A verdadeira
história fictícia de um escritor chamado Ricardo Lísias
Elogiado por
uns, odiado por outros, o autor de Divórcio ataca a grande imprensa e revela as
verdades e mentiras que causaram polêmica em torno de seu livro mais recente.
Existe o escritor Ricardo Lísias, corintiano (por causa da
democracia de Sócrates e Vladimir), ex-morador de Itaquera e autor festejado de
seis livros, e há o personagem Ricardo Lísias, protagonista de dois deles, O
Céu dos Suicidas e o recente Divórcio,
ambos pela Alfaguara, além do novo, que está sendo escrito. Coincidências
biográficas os unem, assim como as polêmicas suscitadas por esses romances,
livremente baseados em fatos reais.
Divórcio, especialmente, dividiu os
leitores e, independentemente dos méritos literários, causou mal-estar entre
alguns jornalistas e escritores, que teriam reconhecido as pessoas envolvidas
na trama, uma história de separação com vários elementos constrangedores. Mas
não só por isso: o livro também é um ataque à grande imprensa e à
comercialização da cultura.
A prosa, clara, rigorosa, espelha a simplicidade aparente do
enredo: Ricardo Lísias, o personagem – também escritor –, descobre o diário da
jornalista com quem está casado há quatro meses e o lê. O conteúdo mostra que,
além de infiel, sua mulher o despreza profundamente. Desnorteado, abandona o
apartamento em que moravam e tenta se recompor.
A partir daí, o leitor se depara com vários trechos do diário,
que o autor/personagem vai lançando estrategicamente em meio à narrativa. O
efeito é devastador. A mulher que emerge das confissões é fria e ambiciosa, a
ponto de atropelar a ética quando lhe convém. Seu diário era o depositário de
um lado insensível que ela não consegue controlar, como dirá mais adiante, ao
tentar uma reconciliação.
O livro é bom. Mais que isso, é ótimo, principalmente quando
aponta, com lucidez, as fissuras éticas na grande imprensa e em eventos
culturais como o Festival de Cannes. Mas deixa sérias dúvidas quanto a sua
legitimidade. Não foram poucos os que viram no romance uma vingança. De fato, a
vida da ex-mulher de Lísias, uma conhecida jornalista de cultura, teria sido
bastante prejudicada e muitos de seus amigos e conhecidos estariam indignados.
Se
o personagem Ricardo Lísias sofre o diabo com a humilhação, o premiado
escritor, presente na seleção de jovens autores brasileiros feita pela revista Granta, passa a impressão de ter
superado bem o trauma que lhe deu a centelha para por o livro em movimento.
Aparentemente indiferente ao clamor (restrito a um meio, ele insiste) que o
acusa de mau-caratismo, defende a autonomia estética do romance e afirma que
nada ali é real de fato (ainda que o narrador diga enfaticamente o contrário).
E vai mais longe, ao dizer que seu objetivo era mesmo prejudicar as pessoas, no
sentido de causar desconforto, provocar o leitor, tirar a literatura do
marasmo.
Na
entrevista a seguir, feita na redação da Brasileiros,
Lísias, que também é professor de inglês e português (fez mestrado na Unicamp e
na USP), e dá cursos de Literatura Contemporânea, explica melhor toda a celeuma
e fala de seu meticuloso processo de trabalho. Também comenta o estado atual da
imprensa e da literatura e conta de sua participação nas recentes manifestações
de rua.
Brasileiros
– Em Divórcio, há momentos em
que o narrador diz que é tudo uma ficção e em outros que é tudo real. Qual
versão acreditar?
Ricardo – O livro pretende discutir questões de narrador. No Brasil, as
pessoas leem a literatura ainda com os padrões do realismo, e isso causa um
problema técnico em relação ao narrador. O
narrador modernista é totalmente diferente, é um narrador que se coloca muito
em jogo, e as pessoas não percebem isso, confundem o narrador com o autor, como
se fosse possível o autor falar. Isso não existe, só fala o narrador num
romance. Mesmo que eu coloque o meu nome, mesmo que eu coloque a minha foto
pelado, não sou eu, é uma foto, e isso, tirando um grupo de leitores, as
pessoas não entendem perdem o mais importante, que é o aspecto artístico. O
modernismo não pegou como conceito. Um professor da USP que é diretor da
Biblioteca Mário de Andrade me disse uma coisa curiosa, que é a seguinte:
“Quando o modernismo chegou ao Brasil, a indústria editorial era ínfima, ao
contrário da França e Inglaterra, por exemplo”. Então, os próprios textos
modernistas ficaram fechados em um circuito muito pequeno. Quando a indústria
editorial cresce muito, de novo está em voga o romance comercial, que tem
natureza realista mais vulgarizada, e que ainda se impõe no Brasil. Esse é o
cerne do meu romance. Até agora as pessoas estão tentando saber quem é quem.
