Conversando sobre psicanálise: entrevista com Judith Butler
Patrícia Porchat Pereira da Silva Knudsen
Universidade Paulista
A entrevista que se segue teve como ponto de
partida minha tese de doutorado em Psicologia Clínica, defendida em 2007,
intitulada Gênero, psicanálise e Judith Butler - do transexualismo à política. Logo após a
defesa da tese, participei do II Congresso Internacional de Filosofia da
Psicanálise, no Brasil, onde conheci a filósofa e psicanalista francesa Monique
David-Ménard, do Centre d'Études du Vivant, da Universidade Paris-Diderot. Ela
me convidou para assistir a algumas aulas de seu seminário em Paris no ano
seguinte, que contariam com a presença de Judith Butler. O tema do seminário do
ano 2007-2008 era "Agenciamentos (deleuzianos), dispositivos
(foucaultianos) e performativos (butlerianos)". Butler havia proposto a
Monique David-Ménard participar como colaboradora das aulas que tratariam sobre
o "performativo". A proposta do seminário era pensar de que maneira
as noções de agenciamento, dispositivo e performativo ajudam a definir os componentes
do espaço da transferência como um espaço que recolhe e transforma a "vida
da alma". Foram quatro aulas com a participação de Judith Butler, no mês
de junho. A entrevista se deu no dia 24 de junho de 2008, no Café Beaubourg, ao
lado do Centro Georges Pompidou, em Paris.
Patrícia
Porchat: No documentário feito por Paule
Zadjermann, Judith Butler, philosophe en tout genre, você diz que o
fato de ser lésbica não vem antes de ser mulher, ou judia, ou filósofa. Você
diz que não temos apenas uma identidade e que se pode transitar de uma
comunidade à outra, em termos de engajamento num movimento, como o
movimento gay, por exemplo. Em Undoing Gender você
afirma que é uma filósofa feminista. O que é ser feminista hoje e por que ainda
é necessário ser feminista hoje?
Judith Butler: Acho que a razão por
que digo "sou feminista" em termos enfáticos é que muitas pessoas têm
me chamado de pós-feminista ou pensam que faço parte de um movimento
pósfeminista. Portanto, estou no processo de refutar essa descrição e talvez
historicamente, se não fosse esse o caso, eu pudesse ser mais despreocupada e
dizer "Talvez eu seja uma feminista". Mas, dado esse esforço em me
situar numa espécie de quadro pós-feminista, eu resisti à linguagem da
identidade. Mas certamente há outras ocasiões em que uso a linguagem da identidade
- quando sinto que é extremamente importante marcar certo tipo de posição a
esse respeito junto a outra pessoa. Depende do contexto do discurso no qual
estou operando.
PP: Em que circunstâncias
você consideraria importante dizer que é uma feminista?
JB: Bem, eu certamente não
acho que estamos vendo o fim da discriminação econômica contra a mulher, não
acho que vimos o fim da desigualdade ou da hierarquia de gênero. Não acho que
vimos o fim da violência contra a mulher, não acho que vimos o fim de certas
concepções profundamente arraigadas sobre quais são as fraquezas das mulheres
ou sobre a capacidade das mulheres na esfera pública, ou sobre uma série de
outras coisas. Portanto, essas lutas ainda estão muito vivas. Suponho que, para
algumas pessoas muito estabelecidas e economicamente seguras, o feminismo já
não é tão forte, já não é mais um atrativo, porque elas podem muito bem ser
mulheres que hoje ocupam postos de poder e privilégio, ou de segurança
econômica, mas isso, com certeza, não é verdade globalmente. Se a gente olha
para diferentes níveis de pobreza, diferentes níveis de escolaridade, vê que o
sofrimento das mulheres é incomensurável. Então, sim, eu sou uma feminista.
Podemos discutir sobre formulações do movimento feminista ou sobre o status de
identidade no interior do movimento, e, nesse caso, eu teria discussões com
todo tipo de pessoas, mas esse é um debate no interior do movimento, ou pelo
menos sobre a direção que o movimento deve adotar.
PP: Eu gostaria de lhe
perguntar: as psicanalistas feministas. Entre elas, quais você considera que
melhor lidam com a questão dos transgêneros?
