Aproximações
entre a Psicanálise e a Arte
Entrevista com
Denise Maurano*
por Juliana Monteiro**
Juliana
Monteiro: Percebemos na maioria de seus trabalhos o interesse em articular arte
e Psicanálise. Em sua opinião, como esses dois campos se relacionam?
Denise
Maurano: Curiosamente, o que me levou a avançar num trabalho de aproximação
entre a psicanálise e a arte foram questões extraídas da ética na qual se pauta
a clínica psicanalítica. Tais questões norteiam a investigação que deu origem a
meu livro Nau do desejo. A ética que
implica uma reflexão sobre o agir humano, foi na perspectiva da tradição
filosófica, sempre situada em relação a um ideal a se atingir. Na abordagem
psicanalítica, visasse focalizar não um ideal, mas os impasses, os conflitos,
e, sobretudo a desmedida que vigora na relação do homem com sua ação. Meus
trabalhos propõem que a história do pensamento, assim como a história da arte,
e tudo o que envolve os encaminhamentos da cultura, mostram o desfile, ao longo
do tempo, de diferentes valores erigidos, em Nome do Pai, aos quais se pediu
uma resposta que estancasse a errância, e fechasse com um sentido as aflições
do existir humano. Cernir a vida com um sentido, apreendê-la no que se pode
nomear, eis aí o mais essencial da função paterna, função original e iniciadora
da existência do símbolo. Entretanto, tanto a arte quanto a psicanálise, embora
sendo frutos da cultura, emergem como uma ruptura com o pensamento corrente.
Não permitem a obturação da falha que existe no saber, não reduzem a vida à
representação, e denunciam a impossibilidade de tais valores erigidos em Nome
do Pai, de calarem o enigma da existência.
Juliana
Monteiro: Em seu livro “A face oculta do
amor: a Tragédia à luz da Psicanálise”, a senhora se propõe a investigar a
interlocução entre Psicanálise e Tragédia. O que a Arte Trágica poderia
interessar à teoria e a clínica psicanalítica?
Denise
Maurano: Lacan afirma que “é na dimensão trágica que as ações se inscrevem e
que somos solicitados a nos orientar em relação aos valores.” Foi por essa via que me debrucei primeiramente
sobre a relação entre a psicanálise e a arte trágica. Estes dois campos, embora
não constituam nenhuma visão totalizante do mundo, levantam reflexões
fundamentais acerca da condição humana, as quais evidenciam uma proximidade
estrutural importante entre eles. Resolvi, então, buscar, na obra de Freud e de
Lacan, elementos para a construção de uma concepção psicanalítica de trágico
que pudesse servir à elucidação da ética da intervenção analítica, tanto no que
diz respeito à clínica, quanto no que se refere à intervenção do pensamento
psicanalítico na cultura.
Na arte trágica, a dimensão de horror é
transfigurada pela presença da música e pela beleza das ações e da cena, o que
a purifica de toda a amargura que aí poderia se alojar, e lhe dá uma
perspectiva de celebração da vida em todas as suas dimensões, mesmo aquelas em
que se abriga o sofrimento. Não se pretende nela a destituição do sofrimento da
vida, o que amputaria da vida uma de suas dimensões fundamentais. A ética da
psicanálise também não recua diante da entrada na zona de horror. Nesse caso, o
que atuaria como elemento transfigurador para tornar possível a abordagem desse
insuportável seria, por um lado, a associação livre, na qual o sujeito é
convocado a dizer não importa o quê, marcando-se com isso a primazia do
significante sobre o significado, a musicalidade da fala, como o elemento que
encoraja o adentramento em terrenos de outro modo impossíveis de serem
penetrados. Sem dúvida há também uma dimensão de sentido na psicanálise,
manifestada na busca da lógica do fantasma, com o qual o sujeito veste seu eu.
