A
LÓGICA DO TRATAMENTO DO PEQUENO HANS SEGUNDO LACAN
Jacques-Alain
Miller
Dediquei-me, durante o mês passado, a
terminar a redação em francês do Seminário IV de Lacan, a relação de objeto. E
para concluir este trabalho, que acabei um pouco antes de vir a Buenos Aires,
pretendo lhes oferecer hoje uma introdução à leitura e ao estudo desse
Seminário. Deu tudo certo. Nenhum tema, ao que me parece, convém melhor como
abertura às nossas jornadas sobre a Lógica do tratamento. Retornar ao Seminário
ministrado por Lacan em 1956 e 1957 significa retornar ao momento do nascimento
de uma noção de lógica do tratamento. De fato, a metade deste Seminário elabora
o tratamento do pequeno Hans e essa elaboração se faz a partir de uma
perspectiva lógica, a tal ponto que ele termina com os primeiros ensaios do que
Lacan denomina como lógica de borracha; reencontramos esta expressão no
Seminário e me pareceu que ela merecia ser o título de um dos últimos capítulos
(Lacan, 1998, p. 524). Uma lógica elástica como a topologia, uma lógica que
seria suficientemente flexível para acompanhar as produções fantasmáticas do
sujeito, do pequeno Hans, e formalizar as diferentes etapas de sua
investigação. Eu acredito que esta perspectiva elabora, efetivamente, uma lógica
suficientemente flexível para acompanhar as produções fantasmáticas. Isto
constitui a essência do problema que vamos abordar durante estas jornadas.
Vamos tentar falar precisamente. O que
significa “lógica do tratamento”? Para elaborar um pouco mais este
significante, é útil, como sempre, opô-lo. Proponho a seguinte oposição para
situar o significante lógica do tratamento: lógica do tratamento diz uma coisa
diferente de estrutura do discurso. Proponho que reflitamos sobre a oposição,
sobre a articulação da lógica do tratamento e da estrutura do discurso. Este
será o primeiro dos três temas que vou abordar.
A estrutura do discurso, para retomar o
significante introduzido por Lacan em O avesso da psicanálise (1968-70),
refere-se às coordenadas fundamentais que tornam possível o tratamento
psicanalítico em si mesmo. A estrutura do discurso analítico que Lacan deu
neste Seminário é, na realidade, muito conhecida. Em resumo, é uma fórmula que
utilizamos em nosso trabalho, é uma forma de escrever a estrutura do discurso
analítico.
A primeira forma proposta por Lacan da
estrutura do discurso se encontra no esquema L, construído ao longo dos três
primeiros anos de Seminário, e que ele relembra ao começar seu Seminário, Livro
IV: A relação de objeto (1956-57). No esquema em forma de Z, vocês se lembrarão
dos quatro termos que lá figuram. É uma outra forma que Lacan deu à estrutura
do discurso, que figura sob uma forma mais completa em seu escrito “A carta
roubada”, publicado durante o ano de seu Seminário IV; Lacan o comenta na
ocasião. Estes dois esquemas são muito populares (muito conhecidos?), muito
úteis (o constatamos com o passar do tempo), nos dão uma formalização
sincrônica da situação analítica, uma formalização que poderíamos chamar de
estática.
A tentativa de Lacan no Seminário IV é
diferente. Notemos que é uma tentativa inacabada. É uma tentativa, um esboço eu
diria, de formalização dinâmica, de formalização diacrônica, isto é, uma tentativa
de não só escrever as coordenadas permanentes, fundamentais do tratamento, mas
também de formalizar, o que é dito no tratamento, o transitório do que é dito,
de formalizar o que se passa, de formalizar o que acontece, não só a estrutura.
Formalizar de uma certa maneira os eventos do dito no tratamento, quer dizer
que a noção central com a qual Lacan trabalha é a da estrutura com suas
transformações, sim, da estrutura, mas com suas transformações.
Conhecemos essa
noção sob a forma da estrutura permutável, por exemplo em O Seminário, O avesso
da psicanálise. Nós sabemos que estes termos podem trocar de lugar, mas que
essa troca não permite formalizar o final do tratamento analítico, dado que são
– segundo o próprio Lacan – trocas que nos fazem sair do discurso analítico,
que permitem situar os outros discursos. É uma estrutura com suas
transformações e permutável, mas cujas permutações a retiram do domínio
analítico. Ao contrário, encontramos no Seminário IV de Lacan – e, acredito que
em mais nenhum lugar, sob essa forma – uma tentativa, eu diria, de dinamizar o
esquema L, isto é, de utilizar o esquema L ao menos para formalizar a mudança
de posição subjetiva de um ponto de vista clínico.
Lacan o faz nesse Seminário,
logo de início, a respeito da jovem homossexual de Freud, que ocupa três
lições, e é um nó deste Seminário. Há diversas razões que justificam sua
presença. Lacan formaliza a história clínica da paciente relatada por Freud, a
partir de transformações permutáveis no esquema L, isto é, segundo o próprio
Freud, podemos observar na história clínica anterior à análise, uma mudança de
posição subjetiva, uma mudança de escolha de objeto, após o nascimento de um
irmão. De tal forma que, segundo Freud, isso acentua um antes e um depois do
caso. Anteriormente, seu objeto era um filho imaginário, recebido do pai,
encarnado no filho da vizinha, isto é, no lugar do objeto, no ângulo superior
do esquema Z, encontramos este filho, esta criança imaginária, e em seguida, o
objeto muda e vemos aparecer diversas mulheres de tipo maternal, e finalmente,
uma mulher, objeto de um amor sublimado, sacrificado. De tal maneira que, nesse
mesmo lugar, podemos inscrever primeiramente uma criança imaginária e em
seguida uma mulher real, como diz Lacan. É a utilização, a tentativa de
formalizar não somente uma estrutura estática, mas também etapas, isto é, obter
a formalização da história clinica de um caso a partir desse desenho
formalizado. Não é a única ocasião em que se encontra isso neste Seminário IV,
Lacan volta a fazê-lo mediante outro texto de Freud que também se presta a essa
ideia de estrutura com suas transformações. Ele volta sua atenção para o texto
de Freud “Bate-se numa criança” (1919), onde o próprio Freud apresenta este
fantasma como resultado de suas transformações. “Meu pai bate numa criança que
eu odeio”, “o pai me bate”, e na terceira forma, “bate-se numa criança”.