JB: Entre as psicanalistas
feministas? Posso pensar num par de pessoas de Nova York, uma delas é um homem
chamado Ken Corbett - eu o considero extraordinário - e há uma mulher chamada
Adrianne Harris, e, se você procurar na revista Studies in Gender and
Sexuality, que é uma publicação de psicanálise e teoria cultural, vai
encontrar alguns profissionais que estão pensando nisso de modo interessante.
Mas se trata de clínicos, eu sei, que também escrevem ensaios. Acho que os
autores mais importantes no campo da psicanálise feminista ainda não fizeram um
grande trabalho com isso e não sei se eles estão muito interessados na questão.
PP: Mas existiria uma razão
para que dentro das teorias feministas ou do movimento feminista não houvesse
interesse na questão dos transgêneros?
JB: Bem, depende. Muitas
psicanalistas feministas também estão interessadas em pensar a respeito de
raça, ou estão interessadas em pensar em transgênero ou em pensar em crianças,
ou seja, ser uma feminista não significa que você só pensa nas mulheres, ou que
você adere a uma ideia das mulheres como algo biologicamente fundamentado de
alguma maneira. É difícil. Se você está me perguntando sobre a estrutura da teoria,
então posso lhe responder de um jeito, mas se você está perguntando
sociologicamente, como por que esse grupo particular não expandiria seus
horizontes, aí é uma questão diferente. Não tenho certeza de qual das duas você
está...
PP: Eu estava pensando num
fato que aconteceu no Brasil durante um encontro feminista. Houve uma grande
discussão porque parte do movimento aceitava a presença de transgêneros e outra
parte não as considerava como mulheres sob nenhuma hipótese. Por isso eu
perguntava que teorias feministas levam em conta a possibilidade de ver
transgêneros como mulheres.
JB: É uma ideia muito boa. O problema é que há alguns
psicanalistas que pensam a respeito da transexualidade..., como o famoso livro
de Catherine Millot. Mas acho que é um livro horrível, que é uma espécie de
patologização. Então, por exemplo, fui conversar com alguns lacanianos outra
noite e um deles disse: "Bem, mesmo se pensarmos na transexualidade como
uma espécie de psicose, isso não é uma categoria patologizante, pois, quando
uma pessoa fala sua psicose, ela está nos dando a estrutura da psique humana,
portanto está falando uma verdade universal". Achei aquilo um argumento
bastante espantoso, porque, mesmo que o psicótico esteja falando uma verdade
universal de algum modo, o fato é que está falando essa verdade a partir de uma
posição psicótica e chamá-la de psicótica é invariavelmente patologizante nesse
sentido. Isto é, entre os problemas no interior da teoria psicanalítica
feminista tradicional, suponho que posso simplesmente lhe dar esta única
resposta: as feministas da teoria das relações objetais tendem a assumir uma
espécie de relação primária, homem e mulher, que traça uma diferenciação de
gênero em relação a pessoas que precisam identificar-se ou diferenciar-se da mãe.
Assim, se alguém se torna transgênero, isso tende a significar que essa pessoa
não segue certo tipo de modelo de desenvolvimento de diferenciação ou
identificação de gênero: a identificação na direção da "condição de
menina" [girlness] ou a diferenciação na direção da "condição
de menino" [boyness]. Portanto, a reprodução de gênero depende da
relação diferenciada através do maternal. E há algumas suposições normativas
acerca de tornar-se e reproduzir meninas ou tornar-se e reproduzir meninos, e
muitas feministas de fato querem que as meninas sejam reproduzidas de maneira a
serem capazes de uma autonomia maior e querem que os meninos sejam reproduzidos
de maneira a se tornarem menos capazes de violência ou agressão. E esse é o
enquadramento feminista, está sempre lá. Mas a questão é como o fato de se
tornar uma coisa ou outra passa a ser um problema. Ou a compulsão para se
tornar uma menina ou a compulsão para se tornar um menino, isso exerce pressão,
e sinto que para compreender isso é preciso ter uma ideia de regulação de
gênero que se estenda para além da ideia de desigualdade entre homens e
mulheres. Assim, os lacanianos, ou pelo menos as psicanalistas feministas que
provêm de uma perspectiva lacaniana...
PP: Você se refere a
Irigaray, por exemplo...
