Como vocês sabem, os objetos são geralmente qualificados de acordo com sua utilidade. Eles servem para algo. Uma caneta, por exemplo, serve para escrever. A caneta é uma condição para nossa escrita: não é sua causa, que está em nós, mas um instrumento. Uma caneta não pressupõe a inspiração para o texto que escreve, nem precisa saber o que vai escrever (a menos que alguém, como Edgar Alan Poe, por exemplo, nos conte a história de uma caneta que escreve sozinha). Mas isto não impede que deixe uma marca sobre uma superfície de papel, que interpretamos como escrita. Para dizê-lo bem resumidamente, os objetos servem para alguma necessidade do corpo, do corpo de um sujeito, já que um objeto sempre supõe um sujeito: nossas roupas servem para abrigar os nossos corpos, os sapatos nos protegem da dureza do chão, canetas servem para escrever, etc. É o que pensamos..., quando não pensamos muito.
A utilidade é, pois, uma das condições para o encontro entre um corpo e um objeto. Muitas vezes a utilidade até determina a forma do objeto. Através do design, por exemplo, podemos tornar compatível a forma com a utilidade. O design, como sabem, não se restringe a isso, embora seja também isso, ou seja, uma maneira de juntar a forma que um objeto deve ter com sua finalidade prática.
Em princípio, um sapato deve ter uma forma oposta à do pé, de tal modo que possa servir de continente para o pé, que se tornará conteúdo. Um pé calçado é uma unidade, formada por um continente e o seu conteúdo. Isso pode dar impressão de que há complementaridade entre os corpos e os objetos que se acrescentam aos corpos. Efetivamente, se permanecemos no plano da utilidade, parece possível pensar em termos de complementaridade. Um conteúdo somente pode ser visto como conteúdo se encontrou o continente adequado: se temos um pé de número 40, não podemos usar um sapato de número 39. A dor que sentiremos indicará que há um gap, uma distância entre o conteúdo e o continente. A dor é o aspecto sensitivo desse gap. Como Freud costumava dizer referindo-se à angústia, a dor servirá como um sinal. Ela nos mostrará que há algo que excede o encontro entre o corpo e o objeto. Há algo a mais. Já não estamos no terreno da relação complementar, mas no plano dos suplementos. A dor é o sinal do caráter suplementar do encontro entre o orpo e o objeto: se antes havia o pé e o sapato, temos agora também a dor, que não pertence propriamente nem ao pé nem ao sapato.
Porém, não é apenas a dor que se situa no terreno do suplemento: também os prazeres, sobretudo certos prazeres que escapam às necessidades imediatas do corpo, e que não podemos considerar facilmente como funcionais. Podemos pensar no prazer do sexo, que não tem um objeto preciso, e no chamado prazer estético, que se espera de nossos encontros com o belo. O que excede ao complemento excede igualmente à função, à necessidade e à utilidade.
Algo mais...
Tomemos como ilustração um quadro famoso de Van Gogh, conhecido de todos e comentado por vários pensadores e teóricos, por exemplo, Heidegger em seu artigo “A origem da obra de arte”. O quadro representa o par de sapatos de uma camponesa. São sapatos usados, têm as marcas do uso, quer dizer, nos mostram que há um sujeito que, aliás, não aparece no quadro, que usou ou está talvez usando os sapatos. A cena se situa num intervalo entre dois momentos do uso dos sapatos. Há, portanto, um objeto, um sujeito, pelo
menos suposto, e uma utilidade, unindo os sapatos e a camponesa. Podemos também pensar que os tamanho do sapato e do pé da camponesa estão de acordo.
Porém, o que acontece, que transformação ocorre quando esse objeto tão banal é representado por Van Gogh em um quadro? Esta é a questão que gostaria de explorar um pouco com vocês esta noite.
Poderíamos fazer a mesma pergunta sobre o cachimbo que Magritte pintou em
1929, escrevendo abaixo: “isto não é um cachimbo”. Realmente, o artista tem azão ao dizer que não se trata de um cachimbo, já que não se pode fumar um quadro. Por mais fiel que seja a reprodução, a pintura não consegue dar à imagem a utilidade do objeto que ela está reproduzindo. Alguma coisa se modifica entre o objeto que serviu de modelo para a obra de arte e a própria obra de arte; nessa passagem algo se acrescenta ou, ao contrário, se subtrai. Finalmente, a mesma questão poderia ser colocada desde que Andy Warhol, um dos artistas americanos mais conhecidos do século XX, pintou nos anos 70
uma série representando um objeto que não poderia ser mais comum: as latas de sopa Campbell's.
As latas de sopa do artista são reproduções fiéis das latas que encontramos nos supermercados, e que qualquer um compra quase sem pensar. Além disso,
como Warhol pintou objetos em série (fez o mesmo com fotos de Jacqueline Kennedy, Marilyn Monroe, etc.), sua obra reproduz também um aspecto fundamental dos objetos de consumo contemporâneos, quer dizer, o de serem
vistos sempre em série, e nunca individualmente. Uma lata de sopa Campbell's é sempre uma das milhões de latas de sopa que alimentam milhões de pessoas que não precisam ter um rosto, uma história, ou experiências singulares. Basta que tenham o comportamento repetitivo de pegar as latas nos supermercados. E, naturalmente, pagar na saída.
Warhol não apenas isolou um objeto do conjunto – puramente ideal – das coisas do mundo, como também procurou dar um caráter singular ao que há de menos singular, isto é, o coletivo dos objetos de consumo, fabricados, expostos e consumidos em série, dia após dia, pessoa após outra, lata após outra lata.
