Primeiramente,
o narcisismo dessa fase é do amor, não do desejo, nem da pulsão; e a introdução
dessas duas dimensões na experiência vai obrigar Lacan a repensar ou a tornar
complexa essa noção. Marquei a diferença com Freud que, desde o início, situa o
narcisismo no nível de um avatar do desejo sexual e das pulsões. Mas Lacan
disse que, quando se ama, não tem nada a ver com o sexo. Então, no fundo, o
narcisismo do espelho, o amor de sua imagem, é em si mesmo ainda muito
incompleto, pois em cada um existe algo que se prefere à sua imagem.
Disse
que a questão de Lacan, advinda de seu trabalho sobre os psicóticos, era a
socialização da criança. Ora, desde 1949, Lacan faz da identificação narcísica,
paradoxalmente em relação à ideia que fazemos disso, a matriz da primeira
função socializante, não o sublinhamos bastante sobre isso. Ele estabeleceu uma
continuidade entre a imagem do corpo próprio e a imagem do semelhante; isso é
conhecido, e a função que atribui à identificação transferida ao semelhante é
explícita. Vejam nos Escritos (LACAN, 1949/1998, p. 101) – vou resumir as citações: “o
estádio do espelho inaugura, pela identificação com a imago do semelhante [...]
a dialética que desde então liga o eu a situações socialmente elaboradas”, e
evoca em seguida “uma mediatização pelo desejo do outro”, sem maiúscula,
mediatização constituinte dos objetos do desejo. Já estava atribuindo ao
transitivismo narcísico uma função que vai além da contemplação da imagem, e
que inclui aí o desejo mesmo, em todo caso os apetites dos falantes que, numa
só palavra, faz paradoxalmente do narcisismo um dos princípios do social.
Entretanto,
fico espantada com o contraste com o mito que não diz absolutamente a mesma
coisa do que a psicanálise. Com efeito, desde os primeiros passos do mito,
origem do termo, Narciso se situa fora da relação. Conhecemos o núcleo da hystória relatada por Ovídio. No início,
Narciso (1992) é um caçador solitário,
indiferente, totalmente insensível aos charmes das ninfas que sua beleza
cativa, especialmente à ninfa Eco. Poderíamos comentar sobre seu nome que faz
dela um reflexo sonoro e não visual. Então, Narciso é autossuficiente, hoje
diríamos a narcissistic personality,
e Freud diria talvez narcisismo primário, até que Nêmesis, a vingança, o faça
encontrar, para sua infelicidade, seu próprio reflexo na água, sendo desde logo
cativado por ela, tornando-se seu único objeto. Ele entra, então, em relação
com a imagem que dá um golpe em sua autossuficiência, um objeto mortalmente
inacessível. Vejam a inversão.
Por
outro lado, o mito implica que não esperamos pela psicanálise para perceber o
que há de mortífero na imagem, mas, sobretudo, saber que a posição
heterossexual da libido é sujeita a fracassos. Pois, no fundo, o erro de
Narciso no mito é sua não relação com o outro sexo e não com o semelhante, que
não é sexuado. O mito, com esse encontro da imagem do corpo próprio, ilustra o
que posso chamar de uma espécie de maldição da imagem, ou, mais ainda, uma
maldição da relação. Para Narciso, essa imagem libidinalizada se substitui à
presa que até então era sua causa, até mesmo o objeto de seu desejo de caçador,
desejo separador que o subtraía da libido heterossexual, o colocava ao abrigo
de outra maldição, aquela do sexo. O estádio do espelho de Lacan substitui em
parte essa dimensão da maldição da imagem, mas de outro lado positiva sua
função socializante de relação ao semelhante. Essa defasagem tem relação com as
ameaças que pesavam nos laços sociais na época de Lacan, bem diferente da época
da pólis grega.
