DIGITE-ME QUE TU ANDAS E TE DIREI QUEM ÉS
OU
O ESTATUTO DE DEUS, DA CLÍNICA E DA HUMANIDADE EM NOSSA
COMTEMPORANEIDADE
Gustavo Capobianco
Volaco
No princípio era o
verbo.
São João.
No princípio era o
ato.
Goethe.
Acredito
que vocês conheçam o célebre aforismo de Nietzsche
“Deus está morto (...) e quem o matou
fomos nós”
Pois
bem, eis o que me parece uma inverdade, uma falácia, um, para ser cortês e mais
preciso, um sofisma. Vocês sabem o que é um sofisma, não é mesmo? Um sofisma é uma argumentação lógica que visa,
em sua base, levar-nos ao erro, conduzir-nos ao equívoco, bagunçar a ordem do
coreto. O exemplo clássico, de um sofisma, digo, é este produzido por Zenão
de Eléia:
“Se se derrama um saco de
trigo no chão, ele faz barulho; mas se jogamos um só grão, não se percebe ruído
algum. Se um grão não produz, dois também não, nem dez, nem mil. Conclui-se
portanto que um saco de trigo não produz som algum”.
E porque, digo, que o aforismo de Nietzsche
“Deus está morto” é um sofisma? Isso não
lhes chama a atenção? Não estaríamos a ver, por quase todos os cantos a inexistência de Deus e por isso assistiríamos
a essa avalanche de novas seitas que visariam ressuscitá-lo, recriá-lo, reinscrevê-lo?
Pois
não me parece que Deus, de fato, esteja morto. De jeito nenhum! Para dizer de
alguma forma, para me aproximar disso que quero trabalhar com vocês, digo que
ele apenas mudou de roupa, ou
melhor, mudou, essencialmente, de
estatuto. Vou tentar me explicar a esse respeito relembrando-os do oráculo de Delfos, o famoso oráculo de
Delfos que se dá a ler, por exemplo, da tragédia Édipo Rei, que já foi nosso
tema na semana acadêmica anterior. O que o caracterizava? Alguém o procurava com uma pergunta, alguém queria saber do
futuro, por exemplo, e se dirigia até este local, passava pelo batente que
dizia em letras garrafais “conhece-te a
ti mesmo” e o questionava. E o que recebia como resposta? Não uma resposta
linear e unívoca, jamais uma certeza bem amarrada ou costurada. Recebia, sim, e muito pelo contrário, um outro enigma que pedia deciframento,
que requeria uma interpretação. Insisto, quem se dirigia a esse lugar não
encontrava clareza. Não encontrava paz. Não encontrava a calma. Encontrava,
sim, frente ao ?, não !, mas outro ?.
E
o que vemos na teologia judaico-cristã,
para deixar os gregos descansar um pouco? Em outras palavras: o que recebemos pelo abandono do
politeísmo? Certezas inabaláveis ou novamente dúvidas, charadas, enigmas?
Por exemplo: como situar, de uma vez por todas o que Deus queria de Abraão? Que
matasse seu filho? Que não o fizesse? O
que quer o Outro de mim?, podemos ler nessa indecisão demiúrgica e isso não
se dá apenas no Genesis. Isso se dará também com a passagem dessa feroz
ignorância de Yaveh para esse Deus trinitário muito mais afeito ao amor.
Situem, de uma vez por todas, quais são
os desígnios de Deus diante da crucificação de seu filho? Não precisa,
também isso, de um deciframento? Não caiam, por favor, no dogma. O dogma é
apenas expressão de uma paixão do ser
cara aos seres humanos, ou seja, a
ignorância, e ela não deve ter lugar aqui, dentro deste curso que vocês
escolheram. E estão aí todos os teólogos, os hermeneutas, a debater seriamente
aquilo que um Deus quereria de nós, fora do dogma. A fé, a crença, fica do
outro lado. Longe daqui!
Como
estou, de certa forma a profanar o sacro, cito aqui um filme bem conhecido de
todos vocês, O Advogado do Diabo. O
que diz, lá, o diabo a respeito de Deus (cito de memória): prove, mas não goste...goste, mas não se delicie... se delicie, mas não
goze... goze, mas não produza soberba...
O
que quer Deus de nós? Não sabemos de forma unívoca. Não temos como definir de
uma vez por todas. Mas isso não impediu que desde a Grécia passando pelo novo
ou velho testamento nos reportássemos a
esse lugar terceiro, a esse que tudo saberia e nos poria no bom caminho, na boa
via, na sina certa. E isso, reabro as questões, ainda se dá nos dias de
hoje ou esse lugar terceiro está, como disse Nietsche, vazio, destituído,
morto? Dito de uma outra forma, vocês, que estão aí sentados escutando este
trabalho, se dirigem a alguém, a uma
alteridade para que de lá lhes venha algum tipo de resposta? Vejam, se
vocês acham que não há mais esse direcionamento, essa vetorização para essa alteridade,
o trabalho que vocês irão fazer daqui a um tempo, esse de receber pacientes, de
escutá-los, cai por terra, torna-se desnecessário, impraticável. E contudo, não
se assustem por enquanto com isso, os consultórios continuam cheios, lhe afirmo.
