História do Conceito de
Saúde
O conceito de saúde
reflete a conjuntura social, econômica, política e cultural. Ou seja: saúde não
representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar,
da classe social. Dependerá de valores individuais, dependerá de concepções
científicas, religiosas, filosóficas. O mesmo, aliás, pode ser dito das
doenças. Aquilo que é considerado doença varia muito. Houve época em que
masturbação era considerada uma conduta patológica capaz de resultar em
desnutrição (por perda da proteína contida no esperma) e em distúrbios mentais.
A masturbação era tratada por dieta, por infibulação, pela imobilização do
"paciente", por aparelhos elétricos que davam choque quando o pênis
era manipulado e até pela ablação da genitália. Houve época, também, em que o
desejo de fuga dos escravos era considerado enfermidade mental: a drapetomania
(do gregodrapetes, escravo). O diagnóstico foi proposto em 1851 por
Samuel A. Cartwright, médico do estado da Louisiana, no escravagista sul dos
Estados Unidos. O tratamento proposto era o do açoite, também aplicável à
"disestesia etiópica", outro diagnóstico do doutor Cartwright, este
explicando a falta de motivação para o trabalho entre os negros escravizados.
Real ou imaginária, a doença, e sobretudo a doença transmissível,
é um antigo acompanhante da espécie humana, como o revelam pesquisas
paleontológicas. Assim, múmias egípcias apresentam sinais de doença (exemplo: a
varíola do faraó Ramsés V). Não é de admirar que desde muito cedo a Humanidade
se tenha empenhado em enfrentar essa ameaça, e de várias formas, baseadas em
diferentes conceitos do que vem a ser a doença (e a saúde). Assim, a concepção
mágico–religiosa partia, e parte, do princípio de que a doença resulta da ação
de forças alheias ao organismo que neste se introduzem por causa do pecado ou
de maldição. Para os antigos hebreus, a doença não era necessariamente devida à
ação de demônios, ou de maus espíritos, mas representava, de qualquer modo, um
sinal da cólera divina, diante dos pecados humanos. Deus é também o Grande
Médico: "Eu sou o Senhor, e é saúde que te trago" (Êxodo 15, 26);
"De Deus vem toda a cura" (Eclesiastes, 38, 1–9).
A doença era sinal de
desobediência ao mandamento divino. A enfermidade proclamava o pecado, quase
sempre em forma visível, como no caso da lepra Trata–se de doença contagiosa,
que sugere, portanto, contato entre corpos humanos, contato que pode ter
evidentes conotações pecaminosas. O Levítico detém–se longamente na maneira de
diagnosticar a lepra; mas não faz uma abordagem similar para o tratamento. Em
primeiro lugar, porque tal tratamento não estava disponível; em segundo, porque
a lepra podia ser doença, mas era também, e sobretudo, um pecado. O doente era
isolado até a cura, um procedimento que o cristianismo manterá e ampliará: o
leproso era considerado morto e rezada a missa de corpo presente, após o que
ele era proibido de ter contato com outras pessoas ou enviado para um
leprosário. Esse tipo de estabelecimento era muito comum na Idade Média, em
parte porque o rótulo de lepra era frequente, sem dúvida abrangendo numerosas
outras doenças.
Os preceitos religiosos do
judaísmo expressam–se com frequência em leis dietéticas, que figuram, em
especial, nos cinco primeiros livros da Bíblia (Torá, ou Pentateuco). Sua
finalidade mais evidente é a de manter a coesão grupal, acentuando as
diferenças entre hebreus e outros povos do Oriente Médio. Essas disposições
eram sistemas simbólicos, destinados a manter a coesão do grupo e a
diferenciação com outros grupos, mas podem ter funcionado na prevenção de
doenças, sobretudo de doenças transmissíveis. Por exemplo, um animal não
poderia ser abatido por pessoa que tivesse doença de pele, o que faz sentido:
lesões de pele podem conter micróbios. Moluscos eram proibidos, e dessa forma
certas doenças, como a hepatite transmitida por ostras, podiam ser evitadas.