Hoje,
o narcisismo da imagem tomou uma dimensão inimaginável, e inimaginavelmente
ativa em relação ao passado recente. Assistimos a uma verdadeira cultura da
imagem, pensem na prática do selfie (temos
o espelho no bolso) e todas as técnicas atuais de fabricação dos corpos
imaginários, primeiramente com as normas em uso da silhueta, com a indústria da
moda que o recobre, a cirurgia estética que o transforma, mas também a nutrição
que lhe dá volume. Sem esquecer as práticas de marcação do corpo de objetivo
distintivo, que vão das tatuagens até o body
art. Não se pode parar de enumerar, com os novos poderes de manipulação da
imagem graças à técnica, o valor novo que o sujeito hoje confere à sua imagem
tomada como um índice de identidade. Uma identidade que se mostra, que se
oferece a ser vista, à margem do que não se pode ver do sujeito. Os
psicanalistas que lidam com sujeitos que falam e não se mostram têm tendência a
denunciar esses novos fatos da civilização. No entanto, é preciso não esquecer
que, desde sempre, os paradoxos da identidade encontraram seu motor essencial
na disjunção entre o ser real e o parecer, o parecer que se desdobra entre
parecer da imagem, o parecer fotográfico de certa maneira, e o que aparece de
não fotográfico na significação pela via simbólica, ou seja, os ideais do eu de
Freud e do Outro maiúsculo de Lacan, grande I do Grande A –I(A) – que decidem,
entre outras coisas, do valor das imagens. Vejam o grafo do desejo. Essa
disjunção do real e do parecer não é uma descoberta da psicanálise, nem tampouco
alienação dos indivíduos no parecer. “Eu é um outro”, fórmula conhecida
anteriormente. E não será um grande tema do analisante? De um lado, se
interroga para detectar como é visto, o que “acham dele”, e de outro lado
protesta “não sou o que você pensa – aqui tomo emprestado do discurso comum a
pequena história daquela que acham que é uma coquete e que se insurge,
desmentindo isso, mas de outro lado se esforça em coincidir com a imagem ideal
que, no entanto, lhe dá o sentimento de ser despossuída de si mesma.
Assim,
não há somente o que se vê, mas aquilo que não se vê, ou seja, como o outro me
vê. Sublinhei o fato de que Lacan utiliza, em 1960, a expressão “narcisismo do
desejo” (LACAN,
1960a/1998, p. 742),
distinto do “narcisismo do ego”, que é seu protótipo, diz Lacan em Diretrizes para um congresso sobre a
sexualidade feminina. O que é “narcisismo do desejo”? É um narcisismo que,
como aquele do ego, tem uma função identitária. Eis porque esse último é o
protótipo. Mas, com o desejo introduzimos o registro do sexo onde justamente
falta o que faria a identidade homem-mulher. Lacan introduz esse narcisismo do
desejo num parágrafo sobre as mulheres, onde coloca que, o que determina a
frigidez é a identificação ao “padrão fálico”. Isso consiste em erigir ao nível
do parecer o significado do falo, que de natureza é recalcado, e cujo recalque
tem como efeito de projetar todas as manifestações do sexo no parecer. Não é o
parecer da simples imagem escópica, do selfie,
é o parecer da ostentação e da mascarada, todo o jogo da comédia dos sexos,
para convocar no parecer aquilo que não se vê. O que faz aqui unidade
identificadora no final não é a imagem, mas um significante, o falo,
significante da falta e com ele um imaginário ampliado até incluir, além da
forma do corpo, o conjunto das significações do sexo no discurso. Logo, o
espelho não é mais simplesmente uma superfície física própria a devolver um
reflexo visual, como me expressei faz tempo, é um “ espelho falante”. Aquele
que Lacan figura em seu esquema ótico. “Espelho, diga-me se sou a mais bela?” Portanto, é um espelho suposto saber.
Certamente suposto saber o que escapa à minha vista, e mais amplamente, o que
escapa a toda vista possível e que não pertence ao registro da visão, mas de
saber como o Outro me olha, ou seja, “o que sou para ele?” Aqui se abre um
outro capítulo da infelicidade de Narciso: aquela de sua não suficiência.
As infelicidades de
Narciso
Narciso
está longe de ser autossuficiente, está à mercê do espelho, sob o duplo aspecto
que já disse. Nos dois níveis, o da imagem que se mostra e do desejo que não se
vê, não se enuncia, mas que aparece bem, pois ele se escuta na fala e se
percebe na ação. O espelho é o Outro que se torna presente pelos outros, e
paradoxalmente coloca o pequeno Narciso do estádio do espelho à mercê do
desconhecido, pois subordina a relação à imagem primária, à relação ao Outro
barrado, que Santo Agostinho, na sua famosa frase, já tinha tomado a dimensão.
