As formulações
apresentadas por Lacan no seminário de 1962-63 (Seminário X) a propósito da
concepção de angústia apresentam algumas diferenças em relação à teoria
freudiana da angústia. Não são apenas retomadas das teses freudianas, mas
formulações novas que, de qualquer modo, têm as elaborações freudianas como
referência. Ainda que Lacan afirme que em "Inibição, Sintoma e
Angústia"(Freud,1926) fala-se de tudo, exceto da angústia, é às questões
levantadas por Freud neste texto que ele se refere privilegiadamente na sua
discussão, questionando algumas formulações e procurando apresentar caminhos
para a resolução de determinados impasses.
Em primeiro lugar, para
Lacan a angústia é um afeto. Esta afirmação é importante no contexto de uma
crítica ao ensino lacaniano por apresentar um excesso de intelectualismo,
crítica feita por aqueles que consideravam que a psicanálise deveria tratar do
afetivo, a partir de uma distinção psicológica entre o pensar, o sentir e o
querer. Não se trata para Lacan, de entrar nessa psicologia dos afetos, na
medida em que a angústia não é uma emoção, mas um afeto especial que "tem
estreita relação de estrutura com o que é um sujeito" (Lacan, op.cit) Este
afeto especial Lacan diz que é da ordem de uma perturbação e não de um
sentimento.
Além disso, a angústia é
um afeto que interessa sobremodo à experiência psicanalítica, uma vez que, como
dirá mais adiante, é um afeto que não engana. Como tal ele serve de orientação
para o analista na sua prática, não só pela sua emergência no analisante, mas
também no próprio analista. Em todo o seu desenvolvimento sobre a angústia, a
prática psicanalítica aparece como uma referência importante, o que não
significa dizer que ele deixe de pensar a angústia no nível teórico, no sentido
meta-psicológico, articulando-a aos registros do real, do simbólico e do
imaginário.
O que há de mais
fundamental no que Lacan vai elaborar neste seminário decorre da sua afirmação
da existência de uma relação essencial entre a angústia e o desejo do Outro. Ao
referir-se ao desejo do Outro, ele traz a dimensão do Outro, como lugar do
significante para a definição de angústia. Ao pensar a estrutura da angústia,
enfatiza que, ao contrário do que geralmente se pensa, a angústia está
enquadrada por esta relação ao campo do significante na sua articulação com o
imaginário. Nesse sentido, não se pode ver, em Lacan, uma concepção de angústia
totalmente descolada do registro da representação, como falta de representação,
puro excesso econômico.
Ele parte da própria
definição de sujeito como determinado pelo significante, como constituído pelo
traço unário, o significante mais simples, que o precede. Nessa relação ao
Outro, o sujeito se inscreve como um quociente, isto é, como um resultado dessa
marca significante. Mas há um resto, um resíduo, no sentido mesmo da operação
matemática da divisão. Esse resto, esse irracional, esse enigma, é o objeto a,
única garantia da alteridade do Outro. A problemática da angústia se vincula ao
desejo do Outro justamente enquanto estrutura portadora desse enigma, nesse
ponto de falta que faz do Outro o Outro.
Nesse momento de sua
formulação Lacan vai articular o simbólico e o imaginário, o significante e a
imagem especular, afirmando que a angústia permite refazer esta articulação.
No estádio do espelho há
uma relação essencial entre o momento jubilatório em que o bebê assume sua
imagem especular e o movimento que faz ao se voltar para o adulto pedindo
assentimento. Este pode ser considerado como o indício da ligação inaugural
entre o advento da função da imagem especular i(a) e a relação com o grande
Outro. A relação especular encontra-se dependente do fato de que o sujeito se
constitui no lugar do Outro, pelo significante.
O investimento especular
se dá no interior da dialética do narcisismo, a partir da identificação. Por
outro lado, esse investimento está também na base do desejo, na medida em que
ele supõe essa relação ao Outro. Como diz Comaru: "É nos impasses da
relação entre desejo e identificação que a angústia surge sob a forma de uma
questão: Che vuoi? Que queres? Que Lacan traduz como: O que queres de mim? Que
quer ele em relação a esse lugar do eu? "No momento de da virada entre o
investimento no outro (desejo) e a retração narcísica (identificação), a angústia
comparece como índice de que nem tudo no campo dos investimentos se desdobra em
identificação. Este resto não incorporável no eu, esse resíduo de investimento
narcísico, isso que não entra na imagem especular é postulado por Lacan como
sendo causa da angústia" (Comaru, 1995).
