segunda-feira, fevereiro 03, 2020

Jacques Lacan: glossário













glossário de lacanês

Sujeito - Longe de engrossar o coro daqueles que defendiam a "morte do sujeito", Lacan sempre acreditou no caráter irredutível da subjetividade. A seu ver, a especificidade da psicanálise vinha exatamente da recusa em admitir que os fatos psíquicos fossem apenas resultados de descargas neuroniais ou distúrbios orgânicos. Mas, por outro lado, o sujeito lacaniano não guarda muitas semelhanças com seus antepassados modernos. Filho de um tempo que não acredita mais na transparência da consciência e na luz natural da razão, o sujeito lacaniano verá sua auto-identidade aparecer irremediavelmente despedaçada. Desprovido de vida interior e de profundidade psicológica, ele será como um personagem de "nouveau roman": vazio, impessoal e incapaz de se apropriar reflexivamente de sua própria história. A esse sujeito restará ser um movimento de fuga que não cessa de não se inscrever, tal como um sintoma que nunca se dissolve. 

Desejo - "Por fim, amamos o desejo, e não o desejado." A frase é de Nietzsche, mas cabe em Lacan. Núcleo do ser do sujeito lacaniano, a característica principal do desejo é não ter objeto naturalmente dado. Ele é manifestação de um vazio, de uma pura negatividade que quer consumir os objetos nomeados pela linguagem, passar por eles, mas que não se satisfaz com nenhum. "O desejo é sempre o desejo de Outra coisa." Até porque o homem é o único animal que não deseja exatamente coisas. Ele deseja desejos. Para Lacan, um objeto só se torna desejável a partir do momento em que ele é objeto de desejo do Outro. Daí a frase: "O desejo do homem é o desejo do Outro". 

Imaginário, simbólico e real - São os três registros nos quais se desenvolve a experiência humana. O imaginário é aquilo que o homem tem em comum com o comportamento animal. Trata-se de um conjunto de imagens ideais que guiam tanto a relação do indivíduo com seu ambiente próprio quanto o desenvolvimento de sua personalidade. O Simbólico é o domínio da organização estrutural da vida social. Como Lacan subordina a sociedade e a cultura à linguagem, a ordem simbólica será um conjunto de significantes que determina os lugares que cada um pode ocupar na vida social.
Já o Real não é, como poderia parecer, a dimensão da experiência imediata. Sua definição é negativa: ele é aquilo que não pode ser representado por um significante nem pode ser formalizado por uma imagem. Essas três dimensões estão sempre presentes em uma relação de articulação conjunta.


Linguagem - Lacan será lembrado para todo o sempre por ter efetuado uma espécie de "guinada linguística" na psicanálise. Como a clínica analítica é totalmente desmedicalizada e opera apenas por meio da reorientação da palavra do sujeito, nada mais lógico do que pensar a cura como um processo de simbolização e verbalização dos sintomas e desejos inconscientes. Daí a importância da linguagem e de sua dimensão própria: a ordem simbólica. Mas a novidade é que Lacan pensa a linguagem como um sistema fechado de significantes puros sem significado e não como um conjunto de signos que representariam positivamente alguma realidade extralinguística. Uma simbolização que opera só por meio de significantes puros não pode produzir significado e nem ampliar o horizonte de compreensão da consciência. O que muda radicalmente a noção de "interpretação" em psicanálise. 

Nome-do-Pai - Para compreender a importância do Nome-do-Pai é necessário lembrar que Lacan transforma o complexo de Édipo na estrutura de passagem da natureza à cultura por meio da introdução do sujeito na ordem simbólica. É no interior da família que o sujeito moderno descobre a existência de uma Lei simbólica baseada em interditos (como o incesto) e lugares fixos de parentesco. O pai, sendo aquele que dá nome ao filho e encarna a autoridade, será o representante da Lei. O Nome-do-Pai é o significante dessa função paterna, como uma chave que abre, ao sujeito, o acesso à estrutura simbólica e que lhe permitirá nomear seu desejo. Daí porque: "A função do pai é unir um desejo à Lei". Não é por outra razão que Lacan vê, no declínio da "imago" paterna, uma fonte privilegiada de neuroses contemporâneas. 

Falo - Termo que indica o valor simbólico e imaginário adquirido pelo órgão sexual masculino nas fantasias. Nesse sentido, ele não é o pênis orgânico. Ele é um significante fundamental cujo valor está ligado às representações de potência e força. O Falo ocupa um lugar privilegiado na teoria lacaniana porque todos os sujeitos (masculinos ou femininos) organizam seu desejo a partir da posse do Falo. O universo lacaniano será claramente falocêntrico e por trás de todos os elementos do simbolismo social há sempre o significante fálico. No fundo, isso demonstra que Lacan pensa a sociedade contemporânea como uma espécie de sociedade totêmica em que tudo gira em torno das múltiplas identificações possíveis com um significante primordial. Só que, no lugar do totem, temos o Falo.


