A dor e a Performance.
Joel Birman - O Estado de
S. Paulo
A intenção deste artigo é
a de colocar em pauta um conjunto de questões em decorrência do suicídio do
músico Champignon, da banda Charlie Brown Jr., em seguida à morte por overdose
do seu colega Chorão. A esse cenário trágico deve-se acrescentar o suicídio há
alguns meses, por enforcamento, do músico Peu de Souza. A história de suicídio
de Champignon se complica, já que esse músico, que substituiu o colega morto,
foi seguidamente hostilizado por fãs da banda como traidor por ocupar sua
posição em uma nova banda. Nessa medida, a tragédia em questão se situa numa
linha tênue entre a dor pela perda do amigo e as múltiplas agressões verbais
sofridas da parte de seus fãs. Isso porque tais agressões, nessas
circunstâncias, tiveram possivelmente o efeito de incrementar a culpa que se
coloca para qualquer sujeito na experiência do luto.
Um primeiro comentário
sobre isso é que, paralelamente, no Rio de Janeiro, nos últimos meses alguns
jovens de classe média alta se suicidaram de forma violenta e inesperada, causando
uma grande comoção entre amigos e familiares. Da mesma forma como Champignon se
suicidou abruptamente após um jantar afável com a mulher grávida e amigos,
histórias parecidas ocorreram nos suicídios dos cariocas.
Portanto, a primeira
questão que se impõe é por que tantos suicídios acontecem com jovens
bem-sucedidos na atualidade. Isso não quer dizer, evidentemente, que não
ocorram suicídios como esse em faixas etárias outras. Porém, o fato de
ocorrerem com jovens tem a potência de nos consternar particularmente, pois se
trata de pessoas que tinham uma vida pela frente e muitas possibilidades de
resolução dos impasses existenciais que se colocam para todos nós. Por que
então esses jovens são lançados abruptamente para o gesto fatal contra si
mesmos, sem reconhecerem os horizontes que ainda existiam para eles?
Para responder a isso, é
necessário o reconhecimento de que se trata de um fenômeno complexo, que exige
uma reflexão que lance mão de um conjunto de saberes, para que não se caia
numa banalização psicologista e psicopatológica desse acontecimento limite.
Com efeito, é preciso aludir não apenas à teologia e à política, como também ao
arsenal das ciências humanas.
Como se sabe, os suicídios
não são geralmente divulgados pela mídia. Existe uma interdição em relação a
isso, pois se supõe que as narrativas de suicídios possam gerar outros, numa
espécie de reação em cadeia. Além disso, essa interdição visa a proteger os
familiares dos suicidas, em decorrência do estigma presente nesse tipo de ato
fatal.
Contudo, não se pode
esquecer que o suicídio é um ato proibido por uma longa tradição religiosa no
Ocidente, pois, se Deus nos concedeu a vida, só ele teria o poder de retirá-la.
O que implica dizer que, nessa tradição, o indivíduo não teria a liberdade de
decidir sobre a própria vida/morte, de forma que se impõe a ele ter que
suportar as angústias da existência, inventando formas de lidar com elas.
Esse imperativo religioso
foi refundado com a constituição da sociedade moderna, de acordo com Foucault
em Vigiar e Punir. Segundo ele, a modernidade se forjou pelo imperativo de
promover a vida e afastar a sedução da morte, na medida em que a vida se
transformou no campo fundamental para o exercício do poder. Com efeito, se pelo
poder disciplinar e pelo biopoder a vida é promovida e a morte apenas acontece
quando se torna inevitável, no poder soberano pré-moderno o soberano fazia
morrer e deixava viver. Foi em decorrência disso que a modernidade foi marcada
por uma intensa e disseminada medicalização do espaço social, na medida em que
a saúde foi transformada num dos indicadores fundamentais da qualidade de vida
da população e da riqueza do Estado-nação. Daí porque a eutanásia foi proibida
em nossa tradição, interdição essa que se mantém ainda hoje, não obstante as
múltiplas reações provocadas face a isso na atualidade, em decorrência dos
sofrimentos de doentes terminais.
Como se pode reconhecer, a
interdição do suicídio conjuga intimamente uma dimensão religiosa com uma
dimensão política, de forma que a vida seria regulada pelo poder de Deus e do
Estado. Não é, pois, espantoso que o suicídio seja objeto de estigma,
provocando horror na população em geral e nos familiares e amigos dos suicidas.
No que concerne a isso, é preciso reconhecer que se a perda de alguém que nos é
próximo, seja amigo ou familiar, nos é sempre dolorosa, a morte por suicídio é
trágica. Com efeito, para esses casos a pergunta que sempre se impõe é se não
poderíamos ter impedido o desfecho trágico, se não ficamos cegos e surdos aos
múltiplos sinais enviados pelo sujeito. Portanto, a culpa é inevitável entre
aqueles que foram próximos dos sujeitos que se mataram, culpa essa que vai
marcar suas vidas. Enfim, se os suicidas tiveram que fazer a transgressão
limite para realizarem seu ato fatal, pelos interditos religiosos e políticos
que delineiam o campo dessa experiência, os familiares e amigos se sentem
igualmente responsabilizados por não terem impedido o desfecho.