Sempre há quem se questione a respeito de si mesmo e procure, em nossos
consultórios, algum tipo de resposta. O ponto, contudo que perturba todo esse
jogo, mudou, basculou, e isso não
porque Deus esteja morto mas sim porque Deus,
como eu afirmei antes, mudou de estatuto.
Ele, hoje,ao contrário desses
exemplos que lhes trouxe aqui hoje, não
vacila, não claudica, não titubeia. Ele, esse Deus contemporâneo, é hoje de
fato, onisciente, onipotente, onipresente e não mais enquanto tese, não mais
enquanto teorema. Se algo nos acossa, se algo nos perturba, se alguma coisa nos
produz enigma, basta consultá-lo para obtermos a resposta. E nem precisamos
sair de casa para consultá-lo. Não precisamos ir a Igreja, ao templo, ao
terreiro. Abrimos, de nossas casas, de nosso lar, essa máquina fabulosa que se
chama computador, acessamos a rede mundial, escrevemos dentro de um retângulo
seis letras G O
O G L E e voilá, podemos fazer qualquer pergunta, em qualquer
língua, em qualquer ordem que queiramos que lá estará a resposta, com o tempo que demorou para conseguí-la e, mais
importante, o número de achados que essa ferramenta encontrou para nós. Insisto: antes tínhamos de percorrer léguas
para encontrar ciframentos, sacrificar animais para encontrar ciframentos,
ajoelhar-mo-nos para encontrar... ciframentos. E hoje, o que encontramos nessa nova instituição de Deus? Deciframentos, respostas, mil, duas
mil, quinhentas mil respostas para
qualquer questão. Digitem lá, qualquer ajuntamento de letras, ao acaso
mesmo, que, rapidamente vocês irão encontrar links que lhes dizem a que isso se refere: uma comunidade que se
nomeia assim, um povo que escreve dessa forma, uma língua que pretende
inovadora...
Vejamos:
antes estávamos com a precariedade das
respostas. Tínhamos enigmas, nos dirigíamos a esse Outro e, no máximo,
recebíamos de lá uma nova charada, uma até resposta
mas que era não-toda, não-plena,
jamais completa. Hoje, frente ao onisciente, ao onipotente, ao onipresente Deus
chamado Google, encontramos não o que poderia parecer, o infinito, mas a totalidade. Encontramos aí, no Deus Google a totalidade das respostas.
E porque isso nos concerne? Porque é importante destacar essa mutação de Deus?
Por que, é claro, isso tem conseqüências
em nossa organização, em nossa vida, em nossos atos. Como? Aí volto ao
consultório, ao meu, especificamente, e a essas pessoas que vem me procurar –
porque, como eu lhes disse, ainda há um afluxo de gente que vem consultar um
analista – e o que se nota aí, o que se faz claro nessas pessoas? Que elas, em
sua grande maioria, vêm me consultar
como se consulta o Google e cada vez suportam menos o silêncio, a não
resposta ou mesmo a sua implicação naquilo que elas mesmas causam em suas
vidas. “Eu quero respostas, doutor. Não
me venha com esse seu blá, blá, blá” me dizia uma senhora. “Procurei na internet dados a seu respeito,
Gustavo, e descobri que és um especialista no que se refere a casos amorosos.
Diga-me, o que devo fazer?” dizia-me um jovem rapaz. E, para encerrar essa
série, o que tenho escutado quase unissonamente: “Se é para eu vir aqui e o senhor não me dizer nada, não me responder
nada, ficar aí calado ou questionando aquilo que eu falo... disso, eu não
preciso” e lá se vão depois de uma curta – às vezes curtíssima – temporada.
E não precisam mesmo permancecer! Por que deveriam se, no Deus Google eles encontram Aproximadamente 18.800.000 resultados em
0,07 segundos. E não é só aí que essas respostas, em abundância,
totalizantes se proferem. A televisão irradia essa sabedoria, esse Saber e,
pasmem, os psicólogos estão, freqüentemente, nessa nau, nesse mesmo barco
arrotando saberes e mais saberes sem perceber que com isso não fazem senão
insuflar esse, digo sem papas na língua, sintoma
social. Foi como eu lhes disse, Deus nem aqui nem na China está morto. Ele está mais presente do que nunca, vivo, onisciente, onipotente e onipresente
como nunca se viu. Se não acreditam em mim, vão até o Google para
verificar.
É
isso. Muito obrigado por sua atenção.
Gustavo Capobianco
Volaco
Psicanalista, Coordenador do Curso de Psicologia da FACVEST
Um comentário:
olá, me parece que a resistência é, sempre, do analista.
outro modo de dizer é: o que mantém o paciente em entrevistas preliminares, e em análise, é o quão longe se pôde levar sua própria análise.
finalizando: por que manter um estilo de escrita que não é seu? digo pois sabemos bem quem se propunha a escrever assim. (res)soa um grande amor ao pai. e precisamos prescindir dele, na condição...
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