Objeto pequeno a - Esse é o conceito que mais sofreu modificações ao longo da trajetória de Lacan. Mas ele sempre indicará o objeto causa do desejo, e não objeto do desejo, já que o desejo não tem objeto. "Pequeno a" é causa porque funciona como uma espécie de matriz transcendental para a constituição dos objetos nos quais o desejo se alienará. Todos os objetos investidos pelo desejo serão modulações de um único objeto cujo estatuto é o de uma fantasia fundamental. Um bom exemplo é o fetiche -uma matriz para a constituição geral do universo do perverso. Mas dizer que o mundo dos objetos do desejo humano é colonizado por uma fantasia fundamental nos leva longe. É como afirmar que todos os sujeitos estão presos no interior de seus próprios fantasmas. Não é por outra razão que o fim de análise será pensado como a travessia desse mundo fantasmático por meio de uma "crítica ao fetichismo" do objeto pequeno a. 

Pulsão - O termo está no singular porque Lacan unifica o dualismo freudiano entre pulsão de vida e de morte. "Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte." [ " Aqui Lacan não pensa exatamente na "morte física" e no retorno ao inanimado biológico de Freud, mas em uma "morte simbólica" por meio da qual o sujeito se desvincularia de todos os seus papéis sociais, colocando em cheque a ação organizadora da ordem simbólica. É interessante perceber aqui uma inversão de perspectiva fundamental. Em Freud, a pulsão de morte aparecia como obstáculo à eficácia da clínica, já que era o que resistia aos mecanismos de simbolização. Já Lacan troca os sinais e vê a pulsão de morte como a manifestação criadora de um desejo que não pode ser satisfeito pelo utilitarismo que rege nosso universo simbólico, com imperativos de adaptação, felicidade e sucesso. 

Gozo - Há em Lacan uma distinção entre gozo e prazer. O prazer está ligado à repetição de experiências primeiras de satisfação que ocorreram na vida infantil. O gozo está para além do princípio do prazer e sempre indica processos de transgressão de limites que tocam o sofrimento e a morte: "O caminho em direção à morte não é outra coisa que aquilo que chamamos de gozo". Até porque o gozo marcaria o encontro do sujeito com a pulsão de morte. E aqui Lacan pensa em Antígona e Joyce: personagens que destroem seus vínculos com a ordem simbólica (Antígona contra a "pólis", Joyce contra a linguagem) a fim de permanecerem fieis à seus desejos. O problema é pensar uma clínica que tenha Antígona e Joyce como paradigmas.

Mulher - Como todo mundo sabe, "a mulher não existe". Esse enunciado lacaniano só pode ser compreendido à condição de aceitarmos que a diferença sexual não é biologicamente determinada, mas simbolicamente produzida. Um "homem" é o resultado da identificação do sujeito (seja ele masculino ou feminino) com um significante que representa o Falo. O problema é que não há, no universo simbólico falocêntrico lacaniano, um elemento que simbolize o sexo feminino. Por outro lado, Lacan se apóia em Lévi-Strauss para lembrar que as mulheres aparecem na ordem simbólica como objetos de troca, e não como sujeitos agentes. Logo, só há lugar na estrutura para aqueles que se submetem à identificação fálica. O que não impede que a posição feminina possa aparecer "fora" da ordem simbólica. Daí porque Lacan tende a aproximar o feminino de uma posição mística impronunciável e dizer que a mulher é aberta a um gozo mais próximo da verdade inominável do desejo. 


Relação sexual - Assim como a mulher, "a relação sexual não existe". Uma das formas de compreender essa impossibilidade é analisá-la como um processo intersubjetivo. Se a relação sexual fosse possível, ela seria uma relação intersubjetiva entre dois sujeitos encarnados em dois corpos. Mas o problema é que o corpo do outro sempre aparece como tela de projeção das fantasias do sujeito. Na relação sexual, o corpo é sempre um corpo fetichizado. Daí porque Lacan afirmar que o amor é, na sua essência, narcísico. 

Inconsciente - O inconsciente lacaniano não é uma caixa de Pandora de onde sairiam pulsões não-socializadas e conteúdos recalcados. Todos os desejos e pensamentos latentes podem ser reapropriados pela consciência e, por isso, são pré-conscientes. O que Lacan procura é algo que apareça como limite irredutível ao pensamento consciente. Ele o encontrará em duas vertentes. A primeira está na negatividade da teoria das pulsões. Mas a mais famosa ficou cristalizada na fórmula: "O inconsciente é estruturado como uma linguagem". Não se trata de dizer que há uma espécie de linguagem privada inconsciente, como se existisse uma estação de rádio clandestina interferindo na estação de rádio pública. De uma certa forma, o inconsciente é a linguagem, ou seja, ele é o conjunto de regras estruturais da linguagem que moldam a forma do pensamento consciente. Saímos assim de um registro "arqueológico", no qual o inconsciente é o texto escondido sob o texto da consciência, para transformá-lo na estrutura formal do pensamento. 

(VLADIMIR SAFATLE)
Caderno  Mais - Folha de São Paulo,  abril,2001


Um comentário:

Estimulante masculino disse...

Estimulante masculino

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