Isso não significa que a prevenção fosse exercida conscientemente; as causas
das doenças infecciosas eram desconhecidas. Seria muito difícil, por exemplo,
associar a carne de porco à transmissão da triquinose. Para isto há uma
explicação ecológica, por assim dizer. A criação de suínos, no Oriente Médio,
seria um contra–senso. Trata–se de uma região árida, sem a água de que esses
animais necessitam como forma de manter seu equilíbrio térmico. Além disso,
povos nômades teriam dificuldades em manter um animal que se move pouco, como o
porco. Finalmente, ao contrário dos bovinos, que servem como animal de tração e
que proporcionam leite, o suíno só fornece a carne – uma luxúria, portanto, uma
tentação que era evitada pelo rígido dispositivo da lei.
Em outras culturas era o
xamã, o feiticeiro tribal, quem se encarregava de expulsar, mediante rituais,
os maus espíritos que se tinham apoderado da pessoa, causando doença. O
objetivo é reintegrar o doente ao universo total, do qual ele é parte. Esse universo
total não é algo inerte: ele "vive" e "fala"; é um
macrocorpo, do qual o Sol e a Lua são os olhos, os ventos, a respiração, as
pedras, os ossos (homologação antropocósmica). A união do microcosmo que é o
corpo com o macrocosmo faz–se por meio do ritual.
Entre os índios Sarrumá,
que vivem na região da fronteira entre Brasil e Venezuela, o conceito de morte
por causa natural ou mesmo por acidente praticamente inexiste: sempre resulta
da maldição de um inimigo. Ou, então, conduta imprudente: se alguém come um
animal tabu, o espírito desse animal vinga–se provocando doença e morte.
A tarefa do xamã é
convocar espíritos capazes de erradicar o mal. Para isso ele passa por um
treinamento longo e rigoroso, com prolongada abstinência sexual e alimentar;
nesse período aprende as canções xamanísticas e utiliza plantas com substâncias
alucinógenas que são chamarizes para os espíritos capazes de combater a doença.
A medicina grega
representa uma importante inflexão na maneira de encarar a doença. É verdade
que, na mitologia grega, várias divindades estavam vinculadas à saúde. Os
gregos cultuavam, além da divindade da medicina, Asclepius, ou Aesculapius (que
é mencionado como figura histórica na Ilíada), duas outras deusas,
Higieia, a Saúde, e Panacea, a Cura. Ora, Higieia era uma das manifestações de
Athena, a deusa da razão, e o seu culto, como sugere o nome, representa uma
valorização das práticas higiênicas; e se Panacea representa a idéia de que
tudo pode ser curado – uma crença basicamente mágica ou religiosa –, deve–se
notar que a cura, para os gregos, era obtida pelo uso de plantas e de métodos
naturais, e não apenas por procedimentos ritualísticos.
Essa visão religiosa
antecipa a entrada em cena de um importante personagem: o pai da Medicina,
Hipócrates de Cós (460–377 a.C.). Pouco se sabe sobre sua vida; poderia ser uma
figura imaginária, como tantas na Antigüidade, mas há referências à sua
existência em textos de Platão, Sócrates e Aristóteles. Os vários escritos que
lhe são atribuídos, e que formam o Corpus Hipocraticus, provavelmente
foram o trabalho de várias pessoas, talvez em um longo período de tempo. O
importante é que tais escritos traduzem uma visão racional da medicina, bem
diferente da concepção mágico–religiosa antes descrita. O texto intitulado
"A doença sagrada" começa com a seguinte afirmação: "A doença
chamada sagrada não é, em minha opinião, mais divina ou mais sagrada que
qualquer outra doença; tem uma causa natural e sua origem supostamente divina
reflete a ignorância humana".
Hipócrates postulou a
existência de quatro fluidos (humores) principais no corpo: bile amarela, bile
negra, fleuma e sangue. Desta forma, a saúde era baseada no equilíbrio desses
elementos. Ele via o homem como uma unidade organizada e entendia a doença como
uma desorganização desse estado. A obra hipocrática caracteriza–se pela
valorização da observação empírica, como o demonstram os casos clínicos nela
registrados, reveladores de uma visão epidemiológica do problema de
saúde–enfermidade. A apoplexia, dizem esses textos, é mais comum entre as
idades de 40 e 60 anos; a tísica ocorre mais frequentemente entre os 18 e os 35
anos. Essas observações não se limitavam ao paciente em si, mas a seu ambiente.