Brasileiros
– Mas o ponto de partida é
real.
Ricardo
– A ideia
inicial do livro parte de um evento traumático, como no Céu dos
Suicidas, mas eu não gosto dessa palavra realidade. Acho que é uma
questão de linguagem e as pessoas ficam querendo saber o que aconteceu na minha
vida, como se eu pudesse dois anos depois recompor o que aconteceu dois anos
antes. O que aconteceu se perdeu no momento em que aconteceu.
Brasileiros
– De qualquer maneira, você
tem uma herança daquele momento em que as coisas aconteceram. Por exemplo, você
é o cara que corre hoje a partir daquele momento. Isso é verdade?
Ricardo
– Não. É
tudo mentira isso de corrida, eu corria desde o mestrado. Ninguém consegue
correr a São Silvestre treinando três meses e fazendo o tempo que eu faço. É um livro de
ficção que infelizmente as pessoas ficam querendo fazer estardalhaço em cima.
Hoje, fui tomar o ônibus ali na Consolação com a Paulista e um casal me parou e
perguntou se eu tinha escrito Divórcio. Foi a primeira vez que isso
aconteceu fora de uma livraria. Eu falei que sim. E o casal disse: “Nossa, você
deve estar arrasado!”. E queriam me dar um abraço! Não amigo, não tem nada disso.
Mas parece que não tem saída.
Brasileiros – De fato, esse livro suscita esse tipo de confusão.
Ricardo
– Isso é
feito de propósito, para que as pessoas caiam no curto-circuito do erro. Elas
vão procurar algumas coisas e dentro da fantasia delas vão achar certas
correspondências. Eu queria que elas criassem o curto-circuito para que conseguissem
entender o que é a arte. Isso é o que eu queria, mas não sei se está dando
certo. Pelas respostas que tenho recebido, não.
Brasileiros
– Você vê paralelos dos seus
livros com a obra do Emmanuel Carrère e de Karl Ove Knausgard, que também
partem de experiências pessoais para escrever seus romances?
Ricardo
– Claro! É
uma tendência completamente contemporânea. O (Michel) Houellebecq, por
exemplo. Em seu último romance (O Mapa e o Território, Record,
2012), ele mata um personagem que tem seu nome e sobrenome, e eu fico
imaginando se as pessoas acham que ele morreu mesmo.
Brasileiros
– E aquela assessora de
imprensa, ou a jornalista, mulher do personagem?
Ricardo
– Não me
interessa, o que mais importa é que o livro discute questões do jornalismo
contemporâneo, que são problemáticas. Esse negócio do off é uma
coisa que eu nunca tinha ouvido falar, e fiquei completamente espantado como
isso existe. Há uma matéria citada no livro que justificava a fonte assim:
“Segundo amigos próximos da pessoa”, para revelar, com aspas, algo que teria
sido dito em uma reunião fechada. Eu fiz Letras, e aspas para mim significa
citação literal. No caso, não acho que eram “amigos próximos”, acho que era o
presidente da República ou ex-presidente ou alguma coisa desse gênero,
realmente agora não tenho certeza; ou seja, ou o ex-presidente da República gravou o que
falou, saiu da reunião e ligou para o jornalista e traiu quem estava na
reunião, ou alguém está dando uma entrevista de terceira mão e isso é assumido
como verdade, ou pior, alguém inventou a fala. Não sei como uma coisa dessas
pode ser permitida. Procurei vários juristas e perguntei se a justiça aceita
testemunho anônimo. Eles deram risada, o máximo que a justiça aceita é que a
pessoa assine seu testemunho, com nome e endereço, sendo responsável legal pelo
que fala. Isso me deixou completamente espantado, é um procedimento comum da
imprensa padrão, sobretudo a imprensa diária.
