Sobre
as várias noções de estética em Freud
Ines Loureiro
Estética e teoria
da arte
Os escritos sobre psicanálise e arte, ou
sobre a estética deste ou daquele psicanalista pós-freudiano, não cessam de
crescer. Parece um terreno em que as pessoas se sentem espacialmente à vontade
para dispensar-se de maiores interrogações sobre os termos com os quais estão
trabalhando. Pouco se discute sobre uma pergunta tão simples quanto fundamental
para os estudos nesta área: “o que Freud entende por estética?”. Veremos que
uma releitura atenta dos textos freudiano pode nos revelar, como de costume,
várias e gratas surpresas.
O exame das concepções de estética
presentes na obra de Freud mostra-se especialmente profícuo quando se tem em
mente uma distinção entre estética e teoria da arte. Segundo as pistas
sugeridas pelo filósofo Hubert Damisch, seria possível discernir duas vertentes
no conjunto de proposições freudianas – as ideias referentes ao belo (estética)
e as concepções referentes à arte (teoria da arte) –, distinção que abriria
caminhos para uma série de novas reflexões sobre a teoria psicanalítica e
também sobre suas relações com esses campos adjacentes.
Um rápido parêntese para situar a história
do termo estética. Ele provém do grego aisthesis (“sensação, sentimento”) e foi
reabilitado por Alexander Baumgarten, em 1750, com o intuito de unificar o
tratamento dispensado a dois tipos de problemas em voga nos debates filosóficos
da Alemanha oitocentista: os relativos à sensibilidade e ao conhecimento
sensível, de um lado, e os referentes à esfera da arte, de outro.
Baumgarten ressuscitou o termo grego
aisthesis a fim de remediar problemas nas áreas da sensibilidade e da arte, os
quais tinham se tornado evidentes com o sistema de Wolff. O racionalismo de
Wolff reduzira a sensibilidade à “confusa percepção de uma perfeição racional”
e não deixara lugar para o tratamento filosófico da arte. Baumgarten tentou
solucionar ambos os problemas ao mesmo tempo, afirmando que o conhecimento científico
ou estético tinha sua própria dignidade e contribuía para o conhecimento
racional, e que a arte exemplificou esse conhecimento ao oferecer uma imagem
sensível da perfeição.
Em Kant, o termo é empregado em duas
grandes acepções. Grosso modo, na “Estética transcendental” da Crítica da razão
pura (1781), refere-se ao conhecimento sensível, sobretudo às formas a priori
da sensibilidade (espaço e tempo); já na Crítica da faculdade do juízo (1790)
amplia-se o alcance do termo, uma vez que os juízos estéticos são aqui
considerados como aqueles que “concernem ao belo e ao sublime da natureza ou da
arte”.
Mas deixemos de lado as discussões
subsequentes sobre a natureza e os limites da estética. De minha parte,
subscrevo a posição de Wolfgang Iser, segundo a qual “o estético não possui uma
essência própria. Ao contrário, está sempre relacionado a realidades contextuais
que governam sua concepção”. A suposta “natureza” da estética identifica-se com
a conceitualização de que ela é alvo nos diversos momentos históricos, e cada
conceitualização produz certas feições, operações e relações contextuais. A
estética teria passado por várias destas configurações a que Iser denomina
“entrincheiramentos gerativos”, ao que eu acrescentaria que Freud bem poderia
ser tomado como o núcleo de um importante “entrincheiramento gerativo” na
história da estética.
Voltemos às proposições de Damisch, autor
que insiste na necessidade de diferenciação entre pensamento sobre a arte e
pensamento sobre a beleza, demonstrando o quanto ela pode ser proveitosa para
uma nova leitura de Freud.
Em Le jugement de Pâris, ele denuncia a existência
de um automatismo grave e corriqueiro, qual seja, a tendência de reduzir
estética às belas-artes, “tradição que nos faz sistematicamente ler ‘arte’ lá
onde o texto – de Freud, de Kant, mesmo de Platão – diz ‘beleza’, e vice-versa”
(Damisch, 1997, p. 15). Ou seja, parece haver um esquecimento generalizado de
que a reflexão sobre o belo pode ser autônoma em relação à arte e vice-versa.
Aliás, um dos poucos pontos consensuais nas leituras da Crítica da faculdade do
juízo é, justamente, a constatação de que Kant não confunde as duas esferas,
bem como a primazia que confere ao belo natural em detrimento do artístico.
