Psicanálise e Literatura
são dois discursos autônomos e delimitados. Desse modo, procuramos sempre
respeitá-los em suas diferenças, tendo como hipótese de trabalho a proximidade
entre ambos, proximidade nascida tanto da íntima relação que Sigmund Freud manteve
com o texto literário, como do fato de ele revelar-se exímio escritor ao narrar
seus casos clínicos à maneira de romances. O texto literário foi seu objeto de
estudo, pois nele percebia antecipadamente aquilo que eram os fundamentos de
sua descoberta. É o contar das histéricas, e sobre as histéricas que marcam a
história, também narrada por Freud, o que firmou a dimensão da fala e da
escrita como fundamental para a elaboração do saber psicanalítico.
Partindo
da consideração de que existem duas modalidades de construção narrativa em
Freud, ele opta por privilegiar uma leitura do texto psicanalítico, que
focaliza a “escrita do sintoma” em detrimento do esforço de elaboração e
explicação metapsicológicos que buscam acompanhar os postulados da ciência. É o
contar, o contar das histéricas e sobre as histéricas que marcam a história,
também contada por Freud, da psicanálise. Seria na verdade um romance do
sintoma sobre o qual a psicanálise apoia-se e se funda (TEIXEIRA,
2005, p. 116).
Assim sendo, a fala
impõe-se como instrumento a ser utilizado pela psicanálise na investigação dos
males que afligem aqueles que procuram tal modalidade de cura, e a escrita impõe-se
como modo de circunscrever o real que escapa e insiste nesta fala. “Atenção aos
detalhes é consubstancial a uma conduta científica preocupada em ouvir as
palavras exatas de um paciente, em saborear o discurso preciso de um escritor” (BELLEMIN-NOËL,
1978, p. 19).
Os sonhos, os atos falhos,
os sintomas, os chistes, as fantasias, enfim as formações inconscientes são
produto de um trabalho de elaboração psíquica que lhes confere seu aspecto enigmático
e a consequente necessidade de interpretação para serem decifrados. Tais formações
têm como função fazer valer um desejo inconsciente, que, por ter sido
recalcado, ou seja, excluído dos investimentos narcísicos do sujeito, busca
nessas formações satisfação e reconhecimento, uma vez que, segundo Freud, o ser
falante a nada renuncia, apenas troca uma satisfação por outra. Tais formações
ganham significação através da linguagem e das palavras com as quais o ser
falante conta a sua história. É entre essas formações inconscientes que Freud
situa a atividade do escritor.
O escrito assim como as
formações inconscientes são o retorno do recalcado, portanto é o desejo
inconsciente que produz o texto. Em seu trabalho “Escritores criativos e
devaneios” (1908/1907), Freud compara o escritor
criativo com o homem que devaneia, portanto compara o escrito com o fantasiar.
“A linguagem da criança que brinca, do homem que sonha, do ‘louco’ é uma
linguagem obscura, que o inconsciente habita e distorce permanentemente” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p.
36).
É a essa linguagem truncada, distorcida que a escuta do psicanalista está
atenta, e é também ela que ele encontra nos escritos literários, quando se debruça
sobre eles para analisá-los criticamente com os pressupostos psicanalíticos.
Assim, tal como as formações inconscientes, no texto literário não é o sentido
literal que importa, mas sim a lógica dos significantes que compõem a narração.
Uma lógica que só pode ser decifrada com os elementos do próprio texto, claro
que aqui nos referimos a uma análise do texto, tendo como ponto de partida a
produção de um novo saber que poderá fazer avançar a teoria, e a suposição de
que há ali um sujeito, que é o autor, neste caso, uma função e não uma pessoa.
Barthes (1982)
diz que uma possível definição da literatura está no fato de ela não ser o sentido
literal da frase. Para ele, a literatura é um sistema que não tem a função de comunicar
um significado objetivo, exterior e preexistente ao sistema, mas criar somente
um equilíbrio de funcionamento, uma significação em movimento. Desse modo,
podemos inferir que é isso que confere peso e importância à literatura para a
análise crítica psicanalítica, uma vez que a linguagem inconsciente também não
tem como função a comunicação, mas sim a possível revelação de um saber sobre o
desejo inconsciente.
É na dimensão dessa
linguagem distorcida, sem intenção de comunicar que trabalham o escritor e o
psicanalista, com a diferença de que o escritor utiliza-se dela constituindo,
com o ato de sua escrita, um saber inconsciente que desconhece, enquanto o
psicanalista, com sua escuta, objetiva a elaboração do saber sobre as leis que
regem o inconsciente. Enquanto o escritor tem acesso singular a essa linguagem
que não tem tempo, nem intenção, nem significação pré-determinada, o
psicanalista tem que se debruçar por sobre suas investigações clínicas, tendo
como sustentação de seu desejo a crença no inconsciente. E é aí que Freud avisa-nos
do respeito que devemos ter para com o escritor, uma vez que este pode
ensinar-nos muito a respeito do saber inconsciente. “Seus comentários indicam o
artista, justamente pelo comércio especial com o inconsciente, como um
precursor da psicanálise, que deve colocar-se na posição respeitosa de aprender
com ele” (SOUZA, 2002, p. 268).
Ao discorrer sobre as
abordagens psicanalíticas do texto literário, Bellemin-Noël (1978)
especifica três tipos: (1) aquela abordagem cuja
aproximação acontece por intermédio da investigação sobre as categorias: as
narrativas exemplares, os tipos e motivo, os gêneros literários, os modelos
formais. “Todas essas categorias de fatos que poderíamos batizar de transliterários,
na medida em que textos e escritores se valem delas, exploram-nas, recorrem a elas
com um modo ou uma intensidade originais” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p.