Aqui, podemos realmente escrever uma seta
de transformação que permite passar de uma fórmula à outra, sem chegar, talvez
a formalizar essas três etapas do esquema. Lacan não tenta, mas isso nos mostra
uma segunda tentativa de seguir as transformações de uma formação do
inconsciente. É necessário articular o fato de que alguma coisa permanece
constante, e que ao mesmo tempo, alguma coisa muda. O que é que permanece
constante? São os lugares, as relações, e as relações entre os lugares. O que
muda são os termos que ocupam esses lugares. E, como eu já mencionei, essa
inspiração, aventada em O Seminário, O
avesso da psicanálise, já inspira o Seminário
IV de Lacan. Toda a ideia de que houve uma revolução lógica em Lacan nos
anos sessenta, nada mais é que uma má leitura de Lacan. Esta inspiração lógica
e estruturalista com transformações já está toda presente aqui.
É o que nos permite dizer que justamente
na estrutura, a transformação é uma permutação, que falar de permutação é a
tentativa, a maneira de dinamizar a estrutura, e eu diria, uma certa solução
estrutural da articulação do um e do múltiplo; os lugares são fixos, e, com a
permutação dos termos, obtemos variáveis. Como isso termina, se há lugares e
termos que se permutam nesses lugares? O problema, justamente, é que temos a
impressão de que isso nunca termina. Se o vocabulário é limitado, se os termos
são em quantidade limitada – nesse caso, são limitados a quatro termos – há uma
circularidade: podemos continuar a revezar os termos nos locais, e a
circularidade é infinita. Não há nenhum princípio de estancamento em uma
estrutura com tão grande permutabilidade. Se o vocabulário é potencialmente
ilimitado, se existe muito mais do que quatro termos e as letras do alfabeto,
se o vocabulário se estende, por exemplo, como a cadeia dos números, então a
permutação não para nunca. Temos um exemplo disso nas Mitológicas de Lévi-Strauss. Ele estuda a estrutura e suas
transformações dos mitos americanos de uma pequena parte da América do norte e
um pouco da América do sul e, para tanto precisa de quatro volumes para mil
mitos, que são apenas uma pequena seleção no conjunto dos mitos e suas
possíveis variantes.
Temos outro exemplo, quando Lacan, no
seminário sobre “A carta roubada”, constrói uma estrutura com permutações de
mais (+) e de menos (-): ele nos apresenta um funcionamento circular no qual
não há nenhuma razão para parar e justamente, ele o apresenta para ilustrar o
infinito da repetição e de uma repetição indestrutível. Isto constitui um
problema inicial quando tentamos pensar a lógica do tratamento a partir de uma
estrutura com transformações. Por quê? De onde virá o princípio de um termo e
um final que não seja acidental ou ligado ao cansaço?
Para poder pensar uma lógica do tratamento
nestes termos, é necessário primeiramente pensar que para um sujeito há um
número limitado de significantes que se permutam, ou, ao menos um número
limitado de significantes essenciais que se permutam. Em segundo lugar, é
preciso pensar, nesta perspectiva, que quando todas as permutações forem
realizadas, haverá uma mudança qualitativa. De forma que possamos dizer: “não
há mais, e pronto”. É preciso supor um efeito da soma, e, ademais, um efeito da
soma subjetivada. É neste sentido que se poderá legitimamente dizer:
“conclusão”.
Referir a lógica da cura a uma estrutura
com transformações, é muito diferente de referi-la a uma dedução linear, como
uma linha desde as premissas até a conclusão, onde podemos chegar em um dado
momento, como na conclusão de um argumento. Isto não é uma referência a um
argumento, supõe um processo onde o quod erat demonstrandum não pode chegar, a
não ser se for para fixar o absurdo. Isto quer dizer que se isso acontece em
uma estrutura com transformações, é necessariamente uma demonstração pelo
absurdo, isto é, por um “não há”, não se trata de uma demonstração positiva.
É exatamente o que diz o resumo da
pesquisa sobre Hans que escreveu Lacan em seu texto “A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud” (1957), no mesmo ano do Seminário do
pequeno Hans. Há aí dois parágrafos importantes, que eu acho que todos devem
conhecer aqui, pois é destes dois parágrafos que eu pincei a expressão
“resolução curativa” (1998, p. 524) que foi utilizada como tema do condensado
argentino para o Encontro Internacional sobre Conclusão do Tratamento. Lacan
diz lá que “O Pequeno Hans [...] desenvolve, [...] sob uma forma mítica, todas
as permutações possíveis de um número limitado de significantes” (1998, p.
519). O que se obtém é a solução do impossível, a saber, que a demonstração que
traz o tratamento concebida a partir da lógica do tratamento releva da
demonstração pelo absurdo: ela se conclui por um “não há”, por um “não é o caso
colocado na hipótese”.