JB: ... ou talvez Juliet
Mitchell, que agora está mais para kleiniana, com certeza. Juliet Mitchell, no
contexto da língua inglesa, estabeleceu uma espécie de parâmetro para a
psicanálise e o feminismo com sua obra, e ali a economia estruturalista do dom,
você sabe, produz o homem e produz a mulher em certas posições em relação às
trocas, e então você tem aquelas posições estruturais. Se a gente vai falar
sobre transgênero, terá que ir além desses tipos de posições estruturais, uma
vez que simplesmente não é o caso de que toda criatura aparentemente biológica
que é fêmea tenha que ser convertida socialmente numa menina ou numa mulher.
PP: Como podemos escapar do
pensamento sobre posições estruturais?
JB: O que eu acho mais produtivo são essas feministas que de
fato pensam de modo complexo a identificação: as maneiras como as
identificações são estabelecidas, ou como o ego corporal é projetado, a maneira
como a morfologia é compreendida em relação à fantasia, todas essas coisas me
parecem fontes psicanalíticas realmente importantes para pensar o transgênero.
E acho que incluiria a melancolia por razões minhas, como creio ter formulado
em outro lugar, mas isso me parece muito mais interessante.
PP: Você está se referindo a
algumas psicanalistas em particular?
JB: Bem, penso, por exemplo,
que há algumas pessoas que provêm das teorias de relações de objeto ou provêm
do que é chamado de psicanálise relacional nos EUA, que pensaram muito sobre
algumas dessas coisas. Elas estão mais próximas de Jessica Benjamin do que de
qualquer outra pessoa de quem falamos, mas também se moveram para fora de seus
parâmetros.
PP: No livro de Benjamin
podemos perceber uma espécie de essencialismo quando ela diz que os homens
"são" de tal maneira e as mulheres "são" de certa maneira.
E ela também se refere ao fato de que a mulher, em sociedade, tem o sentimento
de que apenas é valorizada quando se torna mãe.
JB: Mas acho que ela mudou.
Acho que seu trabalho mais recente é mais aberto. Quero dizer, pelo menos nos
EUA, esse grupo tem sido o mais interessante para mim. Estão muito próximos do
trabalho de Jéssica Benjamin, mas não exclusivamente. Dianne Ehrenreich,
Adrianne Harris, Ken Corbett, Muriel Dimen, estão todos na New York University,
no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, e são para mim aqueles com
quem me sinto mais à vontade. Devo dizer que a maior parte das pessoas com que
converso, que de fato trabalha com pessoas transgênero, é psicóloga clínica, e
não psicanalista. Ou é psicóloga clínica com uma base psicanalítica. Mas essas
pessoas não passaram pelas escolas, e as escolas são duras, porque eu falo com
elas, falo com a Sociedade Psicanalítica de São Francisco, falo com a Sociedade
Psicanalítica Internacional em Berlim e encontro a resistência que existe em
todas as escolas, as articulações kleinianas, os psicanalistas do ego, os
lacanianos, e mesmo do próprio Laplanche, quando falei de fato com ele no ano
passado, enfim, a resistência é muito grande.
PP: Você nunca mencionou
Joyce McDougall.
JB: Sim, ela é interessante. Gosto do seu trabalho, não o
conheço assim tão bem, mas gostei muito do que li. E lamento não ter me
envolvido mais com ela, mas talvez ainda o faça. Acho que Françoise Dolto,
também, uma parte do seu trabalho em A imagem inconsciente do corpo é
ótima para pensar em como o corpo é vivenciado, como sua morfologia é dada ou
como é sexuada, como ele se torna ciente ou consciente de si mesmo como um
corpo sexual ou como um corpo erógeno. É um trabalho extremamente interessante,
esteve em circulação por muito tempo, é parte de uma abordagem psicanalítica
mais clássica na França. Há uma tradução para o inglês na revista Differences.
PP: Eu agora gostaria de lhe
perguntar um conceito que me parece importante em sua obra. Trata-se do trieb(pulsão),
que em inglês aparece como drive. A partir de seu trabalho entendo
que até a própria pulsão poderia ser compreendida como socialmente construída.
Mas também entendo que, em Undoing Gender, você diz que a pulsão é
condição para uma transformação social. Então, quando você fala de pulsão, está
se referindo à pulsão freudiana, à pulsão lacaniana, à pulsão deleuziana?
