O MURMÚRIO DAS COISAS
O poema-coisa em Rilke e a soberania perdida do mundo
(Para aqueles que ainda sabem escutar o que não é dito)
Há momentos na história em que a linguagem se desfaz. Não por excesso de ruído apenas, mas por uma espécie de deslealdade ontológica: ela já não corresponde ao mundo. Os signos multiplicam-se, inflacionam-se, tornam-se máscaras ocas. O mundo, então, recua. As coisas calam. Ou, pior: falam em nossa linguagem, e por isso mesmo perdem a sua.
Rainer Maria Rilke compreendeu esse exílio do real com um pressentimento raro. Seus poemas-coisa não são objetos poéticos. São, ao contrário, testemunhos da tentativa de devolver às coisas a sua voz — não uma voz humana, não uma voz lírica, mas um murmúrio denso, impessoal, que sobe da matéria quando o sujeito se cala.
Sob o olhar de Rodin — escultor de presenças e não de formas —, Rilke desvia-se do simbolismo para uma poética da escuta. Deixa de usar as palavras como espelhos da alma para fazer delas vasos: recipientes onde o objeto se instala e fala. A esse gesto, que parece quase anti-poético, ele deu o nome de Ding-Gedicht, o poema-coisa. Um poema que não descreve, não representa, não interpreta — mas que, como uma pedra, se impõe.
Heidegger reconheceu nesse gesto o que talvez seja a última chance da linguagem. Quando o ser recua, quando o ser abandona a palavra, é a poesia — e somente ela — que pode tentar trazê-lo de volta. Mas não por meio de conceitos ou retóricas, e sim abrindo um espaço onde as coisas possam simplesmente ser. O poema, nesse sentido, não fala: acolhe.
Peter Sloterdijk lê o verso final do Torso arcaico de Apolo como um imperativo de transformação antropológica, recorda-nos que não é apenas a vida que deve mudar — é o modo como escutamos o que nos chama à mudança. A voz que ordena não vem do alto, nem de uma instância moral. Vem do objeto mutilado, do que perdeu o rosto, mas permanece em pé. Vem do silêncio que resiste ao tempo.
A escuta, no entanto, não se reduz à audição literal. Jean-Luc Nancy, em um livro breve e inesquecível, lembra que escutar é ser afetado por aquilo que ressoa em nós antes de podermos nomeá-lo. A escuta é vibração, é abertura de sentido que não passa pela significação plena. Ouvir o mundo, ouvir o outro, ouvir a linguagem que falha — tudo isso exige um corpo poroso, disponível ao impacto de uma presença que não se oferece à decifração, mas que insiste.
A psicanálise talvez não esteja longe disso. Quando Lacan nos fala do objeto a, do real que insiste por fora do simbólico, ele aponta também para uma linguagem que falha — mas cuja falha indica. Na clínica, quando escutamos o silêncio do paciente, o tropeço, o não-dito, estamos diante daquilo que fala em ausência. E esse é, talvez, o gesto mais próximo da poesia: deixar o objeto falar por sua própria falta.
Há um momento em que Rilke, diante do torso arcaico de Apolo, escreve: “Precisas mudar de vida.”
Não é uma alegoria. É o objeto que diz. A pedra que ordena. A forma mutilada que, mesmo sem olhos, nos vê.
Essa ordem — silenciosa, mas imperiosa — é a que atravessa toda a arte, todo verdadeiro pensamento, toda escuta psicanalítica: mude a sua vida. Não porque a arte ou a teoria saibam mais. Mas porque, ao contrário, sabem calar-se diante do que nos excede.
É possível que ainda tenhamos tempo para escutar. Mas será necessário reaprender a ouvir o murmúrio das coisas.
Referências:
Rainer Maria Rilke
• Elegias de Duíno
• Os Sonetos a Orfeu
Martin Heidegger
• A origem da obra de arte
• Poeticamente habita o homem. Curto ensaio sobre o poeta como aquele que escuta o ser e dá morada ao inapreensível.
Peter Sloterdijk
• Has de cambiar tu vida (Du mußt dein Leben ändern)
Jacques Lacan
• Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
• Escritos – “O significante do Outro”
Jean-Luc Nancy
• À escuta (À l’écoute)
Maria Holthausen
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