Por outro lado, há ainda o que anima o trajeto do processo psicanalítico, que
tem como motor o amor, nele contextualizado como transferência. O manejo do
amor na psicanálise tem essa direção ética, o que o coloca não como meio de complementariedade,
promessa de obturação da falta, mas como via de reconciliação com a atividade
desejante. A operação de catharsis,
fundamental na tragédia, continua a ser de interesse para a psicanálise, desde
que permita ao sujeito o seu encaminhamento em direção ao desejo.
O que se configura como cultura, ethos, morada da condição humana, é o
que se tece em torno do Outro enquanto absoluta alteridade, onde,
paradoxalmente, se ancora o desejo onde o sujeito abriga o mais essencial dele
mesmo, em torno do qual o inconsciente se constitui como discurso do Outro.
Para Freud, a constituição da cultura é correlativa do assassinato do pai, como
polo de organização da lei, do pacto que visaria colocar uma ordem nas coisas.
A ambivalência na relação a este mito organizador traz como consequência a
culpa, que aparece num limite exterior como temor, e que provoca a preocupação
do homem com a conservação da vida, e com as garantias imaginárias. No entender
de Freud, o herói trágico encena a queda do pai. Tanto a tragédia, como a
psicanálise aponta, portanto, para o que se endereça para além do mito do pai.
Lacan destaca, ao longo da história, diferentes formas de incidência da função
paterna. Isso me inspirou a tentar localizá-las nos diferentes valores de
sustentação da cultura que se mostram em queda na tragédia grega, na tragédia
moderna e na tragédia contemporânea, respectivamente.
A tragédia grega, abordada, sobretudo a
partir da trilogia Tebana de Sófocles, reflete o momento da constituição da
cidade, do nascimento do Direito como via privilegiada de organização da
cultura. Expõe-se nela o apelo à lei como tentativa de responder aos impasses
da existência. Ultrapassando o limite onde se sustenta a existência humana,
tanto Édipo, quanto Antígona encontram o termo radical de seu desejo, ao preço,
entretanto, de sua aniquilação como sujeitos.
A tragédia moderna, recortada por meio do Hamlet, de Shakespeare, e da Atalia, de Racine, focaliza a vigência
do exagero, num apelo à razão. Disso decorre a vacilação do sentido e o
contraponto da loucura, seja ela de Hamlet ou de tantos outros personagens
trágicos deste período. A vigência da dúvida, ser ou não ser, a hesitação na ação, a problematização do sentido
das coisas, revelam o fracasso da pretensão da razão de cernir, com o saber, a
amplitude da vida.
Na Contemporaneidade, diferentemente desse
apelo à lei ou à razão, o que é privilegiado é o valor da libido, com tudo que
circula em torno da tematização do amor e da sexualidade. Como a tragédia O pai humilhado, de Paul Claudel, bem o
denota. A arte erótica da Antiguidade, cuja função era essencialmente estética,
cede aqui à ciência sexual, que visa apreender no discurso o que se passa na
dimensão enigmática do amor e do sexo, que são na Contemporaneidade chamados a
responder pela existência, a curar a ferida da falta-a-ser que aí vigora. A
psicanálise surge neste contexto, surge em função exatamente dessa demanda.
Mas, congruente com sua perspectiva trágica, não aparece para endossar esse
apelo, mas para esgarçá-lo até que ele se rasgue, e revele quão desmedida é a
pretensão de obturar a vida com um valor. Para a psicanálise, o apelo feito a
Eros, à pulsão sexual, não exprime a totalidade da dinâmica psíquica. Ao lado
da pulsão sexual, amalgamada a ela, age silenciosamente a pulsão de morte, o
império do não-senso, que se opõe aos
esforços da sexualidade. Não se pode então reduzir o trabalho de Freud à
referência à sexualidade, ao que gravita em torno do phallus, malgrado a importância disso. A participação da morte na
vida faz aí sua incidência, e é reconhecida tanto na teoria, quanto no rigor
ético da clínica psicanalítica.
Enfim, a dimensão do que se situa na
tragédia como queda do pai, perda de garantia onde é tocado o registro do que
está para além do domínio do phallus,
também se configura como ponto onde se localiza A/ mulher no sentido de enigma
absoluto, no sentido da alteridade absolutamente radical.