Esta tem sido a orientação fundamental de
Lacan desde seu estudo do tratamento do pequeno Hans. A transformação da
impotência em impossibilidade, como ele a formulará nos anos setenta (1969-70)
já está presente nesse Seminário IV. Lá encontramos também inscrita a
formulação do fim da análise como percepção, subjetivação do “não há relação
sexual”. E também a travessia do fantasma, pois, no pequeno Hans, seguimos as
permutações fantasmáticas mesmo que não possamos situar uma travessia do fantasma.
O problema nessa perspectiva do
tratamento, que chamamos de lógica do tratamento, ainda é a repetição. Como
cessa a repetição? Como se conclui o fato de que o inconsciente como tal,
repete? Em que medida a repetição para, é a questão da conclusão do tratamento,
se levarmos o termo conclusão a sério. A questão da conclusão do tratamento, no
meu ponto de vista atual, deve estar ligada à repetição. Em que medida cessa a
repetição, em que medida o tratamento permite eliminar a repetição? Em que
medida a conclusão do tratamento tem uma incidência na repetição do
significante como repetição de gozo? Há algo inacabado no Seminário IV. Há somente um esboço da lógica, de uma lógica do
tratamento.
É uma questão para nós saber se é uma via
a retomar ou se há obstáculos fundamentais que impedem que se vá à direção de
uma lógica do tratamento distinta da estrutura do discurso. Lacan esboça uma
lógica do tratamento e nós podemos dizer que é o único esboço de lógica do
tratamento, propriamente dito, em Lacan. Houve dois rebentos no ano seguinte.
Primeiramente, a metáfora paterna, a fórmula da metáfora paterna tal qual ela
figura no famoso escrito “De uma questão preliminar a todo tratamento possível
da psicose”, que é a colocação por escrito dos resultados obtidos por Lacan a
partir do tratamento do pequeno Hans que ele escreveu no ano seguinte, em
dezembro de 1957 e janeiro de 1958. Evidentemente, este escrito trata do tema
do Seminário III sobre a psicose. O
caso do presidente Schreber retira toda sua formalização do caso do pequeno
Hans. Lacan utiliza também o esquema L da estrutura do discurso para dar-lhe o
estatuto de estrutura clínica, e quando ele transforma seu esquema L em esquema
R, ele passa de um esquema de estrutura do discurso a um esquema de estrutura
clínica. Além disso, ele formula a metáfora paterna propriamente dita, que
escreve a relação do sujeito com a mãe, transformada pela inclusão do
significante de pai.
Podemos dizer que no ano seguinte, no Seminário V, As formações do inconsciente,
que ele já anunciara no ano do pequeno Hans, a construção de Lacan sobre o Witz
surgiu dos Witz do pequeno Hans. No ano seguinte, ele elabora o grafo do
desejo, que é também uma estrutura com transformações, e que dá alguma coisa –
apesar de estar distante da experiência – de uma lógica do tratamento. Em todo
caso, ele distingue um nível 1 do tratamento, de um nível 2, e nós podemos
dizer que o nível 1 é concluído com o significante da identificação I(A), e que
o nível 2 se conclui com o significante da inconsistência do Outro, S (A).
De certa maneira, esse grafo do desejo é
uma transformação do esquema L de Lacan, isto é, ele articula a estrutura da
intersubjetividade – intersubjetividade complexa, imaginária e simbólica, que
existe nesse esquema – com a estrutura do significado e do significante, e ele
combina, se é que podemos dizer isso, os dois. De tal forma que, se devêssemos
resumir a lógica do tratamento apresentada por Lacan através do grafo do
desejo, seria com esta fórmula: o tratamento é fundamentalmente a transformação
de A em A ou também, a passagem do imaginário ao simbólico.
É assim que poderíamos resumir o
tratamento do pequeno Hans, como um processo de simbolização. Vale a pena parar
um momento para uma reflexão a este respeito, pois é o único momento em Lacan
que temos uma lógica do tratamento que seja mais do que uma bela expressão, mas
de fato um trabalho baseado em um tratamento. Trata-se de um processo de
simbolização sobre um elemento essencial: o falo. Poderíamos, por conseguinte,
resumir o tratamento do pequeno Hans da seguinte maneira: do falo imaginário ao
falo simbólico, e poderíamos situar o momento exato da doença do pequeno Hans,
ou de seu sintoma, seja na aparição do falo como elemento real, seja em seu
gozo fálico, seja na aparição de sua irmã menor, que são os elementos que
desestabilizam sua posição. Poderíamos dizer também, mesmo que Lacan não
empregue este termo no Seminário, que a fórmula da lógica da cura é também do phallus imaginário ao phallus simbólico. É somente depois do Seminário VIII, sobre A transferência, que Lacan utilizará o
símbolo φ.
O privilégio do tratamento
do pequeno Hans é que ele é, praticamente, uma cura por excelência. Há um sintoma perfeitamente manifesto e este sintoma desaparece. Há cura.
O sintoma fóbico desaparece. Há resolução curativa. O tratamento do pequeno
Hans, mesmo tendo interesse para nós como um exemplo único, tem entretanto um
limite, no nível do que podemos dele extrair; nesse caso, a lógica do
tratamento se confunde com a elaboração da metáfora paterna; é dizer que nesse
caso, no caso de uma análise infantil, a lógica do tratamento é idêntica à
metáfora paterna. Ocorre que nesse tratamento, para cuidar do sintoma fóbico, o
poder simbólico do significante pai substitui o poder imaginário da mãe.
