O olhar sem véu: transparência e obscenidade
Tania Coelho dos Santos
Nem modernos, nem pós-modernos
Pós-modernidade, hipermodernidade ou contemporaneidade? Qual é o melhor termo para
qualificar o tipo de laço social ao qual vamos nos referir neste artigo? O primeiro termo foi cunhado
por J. F. Lyotard (1986)1 e designa o advento do relativismo pós-científico. Guiddens (1991) não
advoga um corte entre a modernidade e o período que a sucede, preferindo designá-lo como
hipermodernidade. O termo contemporaneidade é mais difuso e designa o conjunto de
transformações sociais, tecnológicas e econômicas do tempo em que vivemos. Prefiro o termo
hipermodernidade porque minha tese é a de que vivemos uma torção e não uma ruptura. Minha
tese é a de que a hipermodernidade é o desmentido de que o Nome do Pai seja o agente da lei
simbólica.
É consenso entre os psicanalistas lacanianos que a imago paterna não é mais o semblante
que regula o campo pulsional. O que é então que funciona como supereu em nossa
hipermodernidade? De acordo com Lacan, quando formulou os quatro discursos, o objeto a pode
ocupar o lugar do agente no discurso, nos sintomas e nos laços sociais. Neste caso, ele é Neste artigo vamos apresentar duas interpretações do ensino de Lacan. A primeira é a
seguinte. Diferentemente do ensina Miller (2005), não me parece que o Nome do Pai, semblante de
um Outro consistente, declina em favor de um Outro inconsistente. Não me parece que vivemos na
época do “Outro que não existe”. A hipermodernidade – do meu ponto de vista – consiste no
desmentido da função do semblante do Nome do Pai de agente da castração, de supereu. A
afirmação de que “é proibido proibir”, subverte a tese freudiana de que a neurose é o negativo da
perversão. A fantasia perversa pode expressar-se a céu aberto. Não precisa mais ser recalcada.
A segunda é a seguinte. Quando o objeto a ocupa a posição de agente no discurso (supereu)
é porque a lei do mercado impõe o rebaixamento da dignidade da Coisa (Ding) aos objetos trocáveis,
sua redução à mercadoria que se compra e se vende. Todos os objetos entram no mercado. Até
mesmo a intimidade e a dignidade de cada um, pode ensejar um exuberante mercado de imagens.
O supereu hipermoderno
Quando Lacan propôs comparar o pensamento do filósofo Kant com o de Sade, um libertino,
extraiu o seguinte paradoxo sobre a lei moral: “o supereu é um imperativo de gozo”. Kant nos
convida a renunciar aos nossos objetivos egoístas para somente promover o soberano bem coletivo.
Sade, ao contrário, defende o direito à satisfação absoluta de todos os nossos apetites mais egoístas.
Um e outro advogam, respectivamente, o direito e o avesso da lei moral. Lacan conclui que com
Kant, o moralista, quanto mais renunciamos à satisfação egoísta, mais precisaremos renunciar a ela.
Freud formalizou este mecanismo, e o batizou de recalcamento da sexualidade. Com Sade, quanto
mais gozamos, mais quebramos a cara. Freud abordou as consequências psíquicas devastadoras da
destrutividade da pulsão de morte no último período de sua obra. O sentimento inconsciente de
culpa pode conduzir a atos criminosos que satisfaçam a necessidade inconsciente de punição. A
hipótese de que existe um princípio mais primitivo que o princípio do prazer, o conduziu a admitir
que a pulsão de morte – e não o recalcamento da sexualidade – é a única a força responsável pelo
sofrimento neurótico. Lacan conclui, entretanto, que a lei moral não nos deixa nenhuma saída. Ou
renunciamos ao gozo e adoecemos de neurose, ou gozamos à vontade e destruímos a nós mesmos
e aos outros.
Para Freud, diferentemente de Lacan, Kant e Sade não são equivalentes. Um não é o avesso
do outro, tão pouco. A topologia de Freud supõe que haja uma hegemonia de um sobre o outro.