Juliana
Monteiro: Então podemos pensar em uma relação entre o trágico e o feminino?
Denise
Maurano: Curiosamente, a relação do trágico com o feminino nos conduz a uma
outra via de investigação da qual temos a pista através das observações de
Lacan no Seminário 20, Mais ainda...,
quando faz referência a sua aproximação à expressão barroca. Menciono o
Barroco, porque este, em sua relação com o feminino, nos serve de alavanca
metodológica para melhor transmitir a especificidade da perspectiva
psicanalítica. Toda a análise, na medida do possível, conduz em direção A/
mulher. Diria que esse é o ponto limite do saber, do sentido, da representação,
que está em uma relação de vizinhança com o Nada ao qual chega o herói na
tragédia, para ir até o fim com o seu desejo. Ir até o fim com seu desejo, na
psicanálise significa ultrapassar essa ancoragem do sentido, da espaçosa
subjetividade, para tocar um Nada que mostra bem seu valor efetivo, dado que é
tudo o que resta.
Juliana
Monteiro: Em seu Projeto de Pesquisa “Psicanálise e Barroco: aproximações no
campo da Ética” a senhora aborda justamente algumas convergências entre a Arte
Barroca e a Psicanálise. Quais seriam essas convergências?
Denise
Maurano: Só para situá-los, apenas no século IX, que o Barroco ganhou status de
estilo de arte. Até então, era referido como uma degeneração do Clássico, ou
arte grotesca, por mais que seus artistas encontrassem penetração no campo
social e religioso. Trata-se de um tipo de expressão artística que associa
esplendor e impureza. Nele, uma identidade a partir dos defeitos é transformada
em eloquente afirmação da natureza e assim, a vida pulsional não está encoberta
pelas exigências de harmonia e ordenação que vigoram na perspectiva clássica.
Trata-se de expressar a infinitude do ser na dimensão finita da natureza e do
humano. O sujeito apresenta-se impregnado de mundo, e mesmo confundido com ele.
Por isso a noção de “dessubjetivação” seria aquela que paradoxalmente, parece
que melhor designaria a subjetividade barroca. Ela refere-se à ideia de um sujeito
em evasão, imbricado no que o circunda. No barroco há uma inspiração musical e
de abundância, remetida a uma melodia infinita. A arte aí se faz afirmação e
sustentação do espaço constituído pela Coisa
que enquanto perdida para o humano, seria o ponto de partida de todo seu
movimento de busca. Neste ponto se revela a fecundidade do vazio, do não
proeminente, do não fálico. O que quero destacar é que, por essa via, o furo
pode ser acolhido por certos recursos que a vida e certas expressões da cultura
como o barroco, a tragédia e a psicanálise disponibilizam. Tais expressões da
cultura, talvez descortinem uma outra relação ao gozo, o qual, ao invés de
regozijar-se narcisicamente com a afirmação fálica da distinção da identidade,
remete-se a um movimento de entrega, no qual vigora uma transcendência do “si
mesmo”. Tal gozo cinge a dessubjetivação, operando uma torção que evidencia
certa relação ao feminino, que não sem razões se avizinha da mística. Com isso
se indica uma modalidade de gozo que não é do objeto, não é do Um, é do gozo
Outro. O que aí se apresenta é um campo que excede ao delimitado pela cultura
fálica, e o saber desse excesso não é senão savoir-faire
– saber fazer com a falta. Trata-se, portanto, de produzir a partir mesmo dessa
falta. Isso porque ela é irredutível, como revela o fracasso dos obturadores
imaginários que tentam suprimi-la. Toca-se aí a questão da transmissão de uma
dimensão Real da experiência, que em nosso caso é a experiência analítica.
Nessa perspectiva, a psicanálise convoca que arriscando-nos pelo “continente
negro” - maneira pela qual Freud refere-se ao feminino -, nos despertemos para
a Outra Cena onde vigora a vida não amputada da morte.
Fonte: Diálogos: Psicanálise e Arte - Boletim do Àgora Instituto Lacaniano - 2007
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