Brasileiros
– É curioso que nos dois
últimos livros têm essa coisa de você repetir uns trechos, sempre acrescentando
mais um pedaço, o que é interessante pois cria certo suspense.
Ricardo – Você precisa controlar o leitor e
fazer o leitor virar um pouco seu companheiro, às vezes cúmplice, mas em alguns
momentos gosto de fazer o leitor dar risada e depois mostrar que ele não devia
estar rindo daquilo.
Brasileiros
– E a discussão do amor no livro?
Ricardo – Acho que Divórcio discute tanto questões de
relacionamento quanto questões éticas que envolvem espaços culturais de muito
prestígio, como o Festival de Cannes, quando se vê que há também ali o controle
financeiro; ou seja, o livro mostra que os espaços de cultura são também
espaços de barbárie. Acho que, na verdade, é um livro sobre ética. (Pivô da trama, a jornalista vai cobrir o
Festival de Cannes e transa com um dos jurados, ganhando acesso privilegiado
aos bastidores.) Basicamente, o livro diz que, se uma imprensa ultrapassa
todos os limites possíveis, eu vou ultrapassar também e agora nós vamos ver
quem vai sobreviver, quem vai chegar ao final da corrida. Essa é a ideia.
Ricardo
– É um pouco
injusto, porque no início o narrador está com muito ódio e muita raiva, então
generaliza tudo e bate em todo mundo, cria todas as confusões possíveis, agride
todos os advogados, todos os jornalistas e, quando ele chega ao final,
percebe que as coisas não podem ser assim. Mas há uma demonstração de como
certa imprensa tem ilusão de poder, e é só ilusão, porque se tivesse mesmo
poder, o Lula nunca teria sido reeleito, quanto mais eleito. Aliás, uma das
melhores coisas do governo dele foi mostrar que a imprensa não tem poder
nenhum.
Brasileiros
– Você não acha que isso já
começa com uma arrogância institucionalizada dos jornalistas e que impacta nos
jornalistas jovens?
Ricardo
– Claro. Fui
ler na internet algumas resenhas da década de 1980 e tem coisas inteiramente
desrespeitosas ao artista, é inacreditável o grau de agressividade de um texto
com o artista, e isso me parece que se dá porque a pessoa que está escrevendo é
incapaz de discutir questões estéticas, então ofende o artista, agride todo
mundo. Outra coisa que eu percebi é que esses jornais diários são lidos só
pelos mesmos jornalistas e por mais um grupo, talvez um grupo de políticos,
parece que vivem como se a redação fosse um mundo em que a redação é o mundo.
Brasileiros
– Como você se informa?
Ricardo
– Eu não
leio jornal diário mais. Eu vejo na internet. Se você ficar cinco minutos no
Facebook, vai ter todos os espectros culturais, todas as notícias ao mesmo
tempo. Descobri a invasão na favela do Pinheirinho exatamente enquanto ela
estava ocorrendo. A internet encerrou a imprensa diária, não tem sentido mais.
Para a imprensa mensal ou semanal, tenho impressão de que o caminho vai ser
oferecer textos melhores que a internet não pode oferecer.
Brasileiros
– Mais reflexão.
Ricardo
– Sim, me
parece que sim. Para que vou acompanhar jornal se sei que a aspa é inventada?
Está na cara que não tem sentido.
Brasileiros
– Mas a aspa pode ser
inventada também na internet.
Ricardo
– Também, e
aí tem de filtrar, como tem que filtrar em todos os lugares, mas pelo menos eu
não pago, é uma questão meramente de consumidor. Tenho bastante simpatia pela
Mídia NINJA e manifestações parecidas, confio muito mais nisso do que em um
jornal.
Brasileiros
– Você mencionou em algum
momento essa coisa de passar uma rasteira na expectativa do leitor. Você faz
isso também com a veracidade dos relatos, em alguns momentos diz que é tudo
ficção e na maioria das vezes diz que é tudo real. Qual a intenção disso?
Ricardo
– Eu uso a
questão do narrador para tentar repor a literatura como um gênero da arte. Se
você perceber, todo mundo enxerga a dança como uma arte, cinema, um quadro, as
artes plásticas são gêneros artísticos, e a literatura me parece ser o gênero
artístico mais visto como reprodução da realidade, reprodução fotográfica da
realidade, enquanto a própria fotografia é uma arte. Estou tentando fazer isso
agora, mas estou infeliz com o projeto. Eu vou ter de fazer ainda uma coisa
mais radical.