Para Freud, a lei edipiana, se por um lado nos exige renunciar ao objeto absoluto do gozo, por outro
nos permite usufruir de nossos bens, com os devidos limites. O imperativo categórico kantiano nos
protegeria de nós mesmos e do pior, a pulsão de morte. O supereu arcaico, pré-edípico, é o vilão da
saga freudiana. Cultura pura de pulsão de morte, abriga um imperativo que comanda sadeanamente
a devorar o outro ou a se fazer devorar por ele. Tal como Kant, para Freud, a felicidade não é em si
mesma um bem moral. Freud, assim como Kant, rejeitariam a moral hedonista que caracteriza nossa
época.
Na modernidade, o imperativo categórico kantiano prevaleceu. A lei edipiana, a primazia do
simbólico, o Nome do Pai, o mal-estar na civilização apaziguavam a ferocidade da pulsão e regulavam
o usufruto do corpo e dos bens. A hipermodernidade me parece sadeana. O objeto do gozo ascendeu
ao posto de comando e nos incita a gozar sempre mais, custe o que custar. O olhar, ora benevolente
ora crítico do ideal do eu, na modernidade, comparecia sempre velado. Invisível, nos observava, nos
corrigia ou nos encorajava. A instância do olhar nos contempla hoje à céu aberto. Vemos e somos
vistos permanentemente. O olhar se dá a ver, não se esconde, se mostra.
Do panoptismo ao reality show
Gerard Wajcman (2011) afirma que estaria em curso uma mudança sem precedentes em
nossa relação com o mundo, com nosso corpo e com nosso próprio ser. A hipermodernidade é a
civilização do olhar absoluto. Há olhos por todos os cantos, extensões maquínicas do olho, "próteses
do olhar". Esse deus onividente, onivoyeur, é fabricado com o auxílio da tecnologia. "Nós somos uma
nova raça de voyeurs modernos. (...) Haveria uma ameaça pesando sobre o íntimo" (Wajcman,
2011, p. 44). "A guerra política do sujeito engaja-se nisso" (Wajcman, 2011, p. 51). "Ora, não se
trata apenas de um conjunto frio de dispositivos e máquinas que nos examinam dia e noite. Podemos
nomeá-lo também de o Olho Universal… Um desejo anima este olho" (Wajcman, 2011, p. 76). O
inimigo para Wajcman é o discurso da ciência que se encarna em dispositivos científicos como
câmeras de vídeo vigilância.
Minha perspectiva é outra. O discurso da ciência não é um desejo autônomo de ver e saber.
Penso que o discurso coletivo, autodenominado de politicamente correto, é absolutamente
paranoico, não cessa de apontar supostas vítimas de preconceito ou violência e clama por mais e
mais segurança, reparação, indenização e vigilância. Os indivíduos nesta sociedade do hipercontrole
recíproco - segmentados em tribos - tornaram-se perigosos uns para os outros. Diferentemente de
Wajcman, advogamos a tese de que o campo do olhar nos dias de hoje excede o domínio da
vigilância. Na modernidade, o olhar panóptico exercia seu poder de vigilância, exame e disciplina,
ao preço de ocultar-se. O mestre via sem ser visto. Hoje o olhar não é mais oculto, ao contrário,
está a céu aberto. A vontade contemporânea de "tudo ver" é tirânica e nasce de um imperativo
político – e não simplesmente científico – de transparência que atravessa e comanda toda a ordem
social. Vigiar e ser vigiado é uma dimensão essencial da vida pública, quando vivemos divididos em
tribos que se digladiam pelo direito ao gozo na cena social. Esta guerra por direitos, eleva ao zênite
o direito absoluto à liberdade de expressão em detrimento do direito à privacidade. Em nome da
liberdade de expressão, cresce a desconfiança paranoica em relação a todo e qualquer segredo, a
tudo que é privado, a tudo que é percebido como íntimo. Basta observarmos a recente decisão do
Supremo Tribunal Federal que legitimou a publicação de biografias sem que seja necessária a
autorização do biografado. Quem achar que sua privacidade foi invadida que vá reclamar com o Juiz
e exigir indenização. O direito de bisbilhotar a vida alheia é mais importante do que o direito de
preservar a própria imagem, privacidade e intimidade. Assim pensam nossos juízes. Mais uma vitória
do discurso politicamente correto. O culto à privacidade individual ou familiar é perigoso. Serve para
ocultar práticas criminosas, potencialmente danosas aos interesses de outros indivíduos ou grupos.
