quinta-feira, outubro 12, 2017









Jacques Lacan e a voz

 Jacques-Alain Miller


Jacques Lacan deu um lugar específico à voz na psicanálise. Voltarei, aqui, minha atenção para as vias pelas quais ele se viu levado, em seu ensino, a dar à voz um estatuto de objeto, dito objeto a, com minúscula, naquilo que chamou de sua álgebra.

A meu ver trata-se de uma inovação na psicanálise. Com efeito, a tradição psicanalítica, desde Freud, Abraham, Melanie Klein, havia, é verdade, destacado a função do objeto, mas para pôr toda a ênfase sobre dois objetos hoje bem conhecidos para além da prática analítica: o objeto oral e o objeto anal, dos quais se supunha serem sucessivamente prevalentes na cronologia do desenvolvimento – o desenvolvimento do indivíduo ou, de maneira mais precisa, o da libido tendo como fim sua convergência no objeto genital.

Em outras palavras, não se esperou Lacan para situar na psicanálise a função do objeto, mas esses dois objetos foram inscritos em estágios do desenvolvimento. É um fato histórico da psicanálise que enquanto o ponto de vista diacrônico, cronológico da relação de objeto comandou a perspectiva o objeto vocal ficou despercebido. O objeto vocal só apareceu na psicanálise quando a perspectiva foi ordenada com relação a um ponto de vista estrutural.

O que é o ponto de vista estrutural em psicanálise? É o ponto de vista que Lacan inaugurou – não foi o único que ele adotou –, fornecendo o estatuto ao inconsciente a partir da estrutura da linguagem, tal como foi apresentada por Saussure e desenvolvida por Jakobson. Ele consiste, de entrada, em anular as questões de gênese e operar uma separação na teoria do desenvolvimento da libido. De um lado ficará o que comporta o ponto de vista genético, ou seja, a teoria dos estágios, incessantemente utilizada; de outro lado aquilo para o qual os estágios serviam de roupagem, os dois objetos que ali se encontram, caídos dessa catástrofe.

Desde então, o ponto de vista estrutural nos obriga igualmente a remanejar a noção de indivíduo, suporte do desenvolvimento, para substituí-lo por um conceito diferente, o de sujeito – que não é o suporte do desenvolvimento, nem mesmo o suporte da estrutura. É exatamente o que supõe a estrutura. Nisso, o sujeito é o sujeito do significante; é a única coisa que dele sabemos; ele é suposto pela estrutura da linguagem. As teses de desenvolvimento genético dão lugar, então, à tese de causação estrutural do sujeito e o objeto se vê então, pela mesma via, arrancado do quadro diacrônico no qual primeiro se viu inscrito na psicanálise por ter que se encaixar nas operações de causação do sujeito. O problema deixa de ser um problema temporal. Ele não é mais formulado em termos de sucessão – de progressão ou de regressão –, mas em termos estruturais.

Então, como a função de objeto, tal como é trabalhada na psicanálise desde Freud, consegue se inserir nas relações de sujeito e da estrutura da linguagem? Essa questão é problemática em dois pontos.

Primeiro, como pode ser formulada a relação do objeto com a estrutura linguística? Como, visto que o objeto – inclusive o objeto oral e o objeto anal – não é um elemento da estrutura linguística, a partir do momento em que ele não é nem significante, nem significado? Se Lacan escreve o objeto com a letra a, é para distingui-lo de todas as notações do significante ou do significado, para as quais ele usa diferentes tipos de S – maiúsculo, minúsculo, itálico, etc. Lacan coloca o objeto à parte da estrutura linguística escrevendo-o com uma letra que ele não declinará.

Em seguida, como será que, apesar disto, existe uma relação entre esse objeto que não é significante e um sujeito, definido inversamente como suposto pela estrutura da linguagem, ou seja, um sujeito definido como sujeito do significante? É um problema completamente matricial no ensino de Lacan, sobre o qual ele trabalhou durante longos anos para fazer concordar essas duas exigências que podem parecer habitadas por uma antinomia.
Justamente no caminho da resolução desses problemas Lacan encontrou o que podemos chamar de dois novos objetos na psicanálise: o objeto vocal e o objeto escópico, a voz e o olhar, que generalizam o status do objeto na medida em que não são situáveis em nenhum estágio. Não existe nem estágio vocal, nem estágio escópico.