Então, seria preciso abrir o capítulo das infelicidades de Narciso que, desde
já alienado a uma imagem que não é ele, além disso é encadeado a um olhar
heterotópico – bem longe de ser autossuficiente. Esse olhar pode estar em todo
lugar e em nenhum lugar, pois o que seria uma imagem que ninguém veria ou uma
significação que não seria de ninguém? Não é surpreendente que um Deus foi
inventado que vê tudo, as imagens e para além de sua significação e de seu
sentido. Não é
surpreendente também que, às vezes, se sonhe com o contrário, o manto de
invisibilidade, fantasia, sem dúvida, propícia ao voyeur e outras astúcias da perversidade, mas propícia
primeiramente à subtração que o liberaria. Não é surpreendente, enfim, que se
batalhe, que se esforce tanto para se assegurar da possessão de uma imagem que
não depende de mim, pois seu valor vem do Outro e do qual posso ser
despossuído, e que, no entanto, produz a paixão, entre outras a inveja e o
ciúme. Por fim, não é surpreendente, e mais essencial, que se aspire ao que
permitiria uma separação. Toda a questão é saber se há um narcisismo de
separação possível e qual seria seu instrumento se não é a imagem, nem o
desejo, pois estes se sujeitam ao outro, sem maiúscula, ou ao Outro, com
maiúscula.
Narciso e os outros
Com
efeito, qual seria a relação ao semelhante que o narcisismo preside, do qual
sublinhei que é a matéria-prima do social? Que relação preside em sua aspiração
a, digamos “se fazer belo?” Belo para o olho de qualquer outro, sem maiúscula.
É a tática do “você me viu?” Essa fórmula com dois pronomes pessoais, que Lacan
apreciava tanto, inclui a necessária dimensão relacional do narcisismo e indica
bem a dependência de Narciso. Neste aspecto, o selfie é notável. O sujeito se acha bem interessante para se mirar
num verdadeiro espelho, mas em seguida é preciso enviar o selfie a alguns outros para se mirar no olho desses outros. Numa
ilha deserta, o selfie não teria
nenhuma utilidade, podemos pressentir, e é por isso que não dizemos “não
esqueça do espelho”, mas se pergunta “que livro levaria para a ilha?”, porque o
espelho do Outro é um espelho verbal que não exige a presença do corpo. Não há
Narciso fora de uma relação de sedução em todo caso. O personagem do sedutor ou
da sedutora não tem boa reputação, mas é porque confundimos com o infiel, Don
Juan, ou a provocante. Apesar disso, a sedução é uma forma de demanda, e o
analisante não escapa disso, muito pelo contrário, na sua fala transferencial
só faz “manobrar” o espelho do Outro para parecer amável e, por conseguinte, se
achar amável. O que será melhor do que a experiência da transferência para se
assegurar que o amor de si se sustenta do amor recebido do Outro?
Por
conseguinte, o outro lado da relação aos outros é a competição. “Espelho
diga-me se sou a mais bela”, pois não basta ser bela, mas a mais bela. Isso é
próprio das mulheres. Nesse nível as paixões primárias se inflamam, a inveja
enfurece de receber menos, ainda Santo Agostinho, o ciúme fulmina e lamenta de
ser excluído de um laço de amor, real ou suposto, a rivalidade combate com a
vontade de vencer. Acho bastante inútil ridicularizar e deplorar essas paixões
malvadas, basta a religião cristã, para isso não precisa da psicanálise. Por
outro lado, não deveríamos esquecer que a forma mais eminente de competição é a
emulação na qual a afirmação de si é menos destruidora do outro que produtora,
pois podem brotar obras da civilização, essas produções que tanto encantavam
Freud rebatizando essa fecundidade do termo de sublimação. Lacan, no final de
seu ensino, acabou aceitando essa sublimação e com uma palavra: escabelo.