O texto conhecido como "Ares, águas, lugares" discute os fatores
ambientais ligados à doença, defendendo um conceito ecológico de
saúde–enfermidade.
Daí emergirá a ideia de
miasma, emanações de regiões insalubres capazes de causar doenças como a
malária, muito comum no sul da Europa e uma das causas da derrocada do Império
Romano. O nome, aliás, vem do latim e significa "maus ares" (é bom
lembrar que os romanos incorporam os princípios da medicina grega).
Galeno (129–199) revisitou
a teoria humoral e ressaltou a importância dos quatro temperamentos no estado
de saúde. Via a causa da doença como endógena, ou seja, estaria dentro do
próprio homem, em sua constituição física ou em hábitos de vida que levassem ao
desequilíbrio.
No Oriente, a concepção de
saúde e de doença seguia, e segue, um rumo diferente, mas de certa forma análogo
ao da concepção hipocrática. Fala–se de forças vitais que existem no corpo:
quando funcionam de forma harmoniosa, há saúde; caso contrário, sobrevem a
doença. As medidas terapêuticas (acupuntura, ioga) têm por objetivo restaurar o
normal fluxo de energia ("chi", na China; "prana", na
Índia) no corpo.
Na Idade Média europeia, a
influência da religião cristã manteve a concepção da doença como resultado do
pecado e a cura como questão de fé; o cuidado de doentes estava, em boa parte,
entregue a ordens religiosas, que administravam inclusive o hospital,
instituição que o cristianismo desenvolveu muito, não como um lugar de cura,
mas de abrigo e de conforto para os doentes. Mas, ao mesmo tempo, as ideias
hipocráticas se mantinham, através da temperança no comer e no beber, na
contenção sexual e no controle das paixões. Procurava–se evitar o contra
naturam vivere, viver contra a natureza. O advento da modernidade mudará
essa concepção religiosa.
O suíço Paracelsus
(1493–1541) afirmava que as doenças eram provocadas por agentes externos ao
organismo. Naquela época, e no rastro da alquimia, a química começava a se
desenvolver e influenciava a medicina. Dizia Paracelso que, se os processos que
ocorrem no corpo humano são químicos, os melhores remédios para expulsar a
doença seriam também químicos, e passou então a administrar aos doentes
pequenas doses de minerais e metais, notadamente o mercúrio, empregado no
tratamento da sífilis, doença que, em função da liberalização sexual, se tinha
tornado epidêmica na Europa.
Já o desenvolvimento da
mecânica influenciou as idéias de René Descartes, no século XVII. Ele postulava
um dualismo mente–corpo, o corpo funcionando como uma máquina. Ao mesmo tempo,
o desenvolvimento da anatomia, também consequência da modernidade, afastou a
concepção humoral da doença, que passou a ser localizada nos órgãos. No famoso
conceito de François Xavier Bichat (1771–1802), saúde seria o "silêncio
dos órgãos".
Mas isto não implicou
grandes progressos na luta contra as doenças, que eram aceitas com resignação:
Pascal dizia que a enfermidade é um caminho para o entendimento do que é a
vida, para a aceitação da morte, principalmente de Deus. Mais tarde, os
românticos não apenas aceitariam a doença, como a desejariam: morrer cedo (de
tuberculose, sobretudo) era o destino habitual de poetas e músicos como Castro
Alves e Chopin. Para o poeta romântico alemão, a doença refinaria a arte de
viver e a arte propriamente dita. Saúde, nestas circunstâncias, era até
dispensável.
Mas a ciência continuava
avançando e no final do século XIX registrou–se aquilo que depois seria
conhecido como a revolução pasteuriana. No laboratório de Louis Pasteur e em
outros laboratórios, o microscópio, descoberto no século XVII, mas até então
não muito valorizado, estava revelando a existência de microorganismos
causadores de doença e possibilitando a introdução de soros e vacinas. Era uma
revolução porque, pela primeira vez, fatores etiológicos até então
desconhecidos estavam sendo identificados; doenças agora poderiam ser prevenidas
e curadas.