Os psicanalistas sabem muito bem que o gozo opaco não pode ser extinto. Por essa razão,
advogo que o voyeurismo e o exibicionismo estão no comando. É mais uma prova da tese lacaniana
da ascensão ao zênite da civilização do objeto a. A pulsão escópica nos governa. O gozo de ser visto
acompanha o gozo de tudo mostrar, tudo exibir e tudo dar a ver, tudo bisbilhotar e tudo saber.
Para repensar os efeitos de poder, saber e prazer que o campo do olhar engendra nos dias
de hoje, retornamos à tese de Foucault: a modernidade consiste num rebaixamento geral da lei
simbólica à norma social. De acordo com Lacan (1973-1974, aula de 9/3/1974), no discurso da
civilização contemporânea, o Nome do Pai foracluído do simbólico retorna no real das normas sociais.
Interpretamos suas palavras no seguinte sentido: a metáfora como operador simbólico foi substituída
pela norma social. O instrumento normatizador é muitas vezes a média estatística. O Nome do Pai,
em nosso passado recente, orientava as identificações constituindo a instância psíquica do ideal do
eu. Diferentemente do ideal do eu, o que prevalece hoje é a identificação ao pequeno outro como
par ou como resto. Ou seja, é o privilégio do eu ideal, identificação narcísica ou, simplesmente, da
pulsão condensada no resto autoerótico.
Os grupos de pares organizam-se como tribos em torno de uma identificação ao semelhante
ou a um objeto de gozo. Há grupos constituído pelos gordos, pelos feios, pelos malhadores, pelos populares, pelos tímidos, pelos gays, pelos nerds, pelos viciados em videogame, enfim... Um novo
imaginário manifesta-se no discurso politicamente correto, nova ordem de ferro, mais feroz do que
a interdição pelo Nome do Pai. Em lugar de orientarem-se por um ideal do eu coletivizado, os
indivíduos precisam discernir qual é o eu ideal que caracteriza o grupo ao qual pertencem. Nossa
tese é: a cidade está tribalizada. Este novo imaginário é regulado pela intensificação da vigilância
interativa entre os semelhantes, que zelam pela adequação de cada um à norma de sua tribo. As
tribos reivindicam direitos iguais aos dos indivíduos de outras tribos. Às vezes, reivindicam o direito
de serem tratadas como exceção e defendem-se acusando a sociedade de abuso, violência ou
discriminação. Na era da absolutização do direito ao gozo é preciso vigiar e ser vigiado.
Em seu conhecido livro intitulado “Vigiar e Punir”, Foucault descreve a extraordinária
inversão da economia de visibilidade que se deu na passagem do Antigo Regime à modernidade. O
poder majestático do rei manifestava-se na riqueza de suas vestes e no aparato exuberante de seus
palácios e da corte que o cercava. A riqueza devia evidenciar a encarnação do poder divino em sua
pessoa, aqui na terra. A arte de punir exemplarmente os criminosos, com a exibição pública de
torturas bárbaras e demoradas, servia igualmente para demonstrar a assimetria de forças entre o
soberano e seus súditos e desencorajar os parricidas e os regicidas. O olhar dos súditos capturado,
hipnotizado pela exuberância do poder majestático, sujeitava-se ao soberano. O supereu, enquanto
uma instância intrapsíquica, não existia, pois a consciência moral apresentava-se inteiramente
externalizada, e seus efeitos de inibição sobre o comportamento potencialmente criminoso
dependiam da duração na memória das imagens sedutoras ou aterrorizantes do poder real.
Segue-se à revolução francesa, o nascimento do Estado moderno. O poder que sujeita pela
hipnose é substituído pelo olhar panóptico que vigia, controla, examina, previne e disciplina os corpos
tornando-os úteis e dóceis. A economia de visibilidade se inverte. O cidadão comum se converte em
objeto do olhar vigilante de um observador invisível refugiado em sua torre panóptica. O supereu e
o ideal do eu, instâncias morais constituídas pelas identificações pós-edipianas, serão os herdeiros
dessa inversão da economia de visibilidade. O sujeito que é olhado, também se olha, torna-se capaz
de vigiar-se, recompensar-se ou castigar-se.