Um outro narcisismo
O
escabelo redefine o narcisismo, é o instrumento de um narcisismo ativo,
combatente e produtor; portanto, é mais do que o amor de si, é a afirmação de
si, eventualmente pela via da oferta à civilização. No nível da experiência, o
escabelo é aquilo com que cada um tenta se fazer valer para seduzir o olho do
outro. Que a imagem seja o primeiro veículo dessa identificação narcísica
indica uma prevalência do visível para o humano, a questão é saber até onde ela
se iguala à prevalência do sonoro da linguagem. Na diacronia das ditas fases do
desenvolvimento nos habituamos a ordenar os registros pulsionais, que aparecem
ao mesmo tempo em que o sujeito no real, começando pelo oral e o anal, que
correspondem aos dois objetos da demanda do Outro; e em seguida o olhar e a
voz, objetos do desejo do Outro, cuja presença faz signo. Mas, no fundo, voz e
olhar estão desde a origem; eles não seguem diacronicamente a nutrição e a
educação dos esfíncteres. A criança é envolvida neles desde o nascimento, pois
falamos com ele, olhamos para ele desde o primeiro momento da vida do
recém-nascido.
Essa
preeminência do escópico avançada no espelho foi como velada pelo alargamento
da categoria do imaginário. A partir de A
instância da letra, Lacan (1957/1998) identifica o imaginário ao
significado da cadeia da linguagem, o que faz com que dependa fundamentalmente
de outra coisa do que do visível, isso faz com que dependa do significante e,
por consequência, a função da imagem especular foi eclipsada pelo campo do significado,
pela significação e pelo sentido. Mas, até onde o olho que vê, portanto, o
visível, depende do significante? A imagem do espelho, que se situa antes do
sujeito, é o limiar do mundo visível, dizia Lacan em seu texto de 1949. A
incidência própria do visível ficou como uma questão na expectativa com a
promoção por Lacan de um imaginário homologado ao significado da cadeia
significante. É esse imaginário que é subordinado à cadeia do significante,
assim como a significação do falo, significante da falta, era colocado nessa
primeira construção como subordinado ao significante do pai. Mas a questão é
recolocada quando Lacan afirma que o imaginário não é subordinado. Vou voltar a
isso.
O
primeiro instrumento do escabelo é a imagem visível, mas os instrumentos são
múltiplos. Além da imagem ajeitada da qual falei, são também todas as
performances de exceção em todos os domínios da cultura, a começar pela
agricultura, mas também a ciência, os jogos esportivos e certamente a arte.
Demonstração eminente de Joyce, mas se ele é uma exceção, não é porque
conseguiu se fazer um escabelo, mas pela maneira como o fez, como estabeleci em
meu livro Lacan, leitor de Joyce (2015). O escabelo é próprio do falasser e ele “é primeiro”, segundo
Lacan, já falei sobre isso. Ele retoma o narcisismo do espelho, mas acrescenta
esse outro narcisismo da invenção. O escabelo é o espelho repensado e
completado com o narcisismo do desejo, ou mesmo do gozo.
Se
vocês têm dúvidas, retomem o trabalho sobre as duas primeiras páginas da 2ª
conferência Joyce, o Sintoma (1975a/2003), a partir do seminário O sinthoma (1975-
76/2007). Digo retomar
o trabalho, pois isso se lê não somente palavra por palavra, mas fonema por
fonema, e cada um desses fonemas sendo escritos neologicamente, mostra que é a
letra gráfica que decide do sentido a dar ao som, como se mostra nas diversas
escritas da palavra escabelo. Com escabelo, mesmo se não falam francês, vocês
escutam três sons, três fonemas que não têm sentido em nossas línguas e,
conforme a escrita, o sentido muda. Em Hescabelo (Hessecabeau), a letra h é muda, não se escuta, porém, evoca o h de
homem, enquanto os “s” evocam o verbo ser. Ou ainda, SKbelo (SKbeau) com duas letras alfabéticas,
fora do sentido em nossas línguas. Falta só um equívoco gráfico, vejam isso,
aquele que jogaria sobre a escrita do som “beau”[ii]
que poderia se escrever simplesmente com duas letras alfabéticas – b-a-bá, se
aprende na escola – b, o, bo, fora do sentido. Essa omissão indica que Lacan quis
guardar a referência ao lado escópico que comporta a escrita b,e,a,u, beau
(b,e,l,o, belo) para designar a bela forma do espelho de onde partiu vinte anos
antes, aquela que o homem adora, como ele diz, e é explícito quando escreve
Helessecrêbelo (hissecroibeau), em
que escutamos ressoar o narcisismo da imagem. Mas a escrita Helessecrêbelo (hissecroibeau) acrescenta outra coisa.