Esses conhecimentos
impulsionaram a chamada medicina tropical. O trópico atraía a atenção do
colonialismo, mas os empreendimentos comerciais eram ameaçados pelas doenças
transmissíveis endêmicas e epidêmicas. Daí a necessidade de estudá–las, preveni–las,
curá–las. Nessa época nascia também a epidemiologia, baseada no estudo pioneiro
do cólera em Londres, feito pelo médico inglês John Snow (1813–1858), e que se
enquadrava num contexto de "contabilidade da doença". Se a saúde do
corpo individual podia ser expressa por números – os sinais vitais –, o mesmo
deveria acontecer com a saúde do corpo social: ela teria seus indicadores,
resultado desse olhar contábil sobre a população e expresso em uma ciência que
então começava a emergir, a estatística.
O termo é de origem alemã,
Statistik, e deriva de Staat, Estado, o que é bastante
significativo, pois o desenvolvimento da estatística coincide com o surgimento
de um Estado forte, centralizado. A estatística teve boa acolhida na
Inglaterra, onde vigorava a ideia, mais tarde expressa em um famoso dito de
Lord Kelvin (William Thomson, 1824–1907), segundo o qual tudo que é verdadeiro
pode ser expresso em números.
Na verdade, métodos
numéricos no estudo da sociedade, aí incluída a situação de saúde, já haviam sido
introduzidos no século XVII. O médico e rico proprietário rural William Petty
(1623–1687) iniciara o estudo do que denominava de "anatomia
política", coletando dados sobre população, educação, produção e também
doenças. John Graunt (1620–1674), comerciante de profissão, mas membro da Royal
Society, havia conduzido, com base nos dados de obituários, os primeiros
estudos analíticos de estatística vital, identificando diferenças na
mortalidade de diferentes grupos populacionais e correlacionando sexo e lugar
de residência. Esse processo ganhou impulso no século XIX.
Em 1826, Louis René
Villermé (1782–1863), médico, publicou um relatório analisando a mortalidade
nos diferentes bairros de Paris (Tableau de l'état physique et moral des
ouvriers), concluindo que era condicionada sobretudo pelo nível de renda.
Na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, também surgiram estudos desse
tipo: é que ali se faziam sentir com mais força os efeitos, sobre a saúde, da
urbanização, da proletarização. Esta foi a situação que inspirou Friedrich
Engels a escrever Condição da classe trabalhadora na Inglaterra. A
partir de 1840 aparecem os Bluebooks e inquéritos estatísticos.
Caráter pioneiro nas
estatísticas de saúde é atribuído a William Farr (1807–1883). Médico, Farr
tornou–se em 1839 diretor–geral do recém–estabelecido General Register
Office da Inglaterra, e aí permaneceu por mais de 40 anos. Seus Annual
Reports, nos quais os números de mortalidade se combinavam com vívidos
relatos, chamaram a atenção para as desigualdades entre os distritos
"sadios" e os "não–sadios" do país. Em 1842, Edwin Chadwick
(1800–1890) escreveu um relatório que depois se tornaria famoso: As
condições sanitárias da população trabalhadora da Grã–Bretanha. Chadwick,
que não era médico nem sanitarista, mas advogado, impressionou o Parlamento,
que em 1848 promulgou lei (Public Health Act) criando uma Diretoria
Geral de Saúde, encarregada, principalmente, de propor medidas de saúde pública
e de recrutar médicos sanitaristas. Dessa forma teve início oficial o trabalho
de saúde pública na Grã–Bretanha.
Em 1850, nos Estados
Unidos, Lemuel Shattuck, livreiro, faz um relato sobre as condições sanitárias
em Massachusetts – e uma diretoria de saúde é criada nesse Estado, reunindo
médicos e leigos. Ao mesmo tempo, outras revoluções, estas sangrentas,
ocorriam, como a de 1848, como a Comuna de Paris: Karl Marx estava
diagnosticando os males do capitalismo e propondo profundas modificações na
sociedade. Mesmo que estas não ocorressem, modificações precisavam ser feitas.
Os capitalistas e latifundiários precisavam, nas palavras de Otto von Bismarck,
o "chanceler de ferro", serem salvos deles próprios, de sua ganância
que ameaçava sacrificar a mão–de–obra operária. Bismarck criou, em 1883, um sistema
de seguridade social e de saúde que, por vários aspectos, foi pioneiro. Aliás,
na Alemanha já tinha surgido, em 1779, a ideia da intervenção do Estado na área
de saúde pública. Naquele ano começava a ser publicado o System einer
Vollständigen medicinischen Polizei, obra monumental com a qual Johan Peter
Frank (1745–1821) lançava o conceito, paternalista e autoritário, de polícia
médica ou sanitária.