Para o objeto escópico, para o olhar como objeto a Lacan reservou um desenvolvimento hoje famoso em seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise2, aproveitando a publicação do livro póstumo de M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível. Existe, para isso, uma razão que não só a do acaso, embora o acaso tenha tomado parte nisto. Lacan, de fato, tratando do objeto olhar, aproveitou para corrigir o sentido daquilo que ele mesmo tinha introduzido, o também muito famoso estágio do espelho.

De fato, na mesma medida em que a relação especular do “eu me vejo me vendo”, suporta as identificações imaginárias – e, no fundo, o espelho está aí para materializar a imagem –, ela dissimula a distinção que deve ser feita entre visão e olhar; entre a visão como função do órgão da vista e o olhar, seu objeto imanente, onde se inscreve o desejo do sujeito (e que não é um órgão, nem função de biologia alguma).

Não temos no ensino de Lacan um desenvolvimento comparável sobre o objeto vocal. Esse desenvolvimento pode, no entanto, ser esboçado tendo como modelo a articulação entre o olho e o olhar, sem que seja necessário introduzir uma mediação como a do espelho. O espelho é necessário para produzir o “se ver a si mesmo”, enquanto que o “se ouvir a si mesmo” já está presente no mais íntimo da subjetividade – ou, para expressá-lo como Husserl, na “presença a si do presente vivo da subjetividade”.

Mas, seguindo o modelo da “esquize”, da oposição, da antinomia entre olho e olhar, por que não introduzir uma antinomia entre a orelha e a voz? Isso já basta para, de relance, deixar claro que a voz como objeto a não pertence de maneira alguma ao registro sonoro – da mesma maneira que o olhar como objeto a, no Seminário 3 pode se exemplificar bem pelo barulho que surpreende o voyeur na análise que Lacan toma emprestada de Sartre. Evoco os nomes de Merleau-Ponty e de Sartre, pois todas as construções de Lacan estão de fato em constante relação com as análises fenomenológicas. 

Apesar da voz como objeto a em nada pertencer ao registro sonoro, isso não impede que as considerações que podem ser feitas sobre a voz, por exemplo, a partir do som como distinto do sentido ou sobre todas as modalidades de entonação, só possam se inscrever na perspectiva de Lacan se forem ordenadas a partir da função da voz, se assim posso dizê-lo, como a-fônica. Isso é sem dúvida um paradoxo, mas que diz respeito ao fato dos objetos ditos a só poderem se afinar com o sujeito do significante se perderem toda substancialidade, se estiverem centrados por um vazio que é a castração.

Enquanto eles são oral, anal, escópico, vocal, os objetos situam-se em torno de um vazio e é nesta condição que diversamente o encarnam. Ou seja, cada um desses objetos é sem dúvida especificado por certa matéria, mas é especificado por essa matéria na medida em que a esvazia. E é por isso que o objeto a na verdade é, para Lacan, uma função lógica, uma consistência lógica que consegue se encarnar naquilo que cai do corpo sob a forma de diversos dejetos. Ou seja, é fundamental um critério para poder assinalar essa letra a a objetos; podemos enunciar esse critério nos termos do Homem dos lobos: que seja uma pequena coisa separável do corpo.

O que fez Lacan prolongar a lista freudiana de objetos com a voz e o olhar? A resposta é simples: a experiência clínica. Não é uma meditação na solidão do monólogo do sujeito consigo mesmo, no caso do objeto voz. É uma experiência clínica, na qual o olhar e a voz se manifestam sob formas separadas, com um evidente caráter de exterioridade em relação ao sujeito.

Ou seja, foi a experiência clínica da psicose que levou Lacan a estender a lista freudiana. Podemos dizer que, de algum modo, estes objetos eram conhecidos pelos psiquiatras e que a teoria da voz e do olhar como objetos a vem do cruzamento da experiência psiquiátrica de Lacan e da teoria dos estágios de Freud, influenciada pela estrutura da linguagem de Saussure. É do delírio de observação que Lacan extraiu o objeto escópico, pois esse delírio torna manifesta a presença separada e exterior de um olhar sob o qual cai sujeito. Da mesma forma, é dos fenômenos do automatismo mental – assim nomeado desde Clérambault, que Lacan reconhecia como seu único mestre em psiquiatria – que Lacan extraiu o objeto vocal. Ali, fala-se de vozes mesmo sendo elas todas imateriais e que nem por isso deixam de ser para o sujeito perfeitamente reais. Elas até chegam a ser aquilo do qual ele não pode duvidar, sem que ninguém consiga registrá-las. Não é a materialidade sonora delas que está no primeiro plano.