Ela injeta o verbo hisser –“oh hisse”,
se diz em francês para significar o esforço que é preciso para elevar sua
imagem ou seu nome de alguns degraus. Não se poderia dizer melhor a face
laboriosa do narcisismo que, longe de somente se contemplar, deve se esforçar e
não se contentar com as imagens, mas se fazer produtor em alguma coisa. Lacan
explicita: “UOM seumaniza à larga” (LACAN, 1975a/2003, p.
560).[iii] Seumanizar (se lomelliser) é neológico, não existe em francês, mas diz que o
homem, para ser homem, deve trabalhar a “se fazer” homem. Por que isso? Com
efeito, não se sabe se no reino animal existe algum equivalente que, para ser
tigre, por exemplo, precise se “tigrilizar”. UOM deve se seumanizar (se lomelliser) porque ele vive do ser (=
esvazia o ser).[iv]
Eis um tema do início que retorna, constante: é a fala que introduz a questão
do ser e que, no mesmo movimento, cava nele uma falta. É este efeito da fala
que condiciona a necessidade do escabelo, o fato de colocar a questão do ser
para o falante. O escabelo, portanto, é próprio do homem, e não uma
característica somente de alguns; e ele é primeiro, começando com o espelho,
mas indo para além até a promoção do nome. O escabelo é para todos, mas, apesar
disso, todos os escabelos não valem a mesma coisa do ponto de vista da
socialização. Tudo depende dos meios e dos produtos.
Existem
figuras do antiescabelo. Aquele que renunciou, por princípio ou por acidente;
aquele que desistiu, que renunciou a se sehumanizar (se homelliser). É preciso ver em cada caso, o que muitas vezes pode
ser enganador. A prova disso temos na megalomania melancólica: o sujeito grita
bem forte que não vale nada, mas também bem forte que ninguém se iguala a ele
nesse aspecto. Ele seumaniza (se
lomellise) de sua nulidade inigualável que não pode se confundir com os
afetos da falta de autoestima, como se diz. A falta de autoestima não tem mais
poder causal do que a maioria dos afetos, isso é patente; especialmente nas
mulheres, que muitas vezes atestam desse afeto de insuficiência e do sentimento
de falta, ou mesmo de impotência, ainda mais quando são engajadas na competição
fálica, outro nome da competição narcísica. Mas, enquanto isso, constatamos que
não deixam a mesa do jogo, e mesmo ganham a aposta – embora tremendo, nos
asseguram disso muitas vezes. Aqui, acreditamos nelas pela metade, pois é uma
meia-verdade já que a Verdade só pode se meio-dizer.
Os três narcisismos
No
que diz respeito aos meios que evoquei, depois do narcisismo da imagem e o
narcisismo do desejo, existe também o do gozo. Isso faz três. Lacan introduziu
o narcisismo do desejo a propósito da relação entre os sexos, como aquilo que
permite, no fundo, de “se crer” homem ou mulher, e isso passa pelo modo de
relação ao falo que evidentemente supõe a fala. Podemos ampliar sua definição.
O narcisismo do desejo consiste em se identificar aquilo que empurra você na
vida, geralmente sem saber o que empurra, é isso o desejo. Sua forma mais
notável é “não ceder sobre seu desejo”, ou seja, ficar firme sobre seu ser de
desejo, também opaco, mesmo que seja desviante. Vejam a ironia da história dos
analistas, pois é justamente o que idealizamos como o contrário do narcisismo
depois do seminário A ética da
psicanálise (LACAN, 1959-60/2008). Ora, Antígona, que não cede, é o
narcisismo do sujeito, outra maneira de dizer aquele do desejo, e de fato, no
que concerne de se fazer um escabelo na memória dos homens, ela conseguiu,
pagando o preço de sacrificar todos os atrativos da vida. E depois desse seminário,
com Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise (LACAN, 1964/1985), idealizamos “a diferença absoluta”
do fim de análise. Mas a diferença absoluta é o absoluto da afirmação de si e
sancionada pelo desejo do outro, o analista. Em resumo, depois disso tudo,
continuar a dizer ou a deixar entender que uma análise, de uma maneira ou de
outra, devia promover um para além da aspiração a fazer valer seu próprio ser,
definição ampliada que retenho para o narcisismo, fazer valer seu próprio ser,
é consequência de uma denegação coletiva impressionante, signo, sem dúvida, da
recusa de saber, o que Lacan diagnosticou nos analistas (LACAN,
1975b/2003).