Brasileiros
– Te perturba a ideia de que
o livro venda mais por causa do rumor e não pela qualidade literária?
Ricardo
– Não. Eu
não posso ficar intervindo no que as pessoas acham. As pessoas dizem que sabem
que personagem é essa e eu falo, tá bom. Tive esse problema desde Duas
Praças(segundo livro do autor, de 2008, terceiro lugar no Prêmio Portugal
Telecom) que se passa em uma universidade onde o personagem faz mestrado. Eu
também fazia e o professor era o professor tal. Evidentemente que Divórcio foi
muito mais radicalizado, então acho que as pessoas, quando vão ler, devem dar
bastante gás a suas fantasias; mas não eu, nem tenho mais interesse no livro.
Brasileiros
– No limite, você está
dizendo que as pessoas que são indiretamente mencionadas não deveriam ficar
ofendidas.
Ricardo
– Ficar
ofendido por ser um personagem de um livro? É uma ficção! Fui perguntado se eu
tinha medo de ser processado, eu falei que ele devia estar brincando. Quer
dizer, como eu vou ser processado por causa de um personagem de ficção? Tanto
que um advogado fez uma pesquisa para mim e isso não existe, eu vou inaugura a
jurisdição. Mesmo as pessoas citadas nominalmente, como o meu psicanalista e
tal, quando entram no livro não são mais aquela pessoa, são personagens de
ficção. Aí, me perguntaram: “E se escreverem uma resposta a seu livro?”. Eu vou
ler, vou achar engraçado, não vejo problema algum.
Brasileiros
– E você acha um absurdo que
as pessoas vejam o problema?
Ricardo
– Mas as
pessoas estão vendo o problema? Eu respondo às entrevistas por e-mail, tenho
muitas perguntas como essa, se eu tenho medo de ser processado, e eu respondo
que não bati em ninguém na rua, não matei ninguém, vou ser processado por quê?
Não estou entendendo. A relação que a pessoa faz entre a personagem e a vida
real é o leitor que faz, não eu. Não tenho de responder por isso.
Brasileiros
– E se eu fizer uma conta e
descobri quem era o secretário da Cultura naquela época? (O narrador afirma
no livro, baseado no diário, que a jornalista, sua ex-mulher, teve um caso com
um secretário de Cultura.)
Ricardo
– Eu não sei
quem era.
Brasileiros
– Mas se a conta fechar?
Ricardo
– Se fechar
não fui eu. Acho que o leitor deve fazer todas as contas possíveis. Como pessoa
física, sou responsável por um livro que demonstra que o ambiente da cultura é
um ambiente de barbárie, jornalismo de grande escalão é um jornalismo
corrompido, que esse negócio de colocar aspas em frases que você tem dito a
amigos é corrupção é, na verdade, fofoca, mas a alteração que a pessoa faz,
supondo que esse é aquele, etc., eu não posso ser responsável. Não fui eu que
fiz essa operação, e nem me importa.
Brasileiros
– Mas de certa maneira você
induz o leitor a fazer essa conversão.
Ricardo
– Eu
gostaria que o leitor fizesse o contrário, que o leitor lesse o livro como se
fosse uma obra de arte real.
Brasileiros
– Se eu já tenho previamente
a informação de que o diretor de um grande jornal entrou em uma polêmica porque
disse que a ditadura no Brasil foi amena, e você menciona isso no seu livro, é
muito difícil dissociar uma coisa da outra.
Ricardo
– Se você
for do ramo jornalístico, sim. Mas se for outro tipo de leitor, o que vai fazer
é, provavelmente, uma relação entre os vários momentos do livro, ou seja, o
leitor constrói a sua leitura a partir da história prévia dele.
Brasileiros
– Mas de certa maneira você
sabia o efeito que o livro poderia causar em algumas pessoas.