JB: Tudo o que sei é o
seguinte: não tenho uma formulação explícita do tipo "Esta é a minha
teoria da pulsão". Mas posso dizer algumas coisas a respeito. O ensaio de
Freud A pulsão e suas vicissitudes (Trieb und ihre Schicksale) foi
muito importante para mim desde que eu tinha 22 anos. E penso que ali ele
introduz a ideia da pulsão como conceito-limite, existindo no limiar entre
corpo e ideia ("soma" e ideia). E julgo isso extremamente
interessante. A pulsão nunca é plenamente capturada pelas ideias, nem tampouco
é plenamente redutível a um corpo biológico, mas existe no ponto de
sobreposição entre eles, e Freud chega a dizer que a pulsão é parte dessa
linguagem figurativa, é parte da poesia dele. Eu me interesso pelo que Deleuze
faz com as pulsões em Vênus das peles e em seus primeiros
trabalhos sobre Sacher-Masoch. Acho extremamente interessante. A ideia de pulsion,em
francês, é provavelmente um pouco diferente, mas ali penso em pulsões como
estando a serviço de um perpétuo deslocamento. Mas acho que talvez a pessoa
mais importante para mim no tocante a pulsões seja Laplanche e a discussão
contida em Vida e morte na Psicanálise. Acho que ele tem uma tese
brilhante, que é a de que não há nenhuma teleologia natural para uma pulsão e
de que as pessoas que entendem pulsão como um impulso para a reprodução sexual
cometem um erro. Ele diz que as pulsões sexuais não têm nenhum telos inerente,
nenhum fim ou meta necessários. Assim como você não pode dizer que uma pulsão
sirva à função social de reprodução, porque uma pulsão está sempre se desviando
do objetivo social para o qual é direcionada. Portanto, não se pode regular
efetivamente as pulsões, porque elas sempre vão escapar, ou adotar outro objeto
que não o previsto. E para mim isso é ótimo, porque Laplanche realmente defende
o argumento de que a sexualidade não está vinculada à reprodução da espécie, e
isso é crucial, quero dizer, ela pode ser vinculada, ela pode ser levada a
seguir nessa direção, mas isso não é inerente à sexualidade em si. Portanto,
tomo isso como um ponto importante.
PP: Tenho a impressão de que, quando você escreve e pensa, você
sempre tem uma interlocução com a psicanálise. Ela está sempre lá. Mas, ao
mesmo tempo, não é algo.
JB: ... em que eu mergulhe.
Pensei nisso talvez uns dez anos atrás, mas não acho que eu seria muito boa
nisso. Para mim é uma teoria muito importante, uma prática muito importante.
Estou envolvida com suas tradições, com sua teoria, quanto a isso não há
dúvida. Mas sinto também que ela precisa ser posta em contato coma a Teoria
Cultural e a Política Cultural, de um modo mais geral. Então eu me vejo
arranjando um encontro ou alguma espécie de reunião entre psicanálise e
movimentos sociais mais amplos, políticas culturais e questões relativas a
gays, lésbicas, bi, trans, intersexo. Preocupa-me o fato de que tantas pessoas
nesses movimentos resistam à psicanálise, que julguem que a psicanálise não é
mais do que regulação social, normalização. E por outro lado os psicanalistas
resistem de verdade a isso, acham que estão trabalhando numa esfera
completamente separável da psique, que esta é autônoma, que segue suas próprias
regras, como se o que acontece no interior da transferência fosse algo isolado
do que ocorre no mundo exterior. Acho que esse não é um antagonismo necessário,
porque a psicanálise pode fornecer uma crítica vigorosa da normalização, uma
crítica vigorosa da regulação social, pode nos proporcionar uma teoria da
fantasia, pode colocar em questão o corpo natural, pode observar o modo como o
poder social toma forma na psique, há várias maneiras de se fazer isso. E acho
que os movimentos sociais preocupados com isso podem entender melhor sua
própria situação a partir de uma perspectiva psicanalítica E talvez até
desenvolver vocabulários mais complexos para pensar a identidade, ou o desejo,
ou a solidariedade, três conceitos essenciais para esses movimentos. Mas não
quero estar "dentro" de nada, acho que não é meu papel, não é meu
trabalho.