Do supereu ao supersocial
Retomando o ponto de partida. O princípio identificatório que fundava o supereu não é mais
a exceção que falta à ordem simbólica. O sujeito, na civilização do gozo escópico, identifica-se com
a subjetividade “média” que funciona como eu ideal de seu grupo narcísico. Aspira conformar sua
subjetividade à norma ou ao consenso de seus pares. Por essa razão, vivemos na época dos comitês
de pares. Os comitês são norm-ativos, fazem a norma. A verdade nasce do consenso entre pares.
Toda tradição, herança simbólica e transcendência é suspeita de abrigar o segredo, o oculto, o
oracular, e conspirar contra a vontade ardente de perfeita simetria intersubjetiva e transparência absoluta. Por isso dizemos que em lugar do supereu, instância psíquica inconsciente e intrasubjetiva,
vivemos na época do supersocial.
Passemos então ao paradoxo do gozo em jogo na inflação da vigilância na
contemporaneidade. O sujeito que vigia não é mais, talvez, aquele que é observado por uma
instância crítica internalizada, o supereu pós-edípico. Se ele vigia seus pares e é vigiado por eles, é
porque a consciência moral está situada do lado de fora, na rede de olhares que se espreitam. A
chamada sociedade do controle e da prevenção, com suas câmeras de vigilância 24 horas, não
esconde o quanto as nossas cidades se tornaram hostis e perigosas.
Observa-se que na falta de uma instância intrapsíquica, de um supereu que regule a
distinção entre privado e público, a barreira do pudor se desmancha. A intimidade dos casais tem
sido um assunto recorrente na internet. A nova mania do selfie, no Instagram, são as imagens dos
casais após o sexo, seguidas pela hastag #aftersex. Este material, anteriormente escondido, agora
é exibido e compartilhado nas redes sociais. O gozo de tudo ver e mostrar, atualmente, vem sendo
reivindicado como um direito. Até onde se pode dizer que algo é obsceno diante da naturalidade
com que a pornografia vem circulando na atualidade? Se o consumo de pornografia estava restrito
à sexualidade masculina, agora ele se estende às mulheres e aos adolescentes também. Não se vê
mais a dissimetria do gozo de homens e mulheres.
O desejo de exibir-se ao final da análise: testemunhos
Em nossa comunidade, a dos psicanalistas de orientação lacaniana, também estamos
atravessados pelo desafio de formalizar os princípios dessa nova subjetividade, disposta a tudo para
“ver” e para se fazer ser “visto”. Foi um passo importante pensar os efeitos da nova cultura do
narcisismo sobre os finais de análise. Miller (2014) aposta que os testemunhos de passe hoje provam
que o sintoma/castração (inconsciente/desejo) foi substituído pelo sinthoma/pedestal
(narcisismo/sublimação). Esta aproximação da sublimação com o narcisismo é alguma coisa
relacionada com a época do falasser. Miller (2010, p. 186) dizia: “Eu diria até que seria necessário
que uma análise leve ao desejo de se exibir, quer dizer que o passe tem alguma coisa do desejo do
ator”.
O testemunho público do que uma análise revela de mais íntimo e mais êxtimo à
subjetividade de cada um, deve nos ajudar a rever nossas posições acerca do gozo escópico na
contemporaneidade. O que é que nós, psicanalistas de orientação lacaniana, queremos provocar no
público quando deitamos sobre ele uma verdadeira enxurrada de narrativas sobre a experiência do
inconsciente no divã. Demonstrar que o inconsciente não é íntimo? Demonstrar que neste terreno
também não há mais nada de que se envergonhar? Mostrar ao público que os analistas são gente
como todo mundo, com seus traumas, sintomas, angústias e inibições? Mostrar que não é mais
preciso temer a assimetria de lugares de analisando e analista, que se experimenta no divã? Trata-se de democratizar a relação entre analisando e analista?
Porque a política do passe foi levada a introduzir a experiência do divã no circuito do gozo
com o olhar? Foi a vontade de ver e saber o que anima a ciência, a motivação mais profunda?