Ricardo
– Não sei se
você pode pegar uma obra de arte e discutir a intencionalidade do autor. Pode
ser visto como uma vingança para um determinado público, mas eu recebo
mensagens no Facebook desde que o livro saiu, por volta de 30 por dia, que são
as coisas mais desbaratadas do mundo, com as maiores descrições de loucuras que
uma pessoa pode fazer com outra, ou de gente que acha que é a história dela. E
tem mensagens me agradecendo muito por ter escrito a história, então porque eu
vou me importar que um grupo profissional faça tais ligações? Que faça mesmo,
mas eu não sou responsável. Como autor, tenho as minhas intenções, que são
estéticas, de intervenções públicas.
Brasileiros
– Mas aí não dá para dizer
que sejam só estéticas.
Ricardo
– Não
acredito que a estética é autônoma. O livro não é uma reflexão da realidade,
ele cria uma nova realidade para tentar intervir na nossa realidade. Nisso eu
acredito que tenha conseguido, nesse aspecto de determinado tipo de denúncia.
Brasileiros
– O problema do jornalismo é
o excesso de arrogância.
Ricardo
– É uma
arrogância inacreditável, uma autoconfiança que nem eletricista que toma choque
tem, uma coisa inacreditável. As pessoas vindo com ideias preconcebidas achando
que eu sou burro para caramba. Não sei, acho que não pensam.
Brasileiros
– Mas seu livro provoca
bastante, você não acha?
Ricardo
– Os outros
também, só que os outros provocam outras profissões. Eu fiz um livro sobre
executivo de banco, que queria provocar os executivos.
Brasileiros
– O curioso é que você é um
sujeito agressivo no livro, tanto nesse como no Céu dos Suicidas.
Ricardo
– Fui a um evento em Curitiba, um pouco depois do lançamento do Céu
dos Suicidas, e uma pessoa falou que estava espantada, porque tinha lido o
livro e achava que eu fosse superagressivo e fizesse mesmo aquelas coisas
desagradáveis. Porque tem muito escritor que vai a evento e fica ofendendo o
mediador. Ou seja, os jornalistas são muito fofoqueiros, mas os escritores são
muito arrogantes, é um fato. Eu não falo alto, tenho problema até com
microfone.
Brasileiros
– Outra coisa que me chamou a
atenção é que os trechos do diário são mal escritos para quem se diz a maior
jornalista de cultura e tal. Você recriou esse diário de maneira a causar um
contraste?
Ricardo
– Eu não
poderia escrever (as partes do diário) no mesmo estilo do resto do
texto, senão o editor nem aceitaria. Tive de fazer muitas redações para
conseguir diferenciar totalmente o estilo do resto do texto – se ficasse no
mesmo estilo, causaria um problema estético gravíssimo para o meu romance.
Brasileiros
– Então, na verdade você cria
um efeito cômico, já que o texto do diário é diametralmente oposto à pretensão
da autora do diário.
Ricardo
– Acho que o
diário é criado para simbolizar uma perturbação, tem que ser uma perturbação
diferente da que o narrador está vivendo, que é de outra ordem. Essa operação
que eu faço é antiquíssima, vem de Proust. Não é uma invenção minha dar o
próprio nome ao personagem e recriar eventos do passado, é uma coisa
proustiana. Escrevi um conto na revista Granta, em que o personagem
também tem o meu nome, também joga xadrez, e vai para Rússia, desiste da
literatura e entra em uma seita esotérica. Faço isso há bastante tempo. Não tem
novidade nenhuma.
Brasileiros
– Tem uma questão ética que é
delicada, ou seja, se você sabe que pode causar uma leitura errada e uma ou
mais pessoas podem ser prejudicadas, isso não te impede de escrever?
Ricardo
– É para
prejudicar as pessoas sim. A arte é uma coisa que existe para causar desacordo,
desarranjo e tensão. Ela tem de prejudicar inclusive pessoas físicas. A melhor
arte causa ódio, causa raiva. O Picasso com Guernica incomodou
bastante o Franco.
Brasileiros
– Por que tem de incomodar?
Ricardo
– Porque
senão a arte é uma coisa indiferente, não é algo que realmente interveio.
Brasileiros
– E esse princípio você
seguiu desde o primeiro livro?
Ricardo
– Não tinha
muita consciência, mas a partir do segundo livro queria incomodar. Critiquei o
meio acadêmico, critiquei o meio corporativo, critiquei o meio religioso e
agora critico o meio jornalístico.
Brasileiros
– Tem algum outro
artista/escritor que faz esse trabalho de incomodar?