Há lógica, portanto, que seja em seu escrito sobre a psicose onde encontremos a mais desenvolvida articulação da relação do sujeito e da voz. Ela comporta, como, aliás, aquilo que desenvolveu em seu seminário sobre a articulação do sujeito e do olhar, uma confrontação com Maurice Merleau-Ponty – na escrita ela permanece implícita – e precisamente uma confrontação com a Fenomenologia da percepção, na qual encontramos uma teoria bastante desenvolvida da alucinação verbal motora.

Existe uma necessidade lógica – que mereceria o desenvolvimento da confrontação de Lacan e Merleau-Ponty sobre a questão da alucinação verbal motora – para o fato de Lacan ter encontrado a voz antes do olhar, dado que tomou a função da fala no campo da linguagem como ponto de partida para entender a experiência psicanalítica. Eu diria que a instância da voz merece inscrever-se como um terceiro entre a função da fala e o campo da linguagem.
Podemos começar pelo fato de que a função da fala é que confere um sentido às funções do indivíduo. Essa fala amarra um ao outro: o significado – ou melhor, o “a significar”, aquilo que se deve significar – e o significante. Esse enlaçamento comporta um terceiro termo, que é o da voz. Se estabelecermos que podemos falar sem voz, apenas por afirmar isso, podemos inscrever no registro da voz o que constitui resíduo, resto de subtração da significação ao significante. E, em uma primeira abordagem, podemos definir a voz como tudo que, do significante, não concorre para o efeito de significação. É o que comporta um esquema muito simples de Lacan.

 Esse esquema apresenta a operação da fala a partir do cruzamento de dois vetores: o da intenção de dizer, da intenção de significação, que só pode se realizar cruzando o vetor do significante. A voz é tudo aquilo que, do significante, não concorre para o efeito de significação. O que, então, comporta o ponto de vista estrutural é que a intenção de significação só se realiza se encontrar, no vetor do significante, o que constitui sua estrutura tanto como léxico quanto como sintaxe. Inscrever a voz aqui a instala, de saída, em uma posição de resto.

O segundo vetor que Lacan inscreve neste esquema encarna a dinâmica do vivo e, simetricamente, o que é o gozo do vivente, que, ao atravessar a estrutura, aparece sob os auspícios da castração. É pertinente, aqui, refletir sobre as posições simétricas da voz e da castração.

A voz lacaniana, a voz no sentido dado por Lacan, não somente não é a fala, como em nada é o falar. Temos visto se desenvolver uma linguística da entonação, que para muitos linguistas parece ser um exercício limítrofe. Ela busca definir o que seriam os significantes da entonação segundo os efeitos de sentido dos quais eles se encarregam. A esse respeito, a linguística da entonação nada tem a ver com a voz lacaniana que não é entonação, já que sua posição é essencialmente fora do sentido. Pode-se pensar que o que Lacan chama de voz seja aparentado com a entonação e suas modalidades. Não creio que seja este o objetivo dele na medida em que essa linguística da entonação só é possível se encontrarmos de maneira definitiva os efeitos de sentido aí produzidos.

Neste sentido, a voz, no uso muito especial que Lacan faz desse termo, é sem dúvida uma função do significante – ou melhor, da cadeia significante como tal. “Como tal” implica que não é somente a cadeia significante como falada ou entendida, também pode muito bem ser enquanto lida e escrita. O ponto crucial dessa voz é que a produção de uma cadeia significante – eu lhes digo nos termos mesmos de Lacan – não está ligada a este ou aquele órgão dos sentidos, a este ou aquele registro sensorial.