Sabemos que o gosto hipermoderno pela avaliação generalizada, como já desenvolvi anteriormente
(Coelho dos Santos, 2010), propaga a nova “ordem de ferro”, ditadura da transparência do sujeito
a si mesmo e aos seus pares na civilização. O direito ao segredo, à privacidade, à esfera íntima, cede
seu lugar ao imperativo de mostrar. A realidade psíquica é chamada a exibir-se no reality show dos
meios de comunicação. Parece que a face de gozo do avaliacionismo é o crescimento do gosto pela
exibição de si. Um questionário pode ser vivido como uma versão de uma entrevista concedida a um
especialista. São difundidos na mídia padrões duvidosos de normalidade, engendrados por um
discurso psiquiátrico menos semiológico e mais epidemiológico, em que a ideia de “homem médio”
serve para produzir consenso social.
Sabemos muito bem que Freud ousou incluir a esfera mais íntima do sujeito no campo da
Weltanschauung científica. A perspectiva cientifica lhe permitiu ampliar o campo do que se entendia
até então por subjetividade para incluir nele o universo desconhecido das pulsões e do inconsciente.
Vivemos hoje sob a ditadura de falar de si, mostrar-se, confessar-se. Freud foi o primeiro a comandar
que se diga tudo mediante a regra fundamental da psicanálise. Mandamento impossível! Ele sabia
colher o lapso, a hiância, a falha que se opunha ao cumprimento dessa injunção. Ele nos ensinou a
reconhecer o sujeito, aí onde se manifesta, sempre velado, o desejo inconsciente. Por essa razão,
não existe uma teoria do final de análise em Freud. A análise é interminável, tanto quanto o desejo
é sempre velado. Para Lacan, diferentemente, toda análise é didática, pois a transmissão de um
saber suposto e singular sobre o inconsciente conduz, sempre que a experiência é levada até o fim,
à travessia do fantasma e à produção de um analista. O passe é um dispositivo inventado por Jacques
Lacan com a finalidade de verificar se o testemunho de um analisando demonstra que ele atravessou
o fantasma fundamental e chegou ao final de sua análise.
O dispositivo do passe, primeiramente definido como atravessamento do fantasma, foi
redefinido por Miller (2010) como uma mutação no campo do gozo. O dispositivo do passe foi
primeiramente um instrumento para-universitário (Miller et al., 1997), pois tem uma afinidade de
estrutura com o relatório de tese para uma banca. Tratava-se da demonstração e da verificação de
um possível final de análise. Um analista precisaria fazer um esforço a mais – teórico e científico –
de construção de seu próprio caso.
A intimidade tornou-se uma mercadoria?
Se o padrão nos dias de hoje é o desejo de exibir-se, desejo de ator, será que podemos
concluir que a esfera íntima entrou no mercado, tornou-se mais uma mercadoria que se compra e
se vende no facebook? E nós analistas? Inventamos o nosso próprio Big Brother?
O tema da redução da intimidade à forma mercadoria é, sem sombra de dúvida, uma questão
intrigante para nós analistas. Afinal, Marx demonstrou que o advento do capitalismo consistiu em reduzir a força de trabalho a uma mercadoria que se compra e que se vende. O trabalho foi
completamente dessacralizado e perdeu a dignidade de seus laços com a família e as corporações.
Lacan (1968-1969) em seu comentário acerca dos acontecimentos de maio de 1968 na França,
profetizou que a ascensão do valor do diploma universitário equivaleria a reduzir o saber a uma
mercadoria que se compra e que se vende. Em nossa época, quando a intimidade se torna mais uma
mercadoria e cai na rede social, já podemos dizer que também ela se submeteu à lei do mercado.
Precisamos observar como é que a política do passe, com a divulgação para auditórios cada vez
maiores de fragmentos da análise dos analistas, pode alimentar a construção dessa nova dimensão
hiperexibicionista da subjetividade na hipermodernidade.
O Outro não existe ou o Outro é lei do mercado?