53); (2) aquela que ocorre a partir do interesse no autor, em
que podemos identificar várias vertentes, dependendo do enfoque da análise.
Assim, temos a patografia, a psicobiologia, a psicocrítica, as psicanálises
textuais. “Entre aqueles que visaram, e ainda visam ao autor, constatamos que o
interesse deslocou-se do indivíduo (digamos: o gênio com sua neurose) para o
escritor [...]” (BELLEMIN-NOËL, 1978, p. 67),
e (3)
aquela que pode dar-se por meio da leitura do texto, excluindo o autor. “[...]
é uma atividade que se choca com nossos hábitos críticos e que suscita obscuras
resistências mesmo naqueles em que menos se espera; todavia, parece que é aí
que reside o futuro das pesquisas em ‘psicanálise literária’” (BELLEMIN-NOËL,
1978, p. 83).
Souza (2002),
ao
tecer comentários sobre as complexas relações do psicanalista com o texto
literário, sublinha que a psicanálise é uma prática que não se separa da
teoria. Desse modo, faz-se necessário que o psicanalista delimite sua prática
clínica e sua relação com o texto literário a partir dos pressupostos
psicanalíticos. Para situar as diferenças dessas posições assumidas pelo
psicanalista, podemos começar a delimitar os textos aí em jogo, pois do que se
trata em um caso como noutro são textos cujo sentido é inconsciente. O texto apresentado
pelo analisando na prática clínica são seus sintomas, seus sonhos, suas
fantasias, aos quais acrescenta elementos em um processo de associação livre,
os quais possibilitam a continuidade do discurso, portanto do deslocamento
significante. Ao psicanalista cabe fazer valer a barra que separa o
significante do significado, isso nos momentos de interrupção das associações,
apenas com o intuito de dar continuidade à fala. Portanto o psicanalista nada acrescenta
ao material do analisando. Ao dirigir suas associações e seus textos ao
psicanalista, o analisando espera deste uma resposta sobre aquilo que o aflige.
Assim, é sob transferência que se dá a relação do texto do analisando e o
psicanalista.
Diferentemente do texto do
analisando, o texto escrito por um autor, sobre o qual se debruça o
psicanalista, não tem a presença daquele para realizar as associações. A essa ausência,
o psicanalista deve fazer suplência. De acordo com Souza (2002,
p. 286)
“[...] eis aí o ponto em que as diferentes abordagens, ainda que originadas na
psicanálise, podem divergir e seguir caminhos distintos”. Assim, caso ele faça
suplência a essa ausência com elementos do próprio texto, temos uma análise
crítica que exclui o autor, como a textanálise; se ele busca na biografia do
autor, portanto fora do texto literário os elementos para as associações, essa
é uma análise cuja abordagem é psicobiografia ou patografia.
Sobre o texto literário,
podemos dizer, ainda, que ele não é, ao menos de forma geral, dirigido ao outro
na busca de respostas, de um saber. De tal modo, não há constituição de um sujeito
suposto saber, pois não é sob transferência que a relação do psicanalista com
este texto se dá. Tal como o texto do analisando, ele porta um saber, mas que
só poderá ser decifrado a partir de seus próprios elementos. Segundo Souza
(2002),
enquanto na clínica o psicanalista ocupa o lugar de sujeito suposto saber, que
promove o surgimento do sujeito entre um significante e outro, num processo
metonímico e metafórico próprio à técnica psicanalítica, o crítico psicanalista
ocupa o lugar que podemos aproximar ao lugar ocupado pelo analisando, já que é
a ele que cabe fazer suplência a ausência deste nas associações livres. Essa
suplência é feita sobre um texto que não é de sua autoria e sim de um outro.
Ainda, de acordo com Souza (2002), é a crença de que
há no texto literário um saber que pode fazê-lo avançar na teoria
psicanalítica, que possibilita ao crítico psicanalista sustentar esse lugar de
suplência, que advém da ausência de um suposto sujeito que seria o autor.
Não devemos esquecer que o
texto literário é fundamentalmente linguagem, uma linguagem que visa
representar o real, portanto não podemos ter a ilusão de que ele possa ter uma
única interpretação, porque “O real não é representável, e é porque os homens
querem constantemente representá-lo por palavras que há uma história da
literatura” (BARTHES, 2007, p. 21). Assim sendo,
tanto para o crítico como para o escritor só lhes resta fazer borda ao real
pelo simbólico. Trata-se da função criativa do significante, que sempre nos
remeterá à outra significação, cujo limite é necessário tanto num caso como no
outro elaborar.
By:
Leda Mara Ferreiro
In:
Entrelinhas, Revista do
Curso de Letras – Univ. Vale do Rio dos Sinos
Referências
BARTHES, Roland. Aula.
Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007. 95 p.
BELLEMIN-NÖEL, Jean.
Psicanálise e Literatura. Tradução de Álvro Lorencini e Sandra Nitrini. São
Paulo: Cultrix, 1978. 101 p.
FREUD, Sigmund. Escritores
criativos e devaneio. Tradução sob a Direção-Geral e Revisão Técnica de Jayme
Salomão. In: _____. Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, v. IX, 1969. 281 p.
SOUBBOTNIK, Olga Maria M.
C. Souza. A psicanálise e as letras. In: MORAES, Alexandre (Org.). Modernidades
e pós-modernidades: literatura em dois tempos. Vitória-ES: Edufes, 2002. p.
264-291.
TEIXEIRA, Leônia
Cavalcante. O lugar da Literatura na constituição da clínica psicanalítica de
Freud. Psyche (São Paulo), São Paulo, v. 9, n. 16, dez. 2005. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-11382005000200008&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em: 25 abr. 2011.
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