É bem verdade que encontramos em Lacan um esboço da fenomenologia da fala que tem como objetivo mostrar os paradoxos da percepção da palavra. Estes paradoxos consistem em que o sujeito se mostra ali essencialmente paciente, ou seja, suporta os efeitos dela. Sem desenvolve-lo, assinalo que essa fenomenologia, antes de mais nada, tem que dar lugar à análise da percepção que o sujeito tem da fala do outro, no sentido que toda fala do outro inclui uma sugestão fundamental. Isso é bem ilustrado pelo fato de todo mundo poder ficar quieto durante um dia inteiro ouvindo a fala de outro – ouvir ou dormir. Isso não quer obrigatoriamente dizer que a ela obedeçamos. Essa sugestão inclui eventualmente uma desconfiança com relação à fala do outro: “Ele está dizendo isso, mas o que realmente quer dizer? Ele diz isso, mas foi mesmo ele que chegou a essa conclusão?”. Essa desconfiança se inscreve na linha dessa sugestão, como um estado de alerta no qual o sujeito fundamentalmente se coloca com relação à sugestão que vem bem naturalmente da fala do outro.

Por outro lado, a percepção da própria fala pelo sujeito inclui também certo número de paradoxos. Um exemplo entre os paradoxos que Lacan assinala é que o sujeito não pode falar sem também se ouvir, ou seja, sua própria fala inclui uma reflexividade espontânea, digamos assim, uma auto-afetação que sempre encanta o analista acerca dos fenômenos da consciência. Mas esse ‘ouvir-se’ é diferente do ‘escutar-se’ – em que uma atenção aplicada corrige, vem retomar essa refletividade espontânea. Quanto a isso, podemos notar que o sujeito não pode se escutar sem se dividir. Numerosas experiências mostram como, por exemplo, se através de fones de ouvidos fizermos o sujeito ouvir sua própria fala com uma pequena defasagem de tempo, ele se enrola completamente no que diz.

No mesmo capítulo da percepção da própria fala pelo sujeito, temos que inscrever o que é devido à observação psiquiátrica, ou seja, que à alucinação corresponde no sujeito o esboço de movimentos fonatórios, o que, eventualmente, pode ser observado. Tratando do que nos ocupa, da alucinação verbal, isso nos leva a afirmar que ela repousa, por parte do sujeito, em um desconhecimento de sua própria atividade, ou seja, da imputação feita ao sujeito, de ser constituinte, de ser responsável pela alucinação.

A perspectiva estrutural, na qual está inscrito o conceito de voz em Lacan, é completamente diferente. É a perspectiva segundo a qual o sujeito do significado é constituído a partir da cadeia significante – ele não é constituinte, mas sim, constituído. É a cadeia significante e sua estrutura que aqui dominam. Neste ponto, podemos formular que a voz é uma dimensão de qualquer cadeia significante, na medida em que qualquer cadeia significante – sonora, escrita, visual, etc. – comporta uma atribuição subjetiva, ou seja, designa um lugar para o sujeito. E essa atribuição subjetiva, na regra, diz Lacan, é distributiva, ou seja, não é de maneira alguma unívoca.

Na regra, uma cadeia significante designa vários lugares subjetivos. Isto não escapou a uma linguística que considera que todo discurso comporta fundamentalmente menções, que todo discurso é, neste sentido, fundamentalmente um discurso indireto, que não existe discurso sem que, na própria enunciação, o sujeito não esteja recuado, e não se organize, não tome distância com relação àquilo que diz. Vocês sabem que chegamos a ponto de fazer da negação tal menção – é necessário que haja antes a posição do termo, e em seguida, a negação do termo pré- posto. É exatamente aí que Lacan usa inicialmente o termo voz: toda cadeia significante é “a várias vozes” – o que de fato faz equivaler voz e enunciação.

Esta análise precede, em seu escrito sobre a psicose, suas considerações sobre uma famosa alucinação trazida por uma paciente do hospital Sainte-Anne que ouviu do vizinho a injúria “porca”. Lacan destaca que ele conseguiu obter desta paciente o que precede a injúria: a frase, completa – “estou vindo do salsicheiro”.

Qual é o ponto crucial da análise de Lacan? É que ele considera o conjunto formado pelo insulto e por essa frase como uma cadeia significante que foi quebrada, ou seja, em que se produziu uma distribuição de designação subjetiva. O “estou vindo do salsicheiro” é atribuído ao sujeito, que pode então reconhecer que ele o pensou, enquanto que a palavra “porca” foi arrancada dessa cadeia significante para ser atribuída ao Outro. Podemos sem dúvida aqui reconhecer, na frase “Porca, eu venho do salsicheiro”, a fantasia de despedaçamento desta paciente que assim, na palavra “porca”, ouve ecoar a fala de seu ser.