Como veremos, Freud também discrimina claramente os dois domínios.
Entre nós, Benedito Nunes é um dos autores
que assinala a distinção:
Assim, na acepção
ampla para a qual todas essas correntes confluem, a Estética é tanto filosofia
do Belo como filosofia da Arte. Precisamos, no entanto, distinguir entre Estética
e Filosofia da Arte. A rigor, o domínio dos fenômenos estéticos não está
circunscrito pela Arte, embora encontre nesta a sua manifestação mais adequada
(...). Mas, por outro lado, a Arte excede, de muito, os limites das avaliações
estéticas. Modo de ação produtiva do homem, ela é fenômeno social e parte da
cultura. (Nunes, 1989, p. 15)
Em suma: a linguagem corrente legitima o
uso de “estética” como sinônimo de teoria da arte, uso também referendado por
inúmeros especialistas (Huisman, 1984; Pareyson, 1989); porém, aqui seguiremos
a pista dos estudiosos que enfatizam a diferença entre os dois campos.
E o
que tem Freud a ver com isso?
O fato é que, conforme aponta Damisch,
pode ser muito instigante assumir e explorar as consequências de tal distinção,
no que se refere aos escritos freudianos. Vejamos o porquê.
Como se sabe, a obra de arte é aí
concebida conforme o modelo das “formações de compromisso”, o que nos remete de
imediato à presença de um conteúdo latente a ser interpretado. As fantasias
pessoais do artista criador, os mecanismos de “disfarce” e atenuação destas
fantasias, o papel secundário atribuído às características propriamente formais
da obra, as frequentes comparações entre o artista e o neurótico (embora a
obra, na maior parte das vezes, seja pensada como alternativa ao sintoma), tudo
isso dificulta à teoria da arte freudiana dar conta das manifestações
artísticas mais contemporâneas, bem como das discussões atuais em
história/crítica de arte. Por isso, pretendo em outro trabalho retomar a teoria
freudiana da arte a partir de algumas releituras a que foi submetida
(principalmente por parte de Ernest Gombrich e Jean-François Lyotard), de modo
a retraçar as etapas de uma transição fundamental: a passagem de uma postura em
que a obra é tida como “decifrável” e “legível” para outra em que ela é
concebida como meramente visível. Mas disto trataremos em outra ocasião.
No momento, eis a questão que se nos
coloca: é possível distinguir, em Freud, um pensamento sobre o belo
independente de suas teorizações sobre a arte? Se sim, onde nos levaria tal
distinção? A meu ver, o mínimo que ganhamos com esse empreendimento seria a
possibilidade de divisar na teoria freudiana algo mais do que uma (simples)
psicologia da criação.
Em Le jugement de Pâris, Hubert Damisch
exercita e demonstra os alcances de seu próprio projeto teórico, algo que ele
denomina iconologia analítica: um “discurso de imagens”, que tem como ponto de
partida as relações entre a beleza, o visível e o desejo; assume a hipótese do
inconsciente e privilegia a questão da figurabilidade (todo pensamento deve
aceder, de um modo ou de outro, à visibilidade). Como dizíamos, ele nota que,
em Freud, a beleza não se restringe à arte ou à criação. Na lista de métodos
para evitar infelicidade, que consta do segundo capítulo de O mal-estar na
cultura, por exemplo, arte e beleza ocupam lugares diferentes. Freud apresenta
separadamente a satisfação oferecida pelo usufruto da arte e aquela
proporcionada pela contemplação do belo, referindo-se então à beleza das formas
e dos gestos humanos, dos objetos naturais e das paisagens, das criações
artísticas e mesmo científicas. Enfim, esboça-se uma distinção entre o gozo que
proporcionam as obras de arte (não necessariamente belas) e o prazer suscitado
pela beleza, mesmo quando situada fora do campo da arte.
É isto que autoriza Damisch a delinear
dois campos: a) o da arte, da atividade criadora, da satisfação substitutiva
que requer como mediação a presença do artista; e b) o do estético, relativo à
beleza, que implica uma atividade judicatória acessível a qualquer sujeito, sem
a mediação necessária do artista. Com base nesta bifurcação, o autor levanta
questões interessantíssimas, dentre as quais eu destacaria a problematização
das relações entre beleza e recalcamento; de fato, a mim parece que um ponto
decisivo reside neste estatuto de “satisfação substitutiva” associado à arte,
ao passo que a beleza não-artística pareceria capaz de acionar um prazer cuja
natureza se faz necessário investigar, mas que talvez independa dos conteúdos
recalcados e suas transformações.