Quando
Lacan, continuando seu avanço, evocou a “identificação ao sintoma”, em que se
trata de gozo, além de acrescentar que é um tanto sucinto, quando falou das unaridades disparatadas, houve, eu não
diria um despertar, mas ao menos uma inquietude nos analistas especificamente
quanto à ordem social e às relações aos outros. Com efeito, esse passo introduz
uma radicalização.
Até
aqui podíamos desconhecer a ameaça que o narcisismo faz pesar sobre o laço
social, pois o desejo, sendo desejo do outro, o narcisismo do desejo não era
tão associal assim. Com o narcisismo do gozo, que consiste em não ceder sobre a
afirmação de sua modalidade de gozo e a se identificar, ou seja, não ceder
sobre a preferência que cada um tem à sua própria; pois bem, as coisas mudam,
pois o gozo, contrariamente ao desejo, não é determinado pelo Outro, o lugar da
linguagem, mas pelos acidentes da conjunção entre lalíngua e o corpo. Eu, pessoalmente, já insisti bastante sobre
esse ponto. Então, vem a questão: o que pensar do poder analítico da fala de
verdade, sempre meia-dita sobre as fixões de gozo? O que pensar dos sujeitos produzidos
pela análise que chegou ao fim? Não poderiam esses sujeitos identificados ao
seu gozo ser uns sobre-narcisos, dessa vez tão autossuficientes quanto Narciso
antes de encontrar sua imagem? E o que pensar do laço social, pois o gozo não
enlaça?
Seria
esquecer que a autossuficiência é impossível a quem fala como tal; ora, mesmo o
narcisismo do escabelo vem da fala. O resultado é que não há meio de se
seumanizar (se lomelliser) sozinho.
Foi o que comecei a falar em Medellín. Certamente o gozo depende do “Existe o
UM”, mas desde que o escabelo é primeiro e inevitável, precisa de uma corte
como a do rei Sol. Não há meio de se fazer um escabelo sem o outro. O “você me
viu?” se dá a ver, é o paradigma do laço internarcísico, mas existem outros
modos, como sabemos, pois Joyce é mais “você me leu?”. Então, esses modos têm
que ser estudados em cada caso, para as pequenas vidas minúsculas que também
têm seu escabelo, assim como para os mais preeminentes. Tudo isso para dizer
que a questão dos laços sociais, para além do declínio dos discursos que
hierarquizam, está aberta. Esse é o primeiro ponto. Essa revisão supõe que
cessemos de opor pulsões e narcisismo, como geralmente se faz, considerando que
as pulsões buscam algo do lado do outro, sem maiúscula, enquanto o narcisismo
não sairia de seu perímetro imaginário. O escabelo é mais do que a construção
da imagem de si, não é simplesmente a estátua erigida que Lacan evocava no seu
início; ele não é dado antecipadamente, é preciso se fazê-lo. Como o “se fazer”
da pulsão, fórmula de Lacan para a definição da pulsão, poderia contribuir à
ereção do escabelo, é evidentemente uma questão. Se, como disse Lacan, LOM faz
pagar um dízimo ao outro, é porque sai do perímetro de sua imagem escópica, e,
se vocês me seguiram, as pulsões devem ser incluídas nesse narcisismo ampliado,
tanto quanto elas são no amor em geral e em todas as relações de objeto. “Em ti
mais do que ti”, dizia no fim do Seminário
11 (LACAN,
1964/1985). Pois bem,
com o narcisismo do escabelo é preciso acrescentar “em mim mais do que mim”.
Dito de outra maneira, é um narcisismo que deve contar com o objeto a, o invisível como eu o chamo, que
falta a todo gozo. A imagem é primeira, mas para o falante ela é casulo,
envelope do objeto subtraído, e isso se aplica à imagem de si tanto quanto à do
outro.