É inegável que na nossa
tradição o ato suicida implica uma situação limite para o sujeito, que se
reconhece encontrar num beco sem saída para realizar tal ato. O que implica
dizer que, para perpetrar tal transgressão, o sujeito atravessa uma profunda
experiência de angústia indizível. Porém, pode-se dizer também que essa
experiência se conjuga com o estatuto do individualismo moderno, na medida em
que o sujeito aqui em causa não se inscreve numa totalidade social que o
subsuma, como ocorria nas sociedades pré-modernas. Nessas, a morte e mesmo o
suicídio se inscrevem numa gramática coletiva, ganhando assim foros de heroísmo
e grandiosidade, sendo o ato de tais personagens marcados pela coragem e pelos
valores éticos superiores. Não é isso que ainda vemos e podemos constatar em
diversas culturas asiáticas e árabes, onde os homens-bomba e os camicases se
transformam em heróis de suas comunidades, louvados pela coragem e pelos
valores fundamentais que os impulsionaram para a morte.
Foi na tradição
individualista moderna que o suicídio se transformou num ato maldito. Em
decorrência disso, a figura do suicida se transformou na figura do anti-herói e
mesmo do covarde, isto é, daquele que não teve coragem para suportar os
obstáculos que a vida lhe impôs. Por isso mesmo, nessa
configuração antropológica o ato suicida foi transformado num sintoma grave de
perturbação psíquica, associado principalmente à experiência da melancolia, mas
podendo também ser inserido em outras psicoses.
Em sua leitura do sujeito
moderno, Freud procurou pensar a melancolia e o suicídio a partir da
experiência do luto. Vale dizer, em face da perda de um objeto amado ou de um
ideal, o sujeito vive uma experiência de luto, numa espécie de confrontação
ética com a figura do morto, num acerto de contas com suas memórias face ao
objeto perdido. Dessa maneira, a melancolia seria uma impossibilidade para o
sujeito de aceitar a perda do objeto de amor e dele se separar, de forma a
ficar identificado com a figura do morto. Enfim, o ato suicida poderia ser
então um ato fatal do sujeito para arrancar de si o objeto que se perdeu, ou
então continuar a ele ligado para sempre pela morte.
Contudo, toda essa
discussão na atualidade assume novos aspectos cruciais, considerando-se as
condições psíquicas do sujeito na contemporaneidade. Assim, face à feroz
competição generalizada que existe hoje no contexto social do neoliberalismo,
em que a performance se colocou como um imperativo fundamental, a promoção de
si mesmo se impôs como uma marca indiscutível da subjetividade contemporânea.
Superar os adversários se transformou numa moral disseminada, implicando uma
aceleração das formas de viver que são correlatas da aceleração do tempo que se
impõe no fluxo das mercadorias e das informações em escala global. Nesse
contexto, cada indivíduo se transformou numa microempresa para promoção de
si mesmo e da venda de seus produtos, sejam esses materiais ou imateriais, numa
multiplicação assintótica de suas performances.
Não é por acaso que o
consumo de drogas, sejam essas lícitas ou ilícitas, se transformou numa forma
de vida. Com efeito, por esse consumo os indivíduos procuram
promover sua performance para estar à altura da competição frenética existente
no espaço social. Face a esse excesso intensivo, o sujeito fica turbinado,
mas, em contrapartida, nem sempre dispõe de instrumentos simbólicos para lidar
com isso. Os efeitos disso são múltiplos, nas tentativas dos sujeitos de
lidarem com tais excessos. Se esses forem descarregados sobre o corpo
podemos reconhecer a origem das múltiplas doenças psicossomáticas na
atualidade, assim como da síndrome do pânico. Contudo, se forem descarregadas
para o exterior teremos uma chave para a compreensão da multiplicação da
violência e da crueldade na atualidade, assim como para a disseminação das
adicções no contemporâneo, que se realizam com diversos objetos, num eixo que se
polariza entre a comida e as drogas. Além disso, esse excesso intensivo pode se
fazer presente como um corpo estranho para o sujeito, que perde assim suas
referências identificatórias, sendo lançado em situações melancólicas.
Assim, pode-se depreender
facilmente dessa cartografia como a morte nos assalta como possibilidade, de
múltiplas maneiras. Isso porque o excesso como dor não pode ser transformado
e metabolizado como sofrimento, pela fragilidade dos operadores simbólicos
de que o sujeito dispõe. Com isso, o desamparo que é constitutivo do
sujeito, segundo Freud, se transforma em desalento, pois num espaço social
permeado pela competição generalizada o sujeito não pode mais contar com o
outro como amigo e aliado.
Não é espantoso que as
taxas de suicídio se incrementem nesse contexto, marcado pela incerteza e
perplexidade. Além disso, não é inesperado que os jovens estejam mais expostos
a esses processos, pois tendo que construir seus percursos no espaço de alta
competitividade, muitos deles infelizmente sucumbem.
JOEL
BIRMAN: PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA UFRJ E
PROFESSOR ADJUNTO DO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL.
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