Ricardo
– Coetzee,
que não teve o visto renovado nos EUA, e teve de sair da África do Sul porque
foi acusado de racista pelo romance Desonra.
Brasileiros
– Aqui no Brasil você vê
alguém fazendo isso?
Ricardo
– Acho que
no Brasil a literatura contemporânea continua presa ao movimento de
profissionalização que vem ocorrendo muito fortemente, e isso traz uma espécie
de obediência às regras mais ou menos estabelecidas, então tem uma serie de
autores que escrevem de maneira preconcebida para agradar uma série de editores
e também um grupo específico de leitores que são pessoas da classe média que
têm interesse na literatura como uma espécie de ornamento, para participar de
alguns eventos nas férias e se sentirem mais ou menos elegantes. Há autores
eleitos, autores que conseguem escrever sem incomodar ninguém, com temáticas
que nunca vão incomodar ninguém, e uma das consequências disso é que se você
tem um prêmio literário com oito jurados e escreve para não incomodar ninguém,
a sua chance de os oito jurados ficarem satisfeitos com você é mais alta do que
a de um que escreve e incomoda determinada ideologia. Se você se desideologiza,
rapidamente você cresce no contexto literário. O que não significa que se você
não aceita isso não cresça, porque eu nunca tive problema.
Brasileiros
– Quem incomodou em outros
momentos?
Ricardo
– Na
literatura brasileira? Antonio Callado. Graciliano foi até preso, porque era do
partido [comunista], mas também era escritor. Oswald de Andrade sempre
incomodou muito. Eu acho que o atual momento é de calmaria, você tem muitas
oportunidades que também são oportunidades financeiras, quanto menos gente
desagrada, as chances de poder viajar, ganhar passagens, ir a eventos, ter
privilégios são maiores.
Brasileiros
– Você deixou mais ou menos
claro que jamais aceitaria um convite da Flip.
Ricardo
– Nunca fui
convidado pela Flip. Há um discurso criado e há um discurso verdadeiro. A
literatura contemporânea brasileira está chamando uma brutal atenção no
exterior. Esse discurso não é inteiramente mentira, mas é um discurso criado; a
intensidade com que a literatura brasileira tem chamado atenção no exterior é
muitíssimo inferior ao que está sendo divulgado. Vou dar exemplos banais. Eu
estive na Europa 15 dias atrás, em Paris, Londres, e fui a todas as livrarias
boas das cidades, e os livros encontrados lá foram Jorge Amado e Paulo Coelho.
Onde está o sucesso dos autores brasileiros contemporâneos se você sequer
encontra livros deles? É um discurso criado pela indústria brasileira, porque o
Brasil vai ser homenageado na Feira de Frankfurt. Dois dias antes de eu sair da
França, agora em julho, a revista Magazine Littéraire colocou na
capa dez autores do exterior que estão chamando a atenção, e não há nenhum
brasileiro. Há uma portuguesa, um chinês, e não há brasileiro.
Brasileiros
– Queria que você falasse um
pouco da ausência do pai em Divórcio.
Ricardo
– O pai
simboliza proteção, como a pele, e no meu livro ele está sem proteção nenhuma.
Esse personagem não podia ter pai. Resta a mãe, que é uma coisa diferente. Eu
não tenho contato com o meu pai, nem sei se está vivo. Meus pais são separados
desde os meus 10 anos, fui criado pela minha mãe, que gosta muito de ler. Ela é
aposentada, foi diretora de escola pública em vários bairros. Somos de
Itaquera, mas as pessoas fazem um pouco de confusão, porque eu não era pobre
não, minha mãe sempre foi classe média. Ela foi transferida para uma escola lá
perto e fui criado num conjunto habitacional. Moramos lá e depois fui estudar
na Unicamp.
Brasileiros
– Então, a sua mãe é uma
figura importante em Divórcio?
Ricardo
– Minha mãe
se diverte muito com essas histórias, nunca tive overdose e minha mãe nunca foi
atrás de mim por causa de overdose nenhuma, e ela lê e acha muito engraçado. As
pessoas perguntam se foi difícil conviver com isso, ela se diverte.
Brasileiros
– Você falou que escrever foi
uma forma de terapia, de resistência?