Esse resto, é um objeto
que escapa à imagem especular, cujo estatuto é difícil de articular, diz Lacan
- o objeto a. É dele que se trata quando Freud fala da angústia. Nesse sentido,
para Lacan, não se pode dizer que a angústia é sem objeto.
É interessante que Lacan
introduz a noção de unheimlich para pensar a angústia na sua relação com este
objeto. Ele diz: abordei o inconsciente pela via do chiste e vou abordar a
angústia pela via do unheimlich, porque é a dobradiça absolutamente indispensável
para pensar essa questão.
O que constitui a
angústia? É quando um mecanismo fez aparecer alguma coisa, unheimlich, no lugar
do a como objeto do desejo, como imagem da falta. Porque o objeto a não é
especularizável. Pelo contrário, quanto mais o sujeito tenta dar corpo ao que
no objeto do desejo representa a imagem especular, mais ele é logrado. Quando
algo surge no lugar da castração imaginária, é isso que provoca angústia, uma
vez que a falta falta. É isso que dá o verdadeiro sentido ao que Freud designa
como perda de objeto em relação à angústia.
Examinando o radical da
palavra - heim/ unheim - Heim indica a casa do homem e o homem encontra sua
casa num ponto situado no Outro, para além da imagem de que somos feitos e este
lugar representa a ausência em que estamos. É a presença que faz esse lugar
como ausência. A experiência do unheimlich é sempre fugidia. O unheimlich - o
horrível, o duvidoso, o inquietante - surge nas frestas, de repente,
subitamente. O surgimento do unheimlich-heimlich ( porque um se revira no
outro, neste ponto de dobradiça), no sentido radical daquele que não passou
pelas redes do reconhecimento, é o fenômeno da angústia.
Mas a angústia não se
refere, certamente, apenas ao neurótico, estando ligada à própria estrutura do
sujeito. "O significante engendra um mundo, o mundo do sujeito que fala e
cuja característica essencial é a de que é possível, aí, enganar. A angústia é
esse corte mesmo, sem o qual a presença do significante, seu funcionamento, sua
entrada, seu sulco no real é impensável. É este corte que se abre e que deixa
aparecer o inesperado, a visita, a novidade - presentimento, pré-sentimento -
antes do nascimento de um sentimento" (Lacan, op.cit). Nesse sentido, a
verdadeira substância da angústia é aquilo que não engana - o sem dúvida..
Ao comentar a definição
mínima de angústia que Freud apresenta em "Inibição, Sintoma e
Angústia", como angústia sinal, Lacan opera uma torção ao dizer que ela é
sinal não de perda do objeto, mas justamente da intervenção do objeto a. Ela é
sinal de certos momentos da relação do sujeito com esse objeto e, por isso, é
um sinal para o analista. Ele chega a dizer que é pelo viés da angústia que se
pode falar do objeto, na medida em que ela é a sua única tradução subjetiva.
A angústia introduz à
função da falta, no sentido de que ela é, para a psicanálise, radical. Ela é
radical para a própria constituição da subjetividade tal qual ela aparece na
experiência analítica. "A relação ao Outro se dá por esse ponto de onde
surge o fato de que há significante, ponto esse que não poderia ser significado.
O que eu chamo de ponto "falta de significante" (Lacan, op.cit). Não
existe, portanto, falta no Real, na medida em que a falta só é apreensível por
intermédio do simbólico. Nesse sentido a falta é simbólica.
Quando Freud fala de
angústia sinal se produzindo no eu, ele se refere a um perigo interno. Lacan
suprime a noção de perigo interno, pois o envelope do aparelho neurológico - em
uma referência ao Projeto - não tem interior, não é mais do que uma superfície
- superfície unilátera. O que se interpõe entre percepção e consciência, a
outra cena, situa-se nesta dimensão do Outro enquanto lugar do significante.
A angústia é introduzida
como manifestação específica nesse nível do desejo do Outro, onde ganha
importância o sinal que se produz no eu, no lugar do eu, mas que diz respeito
ao sujeito. O eu é o lugar do sinal, mas não é pelo eu que o sinal é dado. Se
isto aparece no eu é porque o sujeito foi advertido de algo – e este algo é um
desejo.