PP: Considerando a ideia de
ser humano, você acha possível que, a partir da psicanálise, seja possível
conceber alguma ideia universal de ser humano?
JB: Antes de tudo, não sei se
existe algo universalmente verdadeiro sobre todos os humanos. Eu me preocupo
com as normas que governam a questão de quem será considerado humano e quem
não, mas não acho que exista um humano fora das normas. Penso que algo acontece
quando as normas se rompem, ou quando se resiste às normas, ou quando as normas
produzem um campo de assim chamados seres humanos fora das normas. E isso é
interessante para mim porque há um modo pelo qual a categoria do humano ao
mesmo tempo permite o reconhecimento de certos humanos e produz uma
impossibilidade para outros. E a esses outros nós chamamos de humanos? De que
os chamamos? É uma questão em aberto. Então penso que o humano sempre produz o
espectro da mente e é para isso que estou olhando. Não acho que exista uma
forma humana singular, não acho que exista uma capacidade humana singular, mas
o que eu acho sim, provavelmente na base do meu trabalho há essa suposição, é
que os seres humanos, se as condições sociais forem solidárias - e esse é um
requisito importante -, se as condições sociais forem solidárias, os seres
humanos, como os outros animais, buscam persistir em seu próprio ser. Essa é
uma formulação de Spinoza, na Ética. E isso é interessante na
medida em que em Spinoza e em Deleuze o indivíduo persiste em seu próprio ser
apenas em relação aos outros, e apenas na medida em que as relações com os
outros permitem uma grande afetividade ou uma maior expressividade desse desejo
de viver. E é por isso que as condições sociais precisam ser propiciadoras. Não
é uma capacidade interna, é uma capacidade que vem a ser vivida e exercida nas
relações sociais. Então para mim não é uma parte monádica da minha existência,
é algo que só se torna possível no contexto de um conjunto de relações. Não
posso persistir em meu próprio ser sem ser parte de um mundo social que torna
isso possível e em relação com outros, que, em certo sentido, precisam
solicitar ou apoiar meu desejo de viver.
PP: Então você tem que ser
reconhecido por esse outro.
JB: Sim, o reconhecimento é
uma faca de dois gumes, ele pode facilitar o desejo e pode também matar o
desejo. É um risco.
PP: Quando você fala de
reconhecimento, qual é a diferença que se pode estabelecer em relação à ideia
de inteligibilidade que aparece em Problemas de gênero?
JB: Quando falamos sobre o campo da inteligibilidade de gênero,
estávamos falando sobre instituições, categorias e linguagens existentes que
podem fazer com que o gênero tenha sentido. O reconhecimento é uma relação
intersubjetiva, e, para um indivíduo reconhecer o outro, ele tem que recorrer a
campos existentes de inteligibilidade. Mas o reconhecimento também pode ser o
lugar onde os campos existentes de inteligibilidade são transformados. Assim,
se perguntarmos como nos deslocamos de um campo de inteligibilidade a outro,
quero dizer que é possível pedir para ser reconhecido de uma maneira que, pelo
menos inicialmente, é ininteligível: as pessoas dizem que não posso fazer isso,
"não sei o que você está dizendo, não faz sentido, eu recuso". Mas é
marcar posição no campo da inteligibilidade, revisá-lo e expandi-lo, de modo
que uma nova forma de reconhecimento seja possível. Ou o indivíduo pode dizer:
"não quero ser reconhecido por meio de nenhum dos termos que você
tem", e nesse ponto aquele campo de inteligibilidade é recusado e uma
distância crítica se estabelece. Invocamos campos de inteligibilidade quando
reconhecemos outros, mas também podemos retrabalhá-los ou resistir a eles no
curso de novas práticas de reconhecimento.
PP: Quando você falou sobre
gênero como ato performativo, você disse que era um ato intencional e
performativo. Na transferência, durante um tratamento psicanalítico, algo pode
mudar porque existe uma repetição e essa permite mudanças. Essa ideia de uma
repetição que permite mudanças está presente em Problemas de gênero.
Entendo que você quer dizer que não é apenas na situação de análise que uma
mudança é possível. Na repetição, fora da situação de análise, algo falha e a
transformação pode acontecer.