Como ocorre com freqüência na arte, Warhol nos coloca diante de um paradoxo: a reprodução, por mais perfeita que seja – a imitação, a mímesis, como dizia Aristóteles em sua “Poética” – inclui sempre algo que ultrapassa a forma, a necessidade e a função, sem que saibamos muito bem o que é. Na história da arte, os criadores buscaram sempre transmitir esse algo, às vezes se aproximando mais da forma, como fez Andy Warhol, às vezes tomando distância, como fizeram os impressionistas, ou, de maneira ainda mais radical, os artistas que, em seus trabalhos, romperam com a forma das coisas do mundo.
Isso que não sabemos muito bem o que é, parece ser o que caracteriza o objeto da arte, no sentido de que a arte expõe, dá a ver o que não pode ser contido na forma ou dito por inteiro.
Como escreveu Walter Benjamin em 1935, “mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o hic et nunc da obra de arte, sua existência única [...]. É nessa existência única, e somente nela que se desdobra a história da arte”1. Benjamin chamou de “aura”, esse elemento único da obra, “a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que esteja”. Benjamin pensava que a aura desapareceria com a possibilidade de reprodução técnica das obras de arte, sobretudo no cinema e na fotografia, contudo, não é muito certo que isso esteja ocorrendo. Há algo que pôde vir no
lugar da aura tradicional e sustentar a unicidade das obras de arte de nossos tempos.
Psicanálise e arte
Penso que a psicanálise e a arte têm em comum, cada uma à sua maneira, a intenção de dar um destino a esse algo mais, que, embora não encontre lugar na forma nem nas palavras, é certamente o essencial, quer dizer, é a causa de
todo o resto que conseguimos dizer em palavras ou expressar formalmente. Como podemos situar esse algo a mais, sem cair no domínio da religião, que trata justamente dos objetos sublimes, situados, por suposição, além do humano? Como situar como humano, essencialmente humano, o que ultrapassa as palavras?
Benjamin dizia também que aquilo que chamamos de objeto de arte, antes de
expressar o belo, começou historicamente como instrumento de culto; no início mágico, e logo após religioso. Somente com o esvaziamento da sua função ritual, os objetos de arte se tornaram objetos de exposição, coisas para serem vistas. Podemos pensar que, ao se tornar objeto de exposição, o objeto de arte perdeu – pelo menos em parte – sua eficácia mágica e passou a representar algo, no lugar de ser esse algo. Parece-me que aqui a psicanálise se encontra com a arte, no ponto em que a eficácia dos objetos já não é imediata, mas exige uma mediação simbólica.
Muitos trabalhos e posições artísticas, particularmente no campo das artes plásticas, parecem conduzir a arte para fora do campo estrito do Belo. Parece-me importante notar que essa tendência a sair do Belo impele a arte para a Ética, na medida que o ato ou o gesto do artista se inclui na própria definição
de sua arte, passando a fazer parte da obra. Podemos tentar enumerar algumas dessas tendências:
• No lugar da busca do Belo, do “esplendor da forma”, como dizia Santo Tomás de Aquino, muitos trabalhos resgatam a dimensão do resto. Não se trata de uma elevação do resto para cima – este “para cima” tem forçosamente uma inspiração religiosa –, e sim da revelação de uma dignidade própria dos restos como restos. Penso em alguém como Franz Krajcberg, que faz sua arte com restos da natureza amazônica do Brasil, como raízes mortas e árvores caídas. Penso igualmente em Andy Warhol, que anulou com suas latas de sopa a distância sagrada que separava os objetos reconhecidos como artísticos dos objetos comuns oferecidos pela indústria de massa. Isso obriga os psicanalistas a precisarem melhor o que entendem por sublimação, que não é uma domesticação da arte, cujo objetivo seria a aceitação pela opinião média da sociedade, mas, como nos ensinou Lacan, a extração de um certo núcleo de ser que parece inacessível fora da arte.
• Surgiu igualmente um novo estatuto para o corpo que, em alguns casos, se oferece como objeto ou como suporte artístico, apagando assim a separação entre o corpo e os objetos que nos guiou durante séculos. Não me refiro tanto às mutilações do corpo humano como base para a criação, nem à exposição de seus dejetos – isso mereceria uma discussão a parte –, mas simplesmente, por exemplo, às obras que são propostas como continente para o corpo, e que, para serem vistas, necessitam que o espectador passe ao seu interior, de onde somente pode olhá-las. Cada corpo, então, que passa ao interior se constitui, durante sua curta permanência, em parte da obra.
• E finalmente, observa-se uma crise, ou um certo declínio, da autoria, que se manifesta não apenas sob a forma da criação coletiva, mas também nos casos em que a obra não tem como objetivo a eternidade, como dizia Benjamim sobre as estátuas gregas. Ou seja, as obras efêmeras, cuja autoria desaparecerá juntamente com os trabalhos.
Para um psicanalista, a arte é um campo privilegiado do encontro sujeito/objeto, no sentido de uma convergência entre a obra e seu criador. Não exatamente por força de uma identificação imaginária do sujeito com os seus objetos, senão porque o sujeito pode encontrar, no objeto, a exterioridade que é desde sempre a sua.
Neste ponto preciso, há um encontro entre as conseqüências da prática da psicanálise e os efeitos da criação.
Romildo do Rêgo Barros
Tradução do original em espanhol: Maria Angela Maia
in: Latusa digital - ano 4 - no. 28 -maio de 2008