Caberiam ainda muitas perguntas suscitadas
sobretudo pelo belo não-artístico: até que ponto é um atributo “real” do
objeto, em que medida é compartilhado socialmente, quais os mecanismos que
articulam percepção/juízo do belo e, principalmente, a qualidade do prazer por
ele suscitado; afinal, haveria alguma especificidade metapsicológica no prazer
estético? (ou, ainda, haveria alguma diferença entre o prazer estético
proporcionado pela obra de arte e pela beleza não-artística?). Em relação a
esta última questão, Damisch observa que, também em O mal-estar na cultura, os
prazeres oferecidos pela arte e pela beleza partilham algo em comum: produzem
efeitos semelhantes aos da droga (embriagamento, narcose), metáfora ainda mais
sugestiva, porque Freud ressalta que ninguém conhece os mecanismos em jogo na
intoxicação química.
Penso que o núcleo organizador das
reflexões freudianas sobre a arte e o belo – núcleo de onde provém e para o
qual se encaminha grande parte das questões mencionadas até aqui – é o problema
da experiência estética. Creio que tudo o que Freud chegou a formular sobre
arte e beleza origina-se em uma preocupação com a experiência psíquico-corporal
por elas provocada, e não em um interesse abstrato pela beleza ou pela arte em
si mesmas. Impossível abordar aqui este problema tão complexo quanto mal delimitado,
mas deixo esboçadas as seguintes indicações: a) seria preciso investigar as
origens histórico-filosóficas da problematização da experiência estética; b)
também seria necessário acompanhar certas tentativas de elucidar o campo da
experiência estética, seus contornos e especificidades. Um dos mais
interessantes esforços neste sentido é o de Jean-Marie Schaeffer, para quem a
experiência estética é uma experiência de prazer (embora possa ser acompanhada
de desprazer) que independe do objeto que a aciona; tem a ver, isso sim, com um
certo tipo de relação que estabelecemos com os objetos, relação esta
caracterizada por uma atividade representacional autossuficiente (que tende a
se manter e não deriva para outra ação sobre o objeto). Ou seja, o prazer
estético proviria da mera atividade representacional – “na experiência
estética, a atividade representacional é uma fonte de prazer autônoma”. Claro
que seria necessário discutir o que é esta atividade representacional, mas
talvez seja possível reduzi-la à simples constituição/configuração mental de um
objeto (não necessariamente oferecido pelos sentidos); e c) conviria, por fim,
examinar com detalhes os vários patamares ou “momentos” (se é que se pode
pensar em um processo temporal) do prazer estético, da percepção à formulação
do juízo estético – para o estudo destes aspectos, as proposições de Guillaumin
(1998) podem ser um bom ponto de partida.
Porém, antes de discutir o estatuto
metapsicológico da experiência estética, ou ainda, de especular sobre as
relações entre o belo e a sexualidade ou a sublimação, é preciso se deter sobre
uma questão prévia: afinal de contas, o que Freud entende por estética?
Aparentemente desimportante, tal indagação é um pré-requisito fundamental para
a discussão de todas e de cada uma das indagações anteriores, e por isso
constitui o foco deste trabalho.
O
uso do adjetivo
Sobre o emprego do adjetivo “estético” e
seus correlatos, creio que se pode distinguir ao menos dois tipos de uso. A
utilização mais frequente é num sentido lato, em expressões como “ideais éticos
e estéticos” ou “padrões estéticos”, cujo significado geral remete a uma
consideração aos ideais e padrões de beleza. Encontra-se implícita a ideia de
que a beleza é um valor “elevado” e socialmente compartilhado. É também em
trechos como esses que vemos justificada a hipótese de Hubert Damisch, para
quem o belo está em íntima conexão com o recalque (mais particularmente, com o
que incide sobre as pulsões parciais), como um dos diques que se elevam contra
o desenvolvimento desses componentes. Em uma segunda acepção do adjetivo, ele
é, inequivocamente, sinônimo de formal: “O poeta (...) nos suborna com o prazer
puramente formal, isto é, estético, que nos proporciona a exposição de suas
fantasias” (Freud, 1908, p. 1.348). Penso que é neste mesmo sentido de prazer
desencadeado exclusivamente pela forma que o adjetivo encontra-se associado aos
ditos de espírito.