Depois da Alemanha, o
sistema foi implantado na França, que, tendo anexado a Alsácia–Lorena após a
Primeira Guerra Mundial, não quis privar a população dessa região dos
benefícios de que gozava sob o Império Alemão. Vários outros países foram
copiando o sistema. Mudança substancial ocorreria à época da Segunda Guerra, na
Grã–Bretanha. Com o intuito de oferecer ao povo inglês uma espécie de
compensação pelas agruras sofridas com o conflito bélico, o governo de Sua
Majestade encarregou, em 1941, Sir William Beveridge de fazer um
diagnóstico da situação do seguro social. Dezoito meses mais tarde, Beveridge
submeteu ao governo um plano, em consequência do qual foi criado, como parte do
Welfare System, que prometia proteção "do berço à tumba", o
Serviço Nacional de Saúde, destinado a fornecer atenção integral à saúde a toda
a população, com recursos dos cofres públicos.
Mas não havia ainda um
conceito universalmente aceito do que é saúde. Para tal seria necessário um
consenso entre as nações, possível de obter somente num organismo
internacional. A Liga das Nações, surgida após o término da Primeira Guerra,
não conseguiu esse objetivo: foi necessário haver uma Segunda Guerra e a
criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da
Saúde (OMS), para que isto acontecesse.
O conceito da OMS,
divulgado na carta de princípios de 7 de abril de 1948 (desde então o Dia
Mundial da Saúde), implicando o reconhecimento do direito à saúde e da
obrigação do Estado na promoção e proteção da saúde, diz que "Saúde é o
estado do mais completo bem–estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de enfermidade". Este conceito refletia, de um lado, uma
aspiração nascida dos movimentos sociais do pós–guerra: o fim do colonialismo,
a ascensão do socialismo. Saúde deveria expressar o direito a uma vida plena,
sem privações. Um conceito útil para analisar os fatores que intervêm sobre a
saúde, e sobre os quais a saúde pública deve, por sua vez, intervir, é o de campo
da saúde (health field), formulado em 1974 por Marc Lalonde, titular
do Ministério da Saúde e do Bem–estar do Canadá – país que aplicava o modelo
médico inglês. De acordo com esse conceito, o campo da saúde abrange:
- a biologia humana,
que compreende a herança genética e os processos biológicos inerentes à vida,
incluindo os fatores de envelhecimento;
- o meio ambiente,
que inclui o solo, a água, o ar, a moradia, o local de trabalho;
- o estilo de vida,
do qual resultam decisões que afetam a saúde: fumar ou deixar de fumar, beber
ou não, praticar ou não exercícios;
-·a organização da
assistência à saúde. A assistência médica, os serviços ambulatoriais e
hospitalares e os medicamentos são as primeiras coisas em que muitas pessoas
pensam quando se fala em saúde. No entanto, esse é apenas um componente do
campo da saúde, e não necessariamente o mais importante; às vezes, é mais
benéfico para a saúde ter água potável e alimentos saudáveis do que dispor de
medicamentos. É melhor evitar o fumo do que submeter–se a radiografias de
pulmão todos os anos. É claro que essas coisas não são excludentes, mas a
escassez de recursos na área da saúde obriga, muitas vezes, a selecionar
prioridades.
A amplitude do conceito da
OMS (visível também no conceito canadense) acarretou críticas, algumas de
natureza técnica (a saúde seria algo ideal, inatingível; a definição não pode
ser usada como objetivo pelos serviços de saúde), outras de natureza política,
libertária: o conceito permitiria abusos por parte do Estado, que interviria na
vida dos cidadãos, sob o pretexto de promover a saúde. Em decorrência da
primeira objeção, surge o conceito de Christopher Boorse (1977): saúde é
ausência de doença. A classificação dos seres humanos como saudáveis ou doentes
seria uma questão objetiva, relacionada ao grau de eficiência das funções
biológicas, sem necessidade de juízos de valor.