Já no Seminário 8 sobre A
transferência Lacan afirmava que o sinal de angústia tem uma relação
absolutamente necessária com o desejo. Sua função não se esgota na advertência,
pois ao mesmo tempo que realiza esta função, o sinal mantém a relação com o
desejo. A angústia é o modo radical sob o qual é mantida a relação com o
desejo. "Quando, por razões de resistência, de defesa e de outros
mecanismos de anulação do objeto, o objeto desaparece, permanece o que dele
pode restar, a direção para o seu lugar, lugar de onde ele , a partir de então,
se ausenta .... Quando atingimos este ponto, a angústia é o último modo, modo
radical, sob o qual o sujeito continua a sustentar, mesmo que de uma maneira
insustentável, a relação com o desejo.(Lacan,1992:353)
O desejo do Outro não
reconhece o sujeito, nem o desconhece, ele o coloca em causa, o interroga na
raiz mesmo do seu desejo como a, como causa de desejo e não como objeto. A
única via para romper esse aprisionamento é engajar-se nele. Por isso Lacan diz
que o desejo é o remédio contra a angústia. A dimensão temporal desse engajamento
surge com a angústia e é isto que está em jogo na análise.
O sinal da angústia,
assim, adverte sobre algo muito importante na clínica. É o ponto que mais pode
indicar aos analistas o uso que podem fazer da angústia. A angústia não é
absolutamente interna ao sujeito, mesmo porque o próprio do neurótico é ser um
vaso comunicante. A angústia como energia o neurótico busca nos grandes Outros
com os quais se defronta, entre eles o analista. Por isso é importante que o
analista saiba a quantas anda o seu desejo para que não surja na análise a sua
angústia, na medida em que ela pode se transportar para a economia do sujeito.
A angústia do analista não pode entrar em jogo, a análise deve ser asséptica
quanto a isso.
É a noção de real que
permite a orientação na prática, uma vez que esse algo diante do qual surge a
angústia é o real. A angústia é sinal do real, de algo da ordem do irredutível.
Por isso a angústia, de todos os sinais, é aquele que não engana. Isto está
ligado à própria constituição subjetiva, na medida em que é o real - e seu
lugar - aquele em relação ao qual, com o suporte do sinal ( significante), da
barra, pode-se inscrever a operação de divisão. No processo de subjetivação
algo resta de irredutível nesta operação de advento do sujeito no lugar do
grande Outro. Esse resto é o a. Enquanto queda da operação subjetiva pode-se
reconhecer nele o objeto perdido: é disto que se trata, de um lado no desejo e,
de outro, na angústia. O que Lacan procurou mostrar foi isso: "penso
ter-lhes mostrado o jogo de esconder pelo qual angústia e objeto, um e outro,
são levados a passar a primeiro plano, um às expensas do outro, mas também ter
mostrado o lugar radical da angústia nesse objeto, à medida que ele cai. Esta é
a sua função essencial, função decisiva de resto do sujeito, do sujeito como
real" (Lacan, Sem X).
Finalizando, gostaria de
destacar a articulação feita por Lacan em que a angústia aparece como uma
função mediana entre o gozo e o desejo.
Pode-se
pensar, por um lado, em um sujeito mítico que seria o sujeito do gozo e, por
outro, a poderia ser visto como
metáfora do gozo. Mas isto só seria correto se a fosse assimilável a um
significante. E é justamente isto que não acontece, pois o a é o que resiste a significantização, o objeto perdido, fundamento
do sujeito desejante, não mais o sujeito do gozo. O sujeito desejante, na sua
busca do gozo, procura fazer entrar esse gozo no lugar do Outro, como
significante. É por esta via que o sujeito se precipita, se antecipa como
desejante. É no sentido de que ele aborda, aquém de sua realização, esta
hiância do desejo ao gozo, que surge a angústia. Portanto, a angústia não está
ausente na constituição do desejo, mesmo se este tempo é elidido. É sobre o
tempo da angústia que o desejo se constitui, o que nos indica a importância da
dimensão temporal da angústia na experiência analítica.
By:
Doris Rinaldi
Bibliografia:
COMARU, Marcos - "Notas sobre a concepção
lacaniana da Angústia, Papéis no.1 , março de 1995.
FREUD, S. – Obras psicológicas completas, Edição
Standard Brasileira Rio de Janeiro, Imago Ed. 1976.
__________. "Projeto para uma psicologia
científica"(1895)
__________. "Inibição, Sintoma e Angústia"
(1926)
LACAN, J. - Seminário VIII, A Transferência (1960-61),
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1992.
_________ - Seminário X - A Angústia (1962-63),
documento de circulação interna do Centro de Estudos Freudianos de Recife, s/d
(mimeo).
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