Pode-se dizer também, segundo a opinião de Lacan, que no caso do pequeno Hans a
metáfora paterna não se constitui de forma plena, mas de forma oblíqua,
desviada. Todavia, poder-se ia dizer que, se se tratasse de uma cura analítica
propriamente dita, ela deveria ter começado após - após a resolução curativa
obtida nesse caso, para restabelecer o equilíbrio – a orientação desta metáfora
paterna desviada do pequeno Hans. Evidentemente, quando nós dizemos que iremos,
na pratica analítica, além do Édipo, o que nós dizemos é justamente que nós
podemos tomar a lógica do tratamento do pequeno Hans como modelo da lógica do
tratamento propriamente dito. A importância do Seminário IV se observa no fato de que neste Seminário, segue-se a
Freud em “Inibição, sintoma e angústia”, Lacan diz que o sintoma fóbico tem o
papel do Nome-do-Pai e é somente um tempo para compreender, para chegar a
formular que o Nome-do-Pai não é mais do que um sintoma. Quinze anos foram
necessários para chegar a essa formulação, mas, desde o Seminário IV, temos elementos para deduzi-las. O Nome-do-Pai e o
sintoma têm algo a ver um com o outro na medida em que um pode substituir o
outro. Nós supomos que, se o Nome-do-Pai é um sintoma, é um sintoma que deve
ser qualificado de uma certa maneira para ser distinguido, mas isso não impede
que ele possa ser também patológico. A posição de Lacan neste Seminário é de
que o pequeno Hans elabora um pequeno Nome-do-Pai.
Com isso, eu passo ao segundo tema. O
segundo tema, que não trata de lógica propriamente dita, trata da mãe. A mãe é
o personagem central do Seminário IV.
Existe um preconceito segundo o qual Lacan não diria nada sobre a mãe e que o
lacanismo teria sido empregado para restabelecer a função do pai. Não! O Seminário IV, do início ao fim, é uma
teoria da mãe. Devo dizer que esta convicção orientou-me, por exemplo, na
escolha da ilustração da capa da edição francesa, que não é o cavalo
evidentemente. O cavalo está presente como significante. Ademais, Lacan -
trata-se de um excursu - se refere no
Seminário ao cavalo que figura no quadro de Ticiano, de Venus e Vulcano com um
cavalo. Verifiquei em todos os catálogos de Ticiano e acredito que se trate, na
realidade de um quadro de Veronese que se denomina Vênus e Marte ligados por Eros. Neste quadro existe, de fato, bem
no fundo, um cavalo e um pequeno anjo, um pequeno Eros que tenta equilibrar-se
sobre o cavalo, signo fálico codificado. Isto teria sido uma bela capa, é um
quadro doce, mas, não me pareceria que seria necessário ilustrar o cavalo em
primeiro lugar e, além de tudo, esse Seminário é tudo menos doce. Não vou dizer
lhes qual foi a capa que escolhi, pois isso ainda não foi feito. Veremos
Foi o tema da mãe que unificou a pesquisa
naquele ano. E se não é tão fácil ver a trajetória lógica de Lacan, não a
lógica do tratamento, mas a lógica do Seminário propriamente dito. Se fosse
necessário determinar qual é o fio que corre ao longo deste Seminário, desde o
início, e que condiciona tudo o que Lacan escolhe como exemplo, eu diria que se
trata das consequências clínicas terríveis da sexualidade feminina para qualquer
sujeito no sentido em que cada sujeito é filho de uma mãe. Ao centro deste
Seminário, há aquilo que, no centro da metáfora paterna, Lacan designa como DM,
desejo da mãe, e, como saliento frequentemente, este Desejo da mãe, com um D
maiúsculo, não é o desejo da mãe que conhecemos desde As formações do
inconsciente que Lacan elaborará no ano seguinte, não se trata deste desejo
correlativo da demanda, que é essencialmente o espaço entre o significante e o
significado. Em O Seminário IV, eu
posso dizer que se vê o momento em que surge, provavelmente, o termo demanda
para Lacan, quando ele se dá conta de que em inglês, a exigência se diz demand, também utilizável para apetite.
O desejo em As formações do inconsciente é a parte que resta fora da
interpretação, de tal forma que Lacan pode concluir disso que o desejo, segundo
sua interpretação, não é o DM, o desejo da mãe, mas sim uma outra coisa. Ele se
refere ao desejo da mãe enquanto mulher. Isto quer dizer que ele se refere à castração
feminina, seja à mãe enquanto sujeito correlato de uma falta, não uma falta de
ser mas, de fato, uma falta de objeto. Isto é a primeira parte do Seminário que
intitulei “Teoria da falta de objeto”, que Lacan opõe à maioria dos teóricos da
relação de objeto. Ele o elabora com as diferentes modalidades dessa falta: a
castração, a frustração, a privação. Creio que conhecemos muito bem este
mecanismo, a construção deste quadro.
Mas qual é sua finalidade neste Seminário?
Trata-se de desenvolver a tese, segundo a qual, é determinante para um sujeito
a relação da mulher com sua falta, que poderia se escrever assim: S ◊ (- ),
relacionada à falta, não qualquer uma, mas aquela que se escreve (- ). A
questão que Lacan trabalha neste Seminário, a questão fundamental da
psicanálise da criança, é de saber como ela se inscreve nessa relação. Por que
não poderíamos escrever, desta vez, o sujeito criança articulando-o com a
articulação do sujeito feminino com sua falta: Sc ◊ (Sm ◊ (- ))? É por isso que
a elaboração teórica fundamental da primeira parte é a da frustração. É certo
que se trata da frustração da criança em relação à mãe, e Lacan dá uma nova
elaboração ao Fort! Da!, pois o fort-da que Lacan utilizou no Seminário IV para demonstrar que sob a
repetição, há a frustração do sujeito. Mas, além da frustração do
sujeito-criança, a frustração da mãe enquanto mulher percorre todo esse
Seminário.