Ricardo –
Não sei se foi uma forma de resistência. Escrevi alguns textos posteriores a um trauma
que eu tive, textos de ficção, não sei se de resistência como comprovação de
que eu era capaz de continuar o trabalho, talvez.
Brasileiros
– O que te move a escrever?
Ricardo
– Acredito
que é algo que eu faça mais ou menos bem, escrevo todos os dias de manhã há
mais ou menos 12 anos e isso me faz sentir melhor. Descarto textos, raramente
eu publico, mas em dez anos acho que houve 20 dias que eu não tenha escrito.
Mesmo no dia de Natal ou Ano Novo. Hoje, por exemplo, eu escrevi. Quando não
dá, aí é um dia ruim para mim.
Brasileiros
– Mas voltando à discussão
anterior, aquele papo de assessora de imprensa não é só de jornalista, é um
grupo bem mais amplo, inclusive das artes plásticas.
Ricardo
– Tudo bem,
só que, por exemplo, eu tenho amigos médicos que gostam de ler e não estão nem
aí, eu tenho de explicar que secretário de redação não é a secretária que pega
a correspondência. As leituras são muito amplas, e são feitas por determinados
grupos mediados pela história da pessoa. Se uma pessoa ler aquilo e falar que é
minha mãe, é totalmente legítimo, construído a partir da sua história pessoal,
dos seus medos, da sua fantasia, o problema é falar que é você, aí entra em
curto circuito. O Brasil está cheio de Brás Cubas, cara que coloca aquilo na
cabeça e fala que é o rei.
Brasileiros
– Mas a real é que não é
preciso ser jornalista para saber quem são essas pessoas que você colocou no
livro.
Ricardo
– Você
precisa estar relacionado a determinado meio que vá causar desejo de procurar
uma correspondência no livro com a vida real. Em outras pessoas, por exemplo, o
livro causou desejo de começar a correr. (No livro, o narrador começa a
correr para se recuperar da separação.) Recebi um e-mail hoje de uma pessoa
dizendo que também tem raízes libanesas e ficou comovida com essa parte do
livro. Ela não está interessada em saber quem é o secretário de redação.
Brasileiros
– O livro tem uma postura
claramente antielitista, é disso que trata, o elitismo da imprensa, o elitismo
das pessoas.
Ricardo
– Que se
consideram donos da verdade. Claro que sim. Faz parte do meu projeto. A literatura atual no Brasil deixou de ter
uma tensão. Vou dar um exemplo simples. No Brasil, até uns anos atrás o que
mais imperava na literatura é a chamada violência urbana, sobretudo a violência
das classes baixas invadindo o espaço das classes altas, que é uma violência
residual. A verdadeira violência no Brasil é uma violência fechada em que a
classe baixa mata a classe baixa. Eu sei que pode haver uma violência na
Avenida Paulista e a polícia vai
imediatamente parar, enquanto nas favelas a mortandade é causada tanto pela
polícia quanto pelas pessoas que moram lá. No entanto, a literatura quis
retratar essa violência residual. Quais as razões disso? É que essa violência é
um grande medo da classe média, das classes altas que colocam câmera no prédio,
e também é a única violência noticiada nos grandes jornais. Quem me disse isso
foi um jornalista de um grande jornal. A literatura, ao invés de causar tensão
em relação a essa classe, denunciar flagelo e medo, ela adere a essa classe que
é a classe consumidora, formadora do grupo literário. E esses livros chamam a
atenção no momento que são lançados, depois vem a nova moda. Você fez comércio
e não fez arte.
Brasileiros
– Você foi a alguma manifestação?
Ricardo
– Fui a
três. Na primeira, eu não consegui ir ao Municipal, fui pego no meio do
burburinho. A polícia já estava no meio do caminho e não consegui voltar. Aí,
eu voltei e fiz a aula protesto, que está no YouTube. Acho que os ônibus têm de
ser gratuitos. Acho que as manifestações foram boas, independentemente desse
monte de discursos que criaram, acho que foi importante para o Brasil. E eu
também não acho tão estranho que pessoas quebrem banco, a partir do momento que
você tem uma taxa de juros do jeito que é e que as pessoas têm uma dificuldade
de vida enorme. Eu já tive vontade de quebrar o banco, só não quebrei. Tomara
que essas manifestações continuem.
Fonte: Revista Brasileiros
Nenhum comentário:
Postar um comentário