Pareceria, à primeira vista, que na
primeira série o estético estaria alinhado com o recalcamento e, na outra, com
o prazer. Na verdade, creio que só pode ser concebido nesta dupla vinculação,
como se tivesse, necessariamente, duas faces. A justificativa desta dupla
vinculação estaria no axioma freudiano de que a beleza se funda no sexual;
resta saber como fica a relação prazer estético/recalcamento no caso de
concepções psicanalíticas sobre a beleza que não a veem necessariamente como
tributária da sexualidade (mas esta já seria uma outra e interessantíssima
história...).
Por outro lado, e ainda em termos
freudianos, o prazer estético (formal) é apresentado quase como sendo de
“segunda classe”, pois que de segunda ordem (substitutivo) e de menor magnitude
(na medida em que a forma possibilitaria apenas um prazer preliminar).
No entanto, cabe perguntar se tal prazer
estético continuaria a ser considerado como de “segunda ordem” e “substitutivo”
no caso de derivar da contemplação da beleza não-artística ou de obras de arte
que prescindem de um conteúdo representacional. Um dos horizontes mais amplos
para o qual apontam essas reflexões é, exatamente, o da possibilidade de pensar
o prazer estético em sua positividade e em sua autonomia em relação a um
suposto conteúdo ideativo a ele subjacente, sublinhando o relevante papel que
pode exercer no funcionamento psíquico. E isto também em termos coletivos: a
ornamentação floral nos espaços públicos ou privados, o respeito pela beleza
natural, o embelezamento do mundo, apesar de “inúteis”, são dos principais
índices de cultura de um povo (cf. Freud, 1929, p. 3.035). “Útil” ou nem tanto,
a beleza nos é extremamente preciosa. Já a estética, bem, talvez não seja
imprescindível, embora importante para a compreensão psicanalítica do humano;
mas como outras criações teóricas, decerto pode ser bela – e este é um dos
motivos pelos quais a estética de Freud merece ser revisitada.
Referências
CATONNÉ, J-P. Sigmund Freud: amateur d’art
et racionaliste. Monographies de la Révue Française de Psychanalyse (Créations,
Psychanalyse). Paris: PUF, 1998.
CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
DAMISCH, H. Le jugement de Pâris. Paris:
Flammarion, 1997.
FREUD, S. Obras completas. 4a ed., Madrid:
Biblioteca Nueva, 1981. 3 tomos.
_____ (1905). O chiste e suas relações com
o inconsciente. In: Op. cit. vol. I.
_____ (1908). O poeta e os sonhos diurnos.
In: Op. cit. vol. II.
_____ (1913). Múltiplo interesse da
psicanálise. In: Op. cit. vol. II.
_____ (1919). O sinistro. In: Op. cit.
vol. III.
_____ (1929). O mal-estar na cultura. In: Op. cit. vol. III.
_____ (1936). Um transtorno da memória na Acrópole. In: Op. cit. vol.
III.
GUILLAUMIN, J. Le jugement esthétique, un instrument logique étrange
entre l’intime et l’universel. In: CHOUVIER,B. et al. Symbolisation et
processus de creation. Paris: Dunod, 1998.
HUISMAN, D. A estética. Lisboa: Edições 70, 1984.
ISER, W. (2001). O ressurgimento da estética. In: ROSENFIELD, D.
(org.). Ética e estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
JIMENEZ, M. Qu’est-ce que l’esthétique. Paris: Gallimard, 1997.
KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad. Valerio Rohden e António
Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1993. [1a ed. 1790.]
MEZAN, R. Freud, pensador da cultura. 4a ed. São Paulo: Brasiliense,
1986.
NUNES, B. Introdução à filosofia da arte. São Paulo: Ática, 1989.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. 2a ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1989.
SCHAEFFER, J.-M. Plaisir et jugement. In: BOUCHINDHOMME, C. et
ROCHLITZ, R. (dir.). L’art sans compas – redéfinitions de l’esthétique. Paris:
Les Éditions du Cerf, 1992.
TATARKIEWICZ, W. Historia de seis ideas – arte, belleza, forma,
creatividad, mímesis, experiencia estética. 5 a ed. Madrid: Tecnos, 1996 [1a
ed. 1987.]
IN: PULSIONAL Revista de Psicanálise, novembro/2003
Um comentário:
Sensacional.
Postar um comentário