Estamos habituados à outra face da
sexualidade feminina que é o suplemento, o mais-de-gozar. Mas no Seminário IV, a outra face é a
insatisfação, segundo Lacan, a insatisfação constitutiva do sujeito mulher. É
nesse sentido que o capítulo central deste Seminário, o capítulo XI, eu
denominei: “O falo e a mãe não-realizada” (1956-57, p. 179).
A mãe lacaniana corresponde à formula quaerens quem devoret , ela procura alguém para devorar; Lacan a apresenta a
seguir como o crocodilo, o sujeito com a boca aberta. De tal maneira que, sob o
conjunto do mecanismo do quadro e de suas permutações, o elemento central é o
devoramento, a relação oral com a mãe enquanto devoramento, devorar a mãe e ser
devorado por ela. No complexo do cavalo, ou complexo dos cavalos, o elemento
que parece à Lacan merecer um matema, é a mordida, a tal ponto que Lacan o
indica com uma matema “m”. Este está igualmente presente em tudo aquilo que
concerne ao casco do cavalo e Lacan mostra que a palavra “casco” (1956-57, p.
335) designa ao mesmo tempo a pinça ou as tenazes. Em consequência, a questão
infantil, tal qual Lacan a situa (é quase possível dizer a questão infantil
como se fala da questão histérica ou da questão do obsessivo) é de saber como
saciar o desejo da mãe ligado a sua falta. Há muitas transformações que Lacan
situa nesse Seminário, mas a transformação que me parece central, muito
esclarecedora, é a da mordida da mãe no fechamento da torneira da banheira
(1956-57, p. 331 e 341). Como o diz Lacan? Ele diz que o desmonte, o banho do
pequeno Hans que é interrompido pelo fechamento da torneira nem dado momento, é
quase o que encarna a passagem do imaginário ao simbólico. Assim como o diz
Lacan – esta é a única citação que eu farei – “não é a mesma coisa morder
gulosamente a mãe, apreensão de seu significado natural, até mesmo de temer, em
retorno, esta famosa mordida que encarna o cavalo – ou de desaparafusar a mãe,
soltar-lhe as engrenagens, mobilizá-la neste assunto, fazer com que ela entre
também no conjunto do sistema, e, pela primeira vez, como um elemento móvel e
ao mesmo tempo, equivalente aos outros.” (Ibid., p. 405).
Podemos dizer que o ponto mais avançado
que o pequeno Hans conseguiu atingir é, devemos admitir esta fórmula assim – a
transformação da mordida no fechamento da torneira da banheira. Isto quer dizer
que a mãe, com sua potência opaca, ameaçadora, que parte, que vai e que volta
(e com ela se vai toda a casa, é esse o temor do pequeno Hans), essa partida
ameaçadora da mãe, transforma-se no desmonte de um aparelho que não é toda a
casa, que esta banheira lhe dá seu lugar, pois, como o próprio pequeno Hans
observa, é o lugar onde, numa banheira que ele ama, seu traseiro encontra seu
exato lugar (1956-57, p. 333). Portanto, O Seminário
IV, é um seminário sobre a sexualidade feminina. Tendo começado a
redigi-lo, eu percebi que, para Lacan, a questão essencial da psicanálise com
crianças era a sexualidade feminina. Não se trata da mulher em sua relação com
o gozo, trata-se da mulher em sua ligação com o falo, isto é, ao significante
fálico que faz dela um ser da falta. E, há evidentemente uma relação entre esta
falta fálica e o suplemento de gozo que Lacan fixará muitos anos mais tarde.
Este Seminário é também um Seminário sobre
a criança na medida em que a criança é uma solução a esta falta feminina. Lacan
se refere, evidentemente, à equivalência, à equação, à Gleichung formulada por Freud, criança = falo. Mas não é nada mais
do que uma substituição. Freud, ele próprio, só introduz a criança como
substituto ao falo que falta. Justamente, um substituto que não basta, de tal
forma que ao lado da metáfora paterna nós podemos escrever a metáfora infantil
da mulher, que é uma outra forma da equivalência freudiana criança/- , e que
corresponde ao estatuto que Lacan dará, muito tempo depois à criança, de objeto
pequeno a. Talvez isto seja visto com mais facilidade quando está escrito: a
criança como substituto da falta fálica: E/- . A questão é de saber como a
criança descobre que não basta fechar o buraco, como ela descobre que o
parceiro de sua mãe como mulher é sua falta, isto é, a falta de falo. É isto
que ordena a pesquisa de Lacan. Ele se interroga, em detalhes, como uma criança
pode descobrir a relação de sua mãe com o falo e sua própria falta. Não há
então primary love no amor recíproco.
De forma similar, Lacan convoca o caso da
fobia da pequena inglesa, caso de fobia que se inicia quando a mãe se manifesta
diminuída em sua potência, onde o que parece ser o motor em causa é a aparição
de sua falta. É assim que se justifica a escolha do caso da jovem homossexual
no qual vemos que quando ela é confrontada ao fato de que o filho imaginário do
pai, encarnado para ela no filho real da vizinha do qual ela se ocupa, é dado à
mãe, uma mudança clínica ocorre que se esclarece com a equivalência freudiana
entre a criança e o falo.