Uma resposta a isto foi
dada pela declaração final da Conferência Internacional de Assistência Primária
à Saúde realizada na cidade Alma–Ata (no atual Cazaquistão), em 1978, promovida
pela OMS. A abrangência do tema foi até certo ponto uma surpresa. A par de suas
tarefas de caráter normativo – classificação internacional de doenças,
elaboração de regulamentos internacionais de saúde, de normas para a qualidade
da água – a OMS havia desenvolvido programas com a cooperação de
países–membros, mas esses programas tinham tido como alvo inicial duas doenças
transmissíveis de grande prevalência: malária e varíola.
O combate à malária
baseou–se no uso de um inseticida depois condenado, o
dicloro–difenil–tricloroetano (DDT), tendo êxito expressivo mas não duradouro.
A seguir foi desencadeado, já nos anos 60, o Programa de Erradicação da
Varíola. A varíola foi escolhida não tanto por sua importância como causa de
morbidade e mortalidade, mas pela magnitude do problema (os casos chegavam a
milhões) e pela redutibilidade: a vacina tinha alta eficácia, e como a doença
só se transmite de pessoa a pessoa, a existência de grande número de imunizados
privaria o vírus de seu hábitat. Foi o que aconteceu: o último caso registrado
de varíola ocorreu em 1977. A erradicação de uma doença foi um fato inédito na
história da Humanidade.
Quando se esperava que a
OMS escolhesse outra doença transmissível para alvo, a Organização ampliou
consideravelmente seus objetivos, como resultado de uma crescente demanda por
maior desenvolvimento e progresso social. Eram anos em que os países
socialistas desempenhavam papel importante na Organização – não por acaso,
Alma–Ata ficava na ex–União Soviética. A Conferência enfatizou as enormes
desigualdades na situação de saúde entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos; destacou a responsabilidade governamental na provisão da
saúde e a importância da participação de pessoas e comunidades no planejamento
e implementação dos cuidados à saúde. Trata–se de uma estratégia que se baseia
nos seguintes pontos: 1) as ações de saúde devem ser práticas, exequíveis e
socialmente aceitáveis; 2) devem estar ao alcance de todos, pessoas e famílias
– portanto, disponíveis em locais acessíveis à comunidade; 3) a comunidade deve
participar ativamente na implantação e na atuação do sistema de saúde; 4) o
custo dos serviços deve ser compatível com a situação econômica da região e do
país. Estruturados dessa forma, os serviços que prestam os cuidados primários
de saúde representam a porta de entrada para o sistema de saúde, do qual são,
verdadeiramente, a base. O sistema nacional de saúde, por sua vez, deve estar
inteiramente integrado no processo de desenvolvimento social e econômico do
país, processo este do qual saúde é causa e consequência.
Os cuidados primários de
saúde, adaptados às condições econômicas, socioculturais e políticas de uma
região deveriam incluir pelo menos: educação em saúde, nutrição adequada,
saneamento básico, cuidados materno–infantis, planejamento familiar,
imunizações, prevenção e controle de doenças endêmicas e de outros frequentes
agravos à saúde, provisão de medicamentos essenciais. Deveria haver uma
integração entre o setor de saúde e os demais, como agricultura e indústria.
O conceito de cuidados
primários de saúde tem conotações. É uma proposta racionalizadora, mas é também
uma proposta política; em vez da tecnologia sofisticada oferecida por grandes
corporações, propõe tecnologia simplificada, "de fundo de quintal".
No lugar de grandes hospitais, ambulatórios; de especialistas, generalistas; de
um grande arsenal terapêutico, uma lista básica de medicamentos – enfim, em vez
da "mística do consumo", uma ideologia da utilidade social. Ou seja,
uma série de juízos de valor, que os pragmáticos da área rejeitam. A pergunta
é: como criar uma política de saúde pública sem critérios sociais, sem juízos
de valor?
Por causa disso, nossa
Constituição Federal de 1988, artigo 196, evita discutir o conceito de saúde,
mas diz que: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença
e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para a promoção, proteção e recuperação". Este é o princípio que norteia o
SUS, Sistema Único de Saúde. E é o princípio que está colaborando para
desenvolver a dignidade aos brasileiros, como cidadãos e como seres humanos.
Moacir Scliar
IN: Physis – Revista de
Saúde Coletiva - 2007
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