É a carga afetiva ou, digamos, libidinal da palavra “porca” que opera uma ruptura na continuidade da cadeia significante e uma rejeição para o real. Quanto a isso, Lacan chama voz um efeito de foraclusão do significante, que de maneira alguma é redutível, como a vulgata desejaria, à famosa foraclusão do Nome-do-Pai. Na medida em que um pedaço de cadeia significante, quebrado por aquilo que por enquanto chamamos de carga libidinal, não pode ser assumido pelo sujeito, ele passa para o real e é atribuído ao Outro. A voz aparece em sua dimensão de objeto quando é a voz do Outro.
O que realmente deve ser levado em consideração aqui? Seria o tom de voz do insulto? Afinal de contas, se tivesse sido dito ao pé do ouvido e baixinho, isso não deixaria de ser para o sujeito um insulto. O que importa é que essa voz venha do Outro. Neste sentido, a voz é a parte da cadeia significante que não pode ser assumida pelo sujeito como “eu” (je), e que é subjetivamente atribuída ao Outro.

Mas, no fim das contas, “porca” é também uma palavra, um significante que produz um efeito de significado, que chamamos insulto. Estaríamos, então, ainda no registro propriamente do significante e do significado? Não devemos obliterar o que rapidamente chamamos de “carga libidinal” desse termo. Ela comporta, dizendo em outras palavras que só deslocam ligeiramente aquilo vocês aceitaram até agora, uma carga de gozo – faço aqui uma verdadeira equivalência entre gozo e libido – que não pode ser integrada à cadeia significante.

Quanto a isto, a voz entra no lugar daquilo que, do sujeito, é propriamente indizível e que Lacan chamou de seu “mais-de-gozar”. A castração, da qual falei rapidamente um pouco significa que não ouvimos voz alguma no real, que ali somos surdos. Onde então se encontra a instância da voz quando falo? Não é o tom no qual falo, mesmo se posso variá-lo segundo os efeitos de sentido que quero produzir. Não é simplesmente que minha voz gravada me parecerá como sendo de outro. A instância da voz está sempre presente a partir do momento em que tenho que achar minha posição com relação a uma cadeia significante, na medida em que esta cadeia se mantém sempre relacionada ao objeto indizível. Neste sentido, a voz é exatamente aquilo que não se pode dizer.

Foi percebido que existia algo na voz que escapava ao efeito instrumental. É claro, sirvo-me do significante para fazer o Outro responder – toda cadeia é uma invocação – mas, de maneira mais radical, espero a voz do Outro, aquela que me dirá o que me espera, o que será de mim e o que do meu ser, como indizível, já é. É justamente o que me prende ao Outro: o que me prende ao Outro é a voz no campo do Outro.

É por isso que podemos dizer do psicótico, este que está sujeito ao automatismo mental, que ele é um homem livre. Ele é o homem livre do Outro, porque a voz do Outro já se encontra com ele, porque o Outro já lhe respondeu.

Para os que nela se inscrevem, a castração quer dizer que serão para sempre pedintes. É por isso que são os objetos tomados na demanda – o objeto oral e o objeto anal – que na análise apareceram no primeiro plano, antes da voz, este objeto do desejo.

Há voz pelo fato do significante girar em torno do objeto indizível. E a voz, como tal, emerge toda vez que o significante se quebra, e vai se reunir a esse objeto no horror.

Se eu tivesse que formular a invocação de toda a cadeia significante, eu a diria assim: “Não me dê o que te peço, pois não é o que desejo”. Mas talvez possamos dizê-lo ainda mais brevemente, sob a forma de uma injunção dirigida ao Outro: “Cala-te!”.

Não nos servimos, portanto, da voz. Ela habita a linguagem, ela a assombra. Basta que se diga para que emerja, para que apareça a ameaça daquilo não se pode dizer. Se falamos tanto, se fazemos colóquios, se conversamos, se cantamos e ouvimos os cantores, se fazemos  e ouvimos música, a tese de Lacan comporta que é para calarmos aquilo que merece ser chamado de voz como objeto a.

       Tradução: Lourenço Astua de Moraes e Renata Ceccheti
                          Versão final: Marcus André Vieira

IN: Opção Lacaniana, n. 11





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