Volto ao ponto de partida. É consenso entre os analistas de orientação lacaniana a adesão
à tese de que com o declínio do Nome do Pai – significante de que o Outro (Deus) existe – entramos
numa era em que o Outro não existe. Desde o advento da modernidade, a exclusão de Deus do
mundo, o advento da razão científica e a fundação do Estado laico são alguns indicadores da perda
de consistência do Outro da religião. Lacan formalizou esta época da pluralização dos Nomes do Pai
com o matema S(/A). Época de errância, de descrença e de redução do Outro a um mero semblante,
de desmaterialização acelerada do sentido do real. De acordo com Miller (1996), entramos na época
lacaniana da psicanálise. O relativismo pós-moderno conduz a uma pluralização das identificações
na sociedade que discute, delibera por meio de seus comitês de ética. A debilidade mental
generalizada e a angústia do desamparo na ausência de certezas são os índices da desconexão do
Outro.
Essa abordagem da nossa época tem seu mérito. O desbussolamento, a invenção incessante
de soluções solitárias para a falta de um ideal coletivo, a pregnância crescente do contágio
identificatório pela influência dos meios de comunicação, tudo isso demonstra a tese de que o Outro
pluralizou-se. É uma análise fundada no deslocamento político do regime monárquico para o regime
democrático. Apoiada na construção lacaniana dos quatro discursos, a tese do Outro que não existe
reside numa elaboração acerca do deslocamento do conceito do Nome do Pai para o conceito de S1
(significante mestre ou enxame de significantes). O enxame contrapõe-se à exceção. Em lugar do
significante do Nome do Pai, que designa o lugar de exceção ao conjunto – e que lhe empresta sua
consistência por permanecer fora dele –, temos a pluralização dos significantes equivalentes entre
si.
Dufour (2005) pergunta: “o Mercado não está, em nossos tempos neo-liberais, no ponto de se
constituir como novo grande Sujeito?” (Dufour, 2005, p. 75). Prossegue constatando que a narrativa
que glorifica a mercadoria é provavelmente a narrativa dominante atualmente. Com a relativização
absoluta promovida pelas narrativas do Estado-nação, a mercadoria, assim como os capitais, com
efeito, deve poder circular sem fronteiras. A mercadoria deve poder funcionar sem fronteiras também
na economia pulsional. O desejo sem objeto de cada um deve encontrar um objeto industrializado, customizado, sob medida, perfeitamente adequado à fantasia de cada consumidor. Como a
satisfação absoluta é impossível, o enfado reconduz o consumidor à demanda e retroalimenta o
mercado.
Dufour salienta que com o Mercado em sua forma atual, ampliado a todas as atividades
humanas, chegamos ao apogeu de um processo que Adam Smith identificou pelo termo “mão
invisível”. A conotação religiosa deste termo que designa a lei do mercado não escapa a nenhum
leitor atento. O mercado é o novo Deus. Ele apregoa que cada um deve perseguir livremente a
satisfação de seus interesses egoístas pois, deste modo, o interesse coletivo da sociedade será
alcançado. Este milagre se produz graças à mão invisível que regula tudo, substituindo a Providência
divina em suas obras. O mercado somente obedece à lei interna que busca escapar a todo controle
externo. E que lei é essa? De acordo com o autor é a da produção de quantidades de mercadoria
cada vez maiores a custos cada vez menores. O mercado deve criar novos usos da mercadoria,
chegando a passar para seu controle as esferas até então regidas por relações comunitárias,
interpessoais, sexuais e geracionais.
Abordagem do capitalismo hipermoderno: discurso ou rede?
Uma análise mais cuidadosa do deslocamento da lei do mercado do capitalismo moderno
até o capitalismo financeiro de nossos dias, requer, segundo me parece, migrar da noção de discurso
para a noção de rede. O discurso do mestre, matriz das três outras variantes (histérica, universitário
e do analista), nada mais é do que a formalização do complexo edipiano. Ao Nome do Pai
corresponde a letra S1. Ao desejo da mãe, a letra S2. Ao lugar do sujeito, a letra $. A letra a, escreve
o gozo, submetido à operação de recalque. O gozo incestuoso, ou impossível, deve ser recusado
para que possa submeter-se à lei do desejo e colocar-se em discurso. É uma lógica da falta-à-ser.