Fica
a questão da autonomia do imaginário. Avançando com o nó borromeano, ela engaja
a autonomia do visível, pois a imagem escópica é seu núcleo. O que será que faz
Lacan recusar a subordinação do imaginário ao simbólico? É sua redefinição do
simbólico, digamos do inconsciente, que é explícita “contrariamente ao que
disse”, o inconsciente não é uma cadeia significante. Ele é uma série, e não
uma cadeia, mas uma série numérica, uma série de significantes que são igualmente
unidades numéricas, cada uma solidária do objeto a que falta. Essa mudança da
definição se deve a Lacan que, se interrogando para além da cadeia da fala
sobre a relação do sujeito ao significante (sujeito que entrou no real),
produziu a fórmula sempre repetida, o significante é o que “representa o
sujeito para um outro significante”. Pois bem, o inconsciente são os
significantes que não representam o sujeito, que vêm da lalíngua e que afetam
seu corpo. São elaborações de De um Outro
ao outro (LACAN, 1968-69/2008) e de textos periféricos em que formula o inconsciente
é um “saber sem sujeito”. Estou lembrando sucintamente essa guinada para
indicar que ele funda a mudança de afirmação sobre a ideia antiga de uma
subordinação do imaginário à cadeia e que recoloca a questão do peso da imagem
nela mesma.
Deixei
a questão em suspenso, mas acho que já estava presente para Lacan. Tenho como
prova os desenvolvimentos de 1964 sobre o olho e o olhar no Seminário 11 (LACAN,
1964/1985) na ocasião
da morte de Merleau Ponty. Ele a elabora de uma maneira nova, e quando nota que
somos todos seres olhados, que o mundo é oni-voyeur
(omni voyeur),[v]
não é para afirmar uma paranoia generalizada, mas uma prevalência específica do
registro do visível e abrir a questão de sua relação com a divisão do sujeito.
Mas
além do seminário O sinthoma,
curiosamente Lacan (1975-76/2007) retoma a questão: porque o homem é tão enfatuado de
sua imagem? Digo curiosamente, pois poderíamos pensar que tinha a resposta. Ele
deu duas, como disse, a da prematuração, e depois a da divisão do sujeito, do
objeto que falta à completude que a imagem recobre. Que retome a questão me
leva a pensar que essas respostas não lhe pareciam suficientes. Esse ponto
importa, pois algo está em jogo: aquele da avaliação das variantes do escabelo.
Tradução: Maria Vitoria Bittencourt
Referências
bibliográficas
FREUD, S. (1914) Introducción del
narcisismo. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu,
1985. v. 14.
LACAN, J. (1938) Os complexos familiares na
formação do indivíduo. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2003.
----------- . (1946) Formulações sobre a
causalidade psíquica. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
----------- . (1949) O estádio do espelho
como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1998.
----------- . (1953) Função e campo da fala
e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1998.
-----------. (1957) A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1998.
----------- . (1958) A direção do
tratamento e os princípios de seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1998.
----------- . (1959-60) O seminário, livro
7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
----------- . (1960a) Diretrizes para um
Congresso sobre a sexualidade feminina. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1998.
----------- . (1960b) Observação sobre o
relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade. In:
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
----------- . (1964) O seminário, livro 11:
os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1985.
----------- . (1968-69) O seminário, livro
16: de um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
----------- . (1972) O aturdito. In: Outros
escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. . (1975a) Joyce, o Sintoma.
In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
---------- . (1975b) Introdução à edição
alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: Outros escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003.
----------- . (1975-76) O seminário, livro
23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
OVÍDIO. Les métamorphoses. Paris: Gallimard,
1992.
SOLER, C. Lacan, lecteur de Joyce. Paris:
PUF, 2015.
WILDE, O. Collected works of Oscar Wilde.
London: Routledge, 1993.
[i] No
original, SKbeau, jogo de palavra com o termo escabeau, que é traduzido por
escabelo em português. Cf. Joyce, o Sintoma. In: Outros escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 560.
[ii] Em
francês beau (belo) tem o som /Bo/.
[iii] Em
francês : “LOM se lomellise à qui mieux mieux”
[iv] Aqui,
trata-se de um jogo de palavras que têm o mesmo som: vit de l’être (vive o
ser)e vide l’être (esvazia o ser). (N. do T.)
[v] Oni
é um prefixo latino que significa todo.
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