É também o que justifica os capítulos que
Lacan dedica à perversão, às vias perversas do desejo e ao objeto fetiche, uma
clínica onde se vê o sujeito se identificar ao falo da mãe, ou identificando-se
à mãe, sobre o eixo imaginário, de tal forma que Lacan apresenta o fetichismo
como uma solução possível para a criança que descobre a relação de sua mãe com
a falta. Por essa razão, ele situa a prevalência do imaginário nas perversões.
A tal ponto que eu me permiti, no último capítulo, colocar em evidência,
similarmente à fórmula de Joyce, o sintoma a fórmula de Hans, o fetiche. Hans,
o fetiche, não Hans, o fetichista. Ao contrário, e Lacan o situa de maneira
muito precisa, há toda uma parte do estudo do pequeno Hans que se refere às
calcinhas da mãe, que têm valor numa oposição significante, e que são
diferentes se estiverem ou não vestidas na mãe. Quando a mãe não as está
vestindo, o pequeno Hans as rejeita. E como o diz Lacan, é a orientação
fundamental de que esta criança não será um fetichista, ou pelo menos um
fetichista normal, isto é, que para ele o falo será aquele da equivalência
girl= falo, situada por Fenichel em um artigo citado por Lacan.
O título do último capítulo “Hans o
fetiche”, eu o intitulei exatamente “De Hans-o fetiche a Leonardo-em-espelho”.
Lacan termina este Seminário com o caso de Leonardo Da Vinci, de Freud, ao qual
ele dá sua versão da inversão de Leonardo, deixando em suspenso a questão de
sua inversão sexual, e utilizando este termo para por em evidência a
característica prevalente da relação imaginária para Leonardo. É fato que ele
tinha por hábito dirigir-se a si mesmo por “tu”, e escrevendo páginas nas quais
ele se refere a si mesmo por “tu”. Lacan lembra que da natureza ele fazia, não
um grande Outro, mas um outro imaginário e simétrico, de tal forma que ele
situa Leonardo em seu esquema Z.
É no caso de Leonardo Da Vinci que
encontramos as figuras da “mãe dupla”, da Virgem e Santa Anna, e esta mãe dupla
se articula com a dupla mãe do pequeno Hans. É desta forma que Lacan situa o
desvio da metáfora paterna em Hans que, no lugar de acessar plenamente o
Nome-do-Pai, desdobra a mãe entre sua mãe e a mãe de seu pai, a avó que tem a
autoridade. Ele escreve MM, duplo M maiúsculo, esta avó, mãe do pai, lugar da
autoridade que faz a lei do pai. Todos os domingos o pai e o pequeno Hans vão
visitá-la e é neste traço que Lacan situa a força, a autoridade desta senhora.
Temos a dupla mãe de Leonardo, a dupla mãe do pequeno Hans, e também a dupla
mãe de André Gide. Quando Lacan lê André Gide, ele reconstrói sua mãe dupla
através de sua mãe biológica e sua tia. Há uma série tripla:
Hans-Leonardo-André Gide. Através destas considerações, eu estou também
completando um pouco o que eu não tive tempo de dizer em meu seminário sobre
André Gide, publicado há alguns anos na revista Malentendido. Esta mãe dupla é a fórmula da metáfora paterna
desviada, fórmula indicada quando não há foraclusão propriamente dita do
Nome-do-Pai, e quando a transmissão do Nome-do-Pai não parece passar pelo pai
real, no sentido do real que Lacan utilizava nesta época. Devo dizer que isso
me surpreende. Há anos que situamos o aporte de Lacan a respeito da outra mãe
na histeria, mas não demos uma importância equivalente à mãe desdobrada, à
função da mãe dupla. A mãe dupla não responde a um delírio da criança, mas de
fato é uma invenção que lhe permite obter uma derivação feminina do
Nome-do-Pai. Evidentemente as consequências não são as mesmas, mas podemos ver
no caso de pequeno Hans aquilo que Lacan não hesita em chamar de carência do
pai real. No pequeno Hans, há um chamado constante ao Nome-do-Pai, um chamado
constante a um pai terrível, muito mais terrível do que este pai doce, que
assim que algo lhe é dito corre para referir-se ao professor Freud.
No caso de André Gide, vemos que o pai
está presente, mas é um companheiro de jogos. É a figura materna que suportou
os imperativos da lei, a autoridade simbólica. As consequências não são as
mesmas, Hans vai gostar das mulheres e Gide dos menininhos. Não! A
heterossexualidade do pequeno Hans não o impede de permanecer,
fundamentalmente, numa posição feminina, à tal ponto em que ele se situa como a
filha de duas mães. Já Gide demonstra que goza de seu pênis como uma mulher, transbordando
de gozo. Isto nos permite dizer que encontramos a dupla mãe, a cada vez que a
metáfora paterna se realiza com os elementos femininos da história do sujeito.
O pequeno Hans, segundo Lacan, não sai da dominação, o fio que percorre a
procura da relação de objeto é também o do poder da mãe, que uma vez Lacan
qualificou como mestre, o mestre-mãe.
É o que resta em sua teoria como mãe real,
uma mãe não saciada, mas também todo-poderosa. O apavorante desta figura de mãe
Lacaniana é exatamente este caráter todo-poderoso, concomitantemente à sua não
realização. Evidentemente, sob esta figura encontramos a figura kleiniana da
mãe e, em certo sentido, no Seminário IV
encontramos a reelaboração de Lacan da doutrina de Melanie Klein. Isso não se
percebe com muita facilidade quando ela está exposta nos Escritos sob a forma
da dialética necessidade, demanda, desejo. Mas, no Seminário IV nós temos o esqueleto. Nada mostra melhor este esforço
de ligação com Klein do que esse breve momento no qual Lacan tenta tornar
compatível seu estádio do espelho com a posição depressiva. É quase cômico.
