Novo livro de Christian Dunker estuda as formas de
relação do sujeito com seu semelhante.
Por Vladimir Safatle
“A cura não
apenas faculta amar e trabalhar, mas sugere que isso possa ser feito segundo
uma nova forma de estar no mundo, uma forma que convida à criação e à invenção
de outras maneiras de satisfação.”
Dificilmente
poderíamos encontrar síntese melhor do que está em jogo na cura do sofrimento
psíquico do que tal afirmação central no novo livro de Christian Dunker, Estrutura
e Constituição da Clínica Psicanalítica: Uma Arqueologia das Práticas de Cura,
Psicoterapia e Tratamento (Annablume).
Partindo
dela, Dunker propõe-se a traçar o lento quadro de constituição da cura do
mal-estar, tal como ele aparece à consciência ocidental desde os gregos.
Andando na
contramão do empreendimento de Michel Foucault, para quem as práticas de
cuidado de si próprias ao mundo greco-romano não seriam comensuráveis com
aquilo que encontramos nas modernas psicoterapias, em especial na psicanálise,
Dunker quer expor relações de profunda solidariedade e pertencimento.
Sua larga
experiência clínica permite-lhe reinscrever a psicanálise no interior de um
conjunto de reflexões sobre a força produtiva e transformadora do poder que
exercemos sobre nós mesmos ou que deixamos que outros exerçam sobre nós. Poder
que, atualmente, se serve da “importância da autoridade pessoal do
psicoterapeuta sobre o paciente” a fim de mobilizá-la para além de meros
dispositivos de sugestão.
Que a
tematização das estruturas do poder possa abrir “uma nova forma de estar no
mundo”, eis algo que a guinada organicista da psiquiatria contemporânea faz
questão de esquecer.
É preferível
imaginar que nosso corpo vai mal a assumir que sofremos por não sermos capazes
de redesenhar as engrenagens do poder que exercemos sobre nós mesmos. Ou seja,
que sofremos por termos, digamos, uma má política de si.
Mas é para a
urgência de tal reflexão que o robusto livro de Dunker acaba por nos levar. O
que não poderia ser diferente para alguém que afirma ser o diagnóstico clínico
“um diagnóstico das formas de relação do sujeito com o outro”.
Seu livro
começa com a confrontação entre as duas vertentes da formação do Ocidente, a
grega e a judaica, a respeito da experiência da dúvida de si, da dúvida a
respeito de seu próprio lugar. Uma dúvida que expressa o caráter agonístico,
conflitual do que se coloca para mim como destino.
Quem diz
conflito fala necessariamente em política, em capacidade de negociação. Essa
dupla política se organiza tendo em vista dois tipos possíveis de fracasso.
O herói
grego (e Ulisses é aqui o maior exemplo) é assombrado pela possibilidade da
“perda da alma”, do “excesso de indeterminação do espírito” que o faria duvidar
do destino que ele sabe necessário. Por isso, ele vive a esconjurar tal
indeterminação e a reafirmar obstinadamente seu destino.
Já o herói
semita é aquele que precisa “confiar e agir sem dispor de todo o saber
necessário para tal”, que deve aceitar viver com um nome impronunciável. Por
isso, ele deve assumir a produtividade desse seu excesso de indeterminação.
Duas vias
cruzadas que Dunker, com sua astúcia costumeira, não tem dificuldade em
transformar em tendências internas às formas do adoecer psíquico. Fracassamos
de duas formas: ou por mergulharmos em uma odisseia sem fim nem retorno, como
um Ulisses sem Penélope, ou por perdermos a confiança no que é impronunciável,
no que ainda não tem forma.
Entre essas
duas possibilidades de fracasso, as práticas de cuidado de si herdadas pela
psicanálise atuarão.
A partir
desta célula motora, o livro de Dunker passará em revista vários momentos das
práticas de cuidado de si (Montaigne com seus Ensaios, Descartes e suas
Meditações, Hegel e a narratividade de sua Fenomenologia), até
chegar à psicanálise.
Nesse
trajeto impressionante, a capacidade de distinção e organização de Dunker leva
o leitor a compreender como a psicanálise nunca poderia organizar-se a partir
de um “conhece-te a ti mesmo”, mas sim de um “cuida de ti”.
Não
exatamente um saber baseado no processo de decifração do inconsciente, mas a
invenção de uma verdade resultante da capacidade de criar novas formas de vida.
IN: REVISTA CULT
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