JB: Entendo o que você diz,
mas me diga como isso se relaciona com a questão do intencional e do
performativo.
PP: Quando repetimos um ato,
o que significa dizer que há intencionalidade? Intencional pode ser entendido
como uma espécie de voluntarismo, mas quando esse ato fracassa, quando o ato
performativo fracassa, você dirá que há algo que escapa. Se transportarmos isso
para a ideia de que nos fazemos homens ou mulheres na repetição de atos, mas
que algo pode falhar ou fracassar nessa repetição, essa falha ou fracasso
não é
intencional.
JB: Aí é que está o problema,
há dois sentidos de intencional, um deles que significa deliberado, voluntário,
uma escolha, mas o outro vem da fenomenologia, e aí ele, de fato, significa que,
se eu digo algo, a estrutura do meu discurso é intencional, significa que ele
se refere a alguma coisa no mundo.
PP: Essa é a ideia
fenomenológica de que a consciência é intencional, sempre visa a um objeto,
está sempre em relação com alguma coisa.
JB: Isso. Se pensarmos na performatividade nesse sentido
fenomenológico, eu pratico um gênero, mas não o pratico num mundo solipsista
estou sempre, em certo sentido, me referindo a, comentando, habitando,
retrabalhando um conjunto de normas de gênero que estão em mim e também fora de
mim, então isso é intencional no sentido de que está se referindo a um mundo
exterior. Mas não quero dizer que o gênero seja totalmente consciente ou que
seja totalmente voluntário, pois acho que não é.
PP: Quando você colocou as coisas
nesses termos?
JB: Usei essa formulação uma
vez, num artigo antigo, talvez 20 anos atrás, mas apenas querendo dizer isso
naquele sentido fenomenológico limitado, mas penso que ele implicava um
comprometimento excessivo com uma ideia de consciência da qual eu provavelmente
abriria mão hoje em dia.
PP: Isso aparece em Problemas
de gênero.
JB: Eu uso essa ideia
em Problemas de gênero?
PP: Sim, mas você não faz
referências à fenomenologia. É por isso que o termo "intencional"
parece se referir a voluntarismo.
JB: Bem, essa é uma maneira
de ler Problemas de gênero que vem causando alguns problemas,
mas de fato não me lembro de ter dito isso em Problemas de gênero,
achei que tinha dito antes. Mas se você diz que está lá eu acredito, ou eu me
coloco numa situação complicada.
PP: Para terminar, no que
você está trabalhando agora?
JB: Bem, estou trabalhando em
alguns manuscritos, um dos quais na verdade é sobre a guerra. Estou pensando
numa espécie de continuação de Precarious Life e tenho uma
série de ensaios sobre tortura e política sexual. O outro é um debate sobre
secularismo e política sexual, outro sobre vulnerabilidade e capacidade de
sobrevivência, pensando no modo como as populações são consideradas
distintamente precárias ou não, e talvez pensando um pouco mais acerca da
corporificação (embodiment) como uma situação de precariedade.
Outro é sobre filosofia e crítica judaica da violência de estado, porque faço
parte de uma "esquerda judaica" que é crítica de Israel.
JB: Acho que discordo dele na
questão da "vida nua" porque, para mim, quando estamos falando sobre
populações despossuídas ou refugiadas, ou sem direitos, ou de fato contidas em
estruturas coloniais como Gaza, ou encarceradas em Guantanamo, não estamos
falando daqueles que foram lançados para fora da política, que foram expostos,
de uma maneira nua, à força bruta. Estamos, na verdade, falando sobre situações
nas quais o poder se sedimentou tão completamente nas vidas dessas pessoas que
não há nenhum meio de escapar do poder. Então eu acho que ele usa uma ideia
muito idealista de política e, portanto, penso que "vida nua" é fora
do político. Acho que aquilo de que ele está falando em Poder soberano
e Vida nua é, em si, uma situação altamente política, uma situação que
opera talvez fora da lei, certamente não fora do poder. Discordo dele em sua
leitura de Kant e de Foucault, mas acho que estamos ambos preocupados com o
mesmo tipo de fenômeno. Há uma sobreposição de preocupações ali.
IN: Scielo
- Rev. Estud. Fem. vol.18 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2010
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