Pois a criança lacaniana do espelho, do estádio do espelho, é totalmente o
contrário da criança kleiniana. A criança kleiniana é depressiva, enquanto a
experiência fundamental da criança lacaniana é o júbilo, o triunfo no momento
em que experimenta a completude de sua imagem e seu domínio sobre sua imagem.
Mas, não compreendemos como uma mãe
devorante pode ter um filho triunfante, a tal ponto que Lacan diz que quando a
criança encontra sua imagem completa no espelho, é o triunfo. Mas, quando ele
encontra a imagem completa sob a forma do corpo materno, ele constata que essa
imagem não lhe obedece, de tal maneira que todo o poder materno se reflete como
sua posição depressiva. Diante de sua própria imagem, o sujeito pode
experimentar um triunfo, mas diante da imagem da mãe ele é fundamentalmente
depressivo. O pequeno Hans está muito mais ao lado da criança lacaniana, no
sentido de que ele se defende bastante bem, mas, certamente é uma criança sob
uma ameaça encarnada pelo cavalo. Podemos então dizer que isto é uma correção
kleiniana do estádio do espelho, e eu não ouvi falar nela ter sido utilizada
até o presente momento. Lacan corrige também o comentário do Fort-da. Tanto no “discurso de Roma”, no
Seminário II, quanto no Seminário
sobre “A Carta roubada”, o Fort-da
parece ser o exemplo freudiano da introdução do sujeito na ordem simbólica e
ele nos apresenta o binário significante mínimo, isto é, o Fort-da, como repetição.
Neste Seminário, Lacan elabora o Fort-da como frustração e o que muda é
que não se trata de um funcionamento cego, automático, lógico, de um algoritmo
acéfalo, este funcionamento simbólico passa, ao contrário, por um ser, por uma
dominação. O Fort-da pode
assemelhar-se a um funcionamento unicamente simbólico, onde a criança reproduz
no semblante a partida e o retorno da mãe, e num jogo no qual, ao utilizar um
objeto qualquer, ele acompanha a aproximação e a desaparição do objeto de uma
vocalização binária. É nisso somente que o Fort-da constitui-se numa
simbolização da mãe.
Lacan necessita de uma mudança no estatuto
da mãe. Quando a mãe não responde, ele diz que ela se transforma em real, isto
é, em potência. De sorte que há algo como um cruzamento entre a satisfação e a
mãe; quando a satisfação é real, a mãe é simbólica, e quando a mãe se torna
real a satisfação se torna simbólica. Uma satisfação simbólica, o que é? A mãe
não é só mestre, é também amor. A tese essencial de Lacan nesse Seminário é de
que a satisfação essencial é a satisfação do amor. A exigência do amor é a
exigência simbólica, a exigência do signo do amor. A exigência do signo do amor
pode se conservar em toda sua intensidade no interior de um sujeito.
No Seminário
IV temos uma clínica centrada sobre o amor, a tal ponto que Lacan situa a
satisfação real, quando ela é obtida, como um substituto da satisfação
simbólica. O que quer dizer que poderíamos escrevê-lo: satisfação
real/satisfação simbólica. Isso é muito importante, Lacan o diz em uma frase, ele
diz que toda frustração da satisfação simbólica, toda frustração de amor numa
criança, é compensada por uma satisfação real, mas é um “plano B”, um recurso,
um mal menor. Não temos de ficar fascinados com a satisfação real da criança no
seio, pois a tese de Lacan é que esta satisfação real da criança é uma
substituição, uma compensação da frustração real do amor. A intensidade da
satisfação real vem do fato de que é um substituto da satisfação simbólica. É
por essa razão que se erotizam as atividades do ser. A oralidade, por exemplo,
não é somente comer para viver, a oralidade se erotiza na medida em que ela vem
compensar a satisfação simbólica.
Dizer isso é dizer que a pulsão não é pura
necessidade. O que surpreende nesse Seminário é que a pulsão parece ser a consequência
da exigência de amor, é a forma que Lacan escolhe para dizer que o lugar do
grande Outro já está presente na pulsão. Ademais, quando o pulsional aparece,
ele tem sempre sua função ligada ao desenvolvimento de uma relação simbólica.
Evidentemente, quando Lacan diz “amor” nesse seminário, trata-se do Eros
freudiano. Este tema é importante na lógica do tratamento. É um pouco um excursus, mas há o exemplo que toma
Lacan, um caso de exibicionismo apresentado por Melittta Schmideberg, que Lacan trata como um exibicionismo
reacional, com a aparição ou o deslocamento de uma zona erógena (1956-57, cap.
IX). De fato, quando nesse tratamento aparece o pulsional, num dado momento o
sujeito cai na bulimia e, em outro momento, após haver realizado com
dificuldade o ato sexual, o sujeito vai expor seu órgão diante de um trem
internacional que passa na região. Lacan, ao invés de dizer que há uma
regressão, diz que todas essas emergências devem ser situadas como estando
enlaçadas com a relação simbólica à qual elas se reduzem. É um tema que eu não
posso desenvolver agora. Parece-me, que na lógica do tratamento, deve-se situar
esses fenômenos de redução simbólica, é uma coisa recorrente neste Seminário de
Lacan, no fantasma, mesmo no fantasma apresentado por Freud.