A lógica da rede é diferente. Ela não supõe nenhum terceiro, a alteridade da exceção, o
Nome do Pai. Tudo na rede encontra-se no mesmo plano horizontal, não há mais exterioridade nem
interioridade, nem transcendência nem imanência. O ternário edipiano deu lugar à relação dual.
Devemos tomar isso como contratos intersubjetivos que não precisam referir-se a nenhum universal.
Todo conflito não passa de um desfuncionamento das relações duais que pode ser corrigido por
meio de regulações sempre locais (por meio da norma, e não mais da lei). As interações não precisam
levar em conta nem a diferença sexual, nem a diferença geracional, pois a origem e o fim da aventura
humana não interessam a mais ninguém. A rede, segundo Dufour, constitui uma espécie de grau
zero da sociedade, já que ela foraclui toda relação com o ser. O modelo da rede nos faz passar de
um regime em que o inconsciente se manifestava de maneira prevalente pela neurose (como dívida
para com o terceiro) para um modo em que ele se manifesta por formas aparentemente psicotizantes
na pós-modernidade.
Sem dúvida, a configuração do sintoma na hipermodernidade nos exige desvendar a
estrutura do supereu que os sustenta. É inútil insistir sobre a tecla de que tomam a forma de modalidades compulsivas de gozo fora do sentido e que resistem a toda abordagem pela via da
interpretação. Se minha hipótese é correta, trata-se sempre do desmentido da castração. Um mesmo
e monótono repercutir do libelo: “é proibido proibir”. Eco da máxima sadeana: “tenho o direito de
gozar do seu corpo, pode me dizer qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite
me detenha no capricho das extorsões que me dê gosto nele saciar” (Lacan, 1998, p. 780).
O sentido do sintoma nos dias de hoje é determinado pelo discurso egoísta e hedonista que
faz a apologia do direito a um gozo que não seja limitado pela lei da castração. Interpretá-lo é nada
menos que elucidar sua estrutura, pois a pulsão é a parceira do supereu hipermoderno, tanto quanto
o desejo é o parceiro do supereu moderno. Tudo se reduz a saber quem é o terceiro, deus ou o
diabo? Qual é o imperativo que está no comando? O ideal ou o objeto a?
Nota:
Também os seguintes autores, opõem a modernidade à pós-modernidade: M. Featherstone (1995),
T. Engleton (1996), B. Smart (1993) Z. Bauman (1997), F. Jameson (1997), S. Connor (1989), D.
Harvey (1989).
Referências Bibliográficas
Bauman, Z. (1997). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar.
Brousse, M.-H. (2009, set.). A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. In Latusa
digital – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, Seção Rio de Janeiro, 6(38). Recuperado de:
http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_38_a1.pdf.
Canguilhem, G. (1978). O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
Castel, R. (1981). A gestão dos riscos. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Coelho dos Santos, T. (2010, mai.-out.). Ditadura da homogeneidade ou direito ao gozo autista
do sinthoma? In aSEPHallus – Revista de Orientação Lacaniana, 5(10). Recuperado de:
http://www.isepol.com/asephallus/numero_10/atualidades.html.
Coelho dos Santos, T. (2013, jul.-dez.). A psicanálise é uma ciência e o discurso analítico é
uma práxis? In: Revista Ágora – Estudos em Teoria Psicanalítica, 16(2). Recuperado de:
http://www.scielo.br/pdf/agora/v16n2/v16n2a08.pdf.
Coelho dos Santos, T. (2014). Responsabilidade coletiva ou responsabilidade subjetiva: a saúde
é um direito ou um dever? In Barros R. M. M e Anciães V. Psicanálise e saúde: entre o sujeito e o
Estado. Rio de Janeiro: Cia de Freud.
Coelho dos Santos, T. (2014). Do sujeito sujeitado à lei simbólica à normatividade do
supersocial. In Coelho dos Santos, T. et al (Orgs.). Os corpos falantes e a normatividade do
supersocial. Rio de Janeiro: Cia de Freud.
Connor, S. (1993). Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporânea. São Paulo:
Loyola.
Fonte:Revista aSEPHallus de Orientação Lacaniana. Rio de Janeiro, 10(20), 4-15, mai. a out. 2015.
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