A lógica do fantasma leva a um
empobrecimento da estrutura do fantasma. Como Lacan o demonstra, há na primeira
forma do fantasma uma relação intersubjetiva rica que se transforma numa
fórmula sem sujeito: “Bate-se numa criança”, onde não há mais
intersubjetividade. Isto quer dizer que no fantasma há toda a complexidade do
simbólico e uma redução pontual dessa complexidade. A mesma coisa ocorre quando
surge, no lugar de toda a complexidade simbólica, um acting-out, uma passagem ao ato ou a regressão pulsional ou quando,
na perversão, Lacan apresenta a imagem como molde da perversão, a redução de
toda uma história simbólica que se mantém como um resto. Assim, ele deduz e
acentua a prevalência do modo imaginário na perversão.
Em outro momento, a respeito da jovem
homossexual, ele fala da projeção do simbólico sobre o eixo imaginário. Eu não
vou poder desenvolver isso, mas é como se houvesse momentos em que se pudesse
situar e condensar esse fenômeno, momentos em que a relação simbólica se dobra
sobre o imaginário ou sobre o pulsional mas, a cada vez, trata-se de uma
redução simbólica. Mesmo que isso possa ser semblante, mesmo que sejam pontos
de densidade máxima, trata-se de alguma coisa que parece real e ao mesmo tempo
é semblante.
Vou parar por aqui. Não dediquei meu
seminário desse ano a isso, de maneira que tenho muito a dizer e não calculei
bem o tempo, mas gostaria de dar uma abertura para a leitura do Seminário. Só
vou adicionar o seguinte: Leonardo Gorostiza falou da dificuldade do tema da
lógica, do estudo da lógica. Portanto, eu concluo dizendo que antes do Seminário IV, há só um caso de Freud que
Lacan parece abordar na inspiração da lógica do tratamento. É sua pequena
“Intervenção sobre a transferência” (1951), a respeito do caso Dora. Nessa
pequena “Intervenção sobre a transferência” pode-se dizer que ele lê o caso
Dora com a Fenomenologia do espírito, de Hegel, isto é, que ele localiza as
inversões dialéticas.
No Seminário
IV, e para desenvolver o único exemplo que temos de lógica do tratamento,
podemos dizer que Lacan lê Freud com Lévi-Strauss, mais exatamente com um
artigo intitulado “A estrutura dos mitos” datado de 1955. Recomendo o estudo
desse artigo, em que se vê a tentativa de Lévi-Strauss, na qual Lacan se
inspirou na questão da permutação, de escrever a fórmula do mito, na ideia de
que todo mito é redutível a uma fórmula. Não tenho o tempo de demonstrar que
essa fórmula inspira a fórmula da metáfora paterna em Lacan, que é uma fórmula
de equivalência. Armado de Lévi-Strauss, Lacan (1956-57, p. 329) tenta ordenar
a estrutura dos mitos elaborados por Hans e seguir as tentativas de solução do
pequeno Hans, concluindo com uma fórmula que é também a metáfora paterna.
Na lógica do tratamento, trata-se de saber
se podemos retomar o tema deixado por Lacan, sabendo que, para nós, a lógica do
tratamento não é uma elaboração da metáfora paterna, que a metáfora paterna não
é a conclusão do tratamento. Mas temos de saber se o método vale, isto é, se
além da estrutura do discurso, há uma lógica formalizável do tratamento. Um eco
do caso do pequeno Hans se faz ouvir no ensinamento de Lacan até A lógica do
fantasma, seu Seminário de 1966-67. O caso do pequeno Hans já é uma lógica do
fantasma, vocês conhecem a importância dessa lógica do fantasma, pois é ao
concluir esse Seminário que Lacan propõe o passe, de tal forma que podemos
estudar juntos o Seminário IV: a relação
de objeto, o Seminário 14: a lógica
do fantasma e o texto sobre o passe. De certa maneira, em A lógica do
fantasma, à distância do tratamento, através do grupo de Klein, Lacan elabora
um certo tipo de estrutura com suas transformações, mas à distância dos eventos
do tratamento.
O que é apaixonante nesse Seminário IV, é que Lacan não fica à
distância da experiência e que ele formaliza os próprios elementos do
tratamento, a ponto de definir “m” como a mordida do cavalo. É fato que Lacan
abandonou essa perspectiva de expor a lógica do tratamento dessa forma e que
ficou adstrito à elaboração da lógica do discurso. Minha questão, ao abrir esta
jornada, mas não somente essa jornada, pois o tema da lógica do tratamento vai
balizar as jornadas de todas as escolas pertencentes à Associação Mundial de
Psicanálise, a questão, a verdadeira questão aberta que lhes proponho para
estas jornadas é de saber se há possibilidade, necessidade, dever, ou se há
impossibilidade de retomar a inspiração de Lacan em O Seminário IV para elaborar uma lógica do tratamento.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
LACAN, J. (1951) “Intervenção sobre a
transferência”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 214-225.
_________. (1956-57) Le Seminaire. Livre
IV: La relation d’objet. Paris: Le Seuil, 1994.
_________. (1957) “A instância da letra no
inconsciente ou a razão desde Freud”. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998, p. 496-533.
_________. (1957-58) “De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose”. Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1998, p. 537-590.
_________. (1998) Escritos. Rio de Janeiro
Jorge Zahar Ed.
_________. Le Séminaire. Livre XVII: L’envers
de la psychanalyse. Paris: Le Seuil, 1991. LÉVI-STRAUSS, C. (1955). A estrutura
dos mitos. Antropologia Estrutural (1944- 56). Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, s/d, p. 237-265.
IN: Revista aSEPHALLUS, Vol. IV
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