segunda-feira, março 02, 2020

SINTHOMA: JOYCE E LACAN






A construção metapsicológica do Sinthoma na obra lacaniana a partir da escrita de James Joyce


Joyce Marly Gonçalves Freire
 Mário Eduardo Costa Pereira
 Luiz Carlos Avelino da Silva

INTRODUÇÃO

Antes mesmo que se pudesse teorizar e conferir à escrita o lugar devido na clínica da paranoia nota-se que ela foi o meio de expressão do paranoico mais conhecido na história da psicanálise. A princípio endereçados às autoridades com o intuito de restituir a Schreber a liberdade e seus direitos civis, seus escritos acabaram por ter um efeito terapêutico sobre si mesmo. A escrita lhe permite apelar, literalmente, à lei para ser reconhecido na ordem dos humanos. Sem serem psicanalistas, os membros da corte jurídica, apoiados na letra da lei, ao acolherem sua escrita, dão a devida interpretação a seu pedido e lhe restituem o direito ao convívio social. Mas mesmo isso não o impediu de uma terceira recaída da qual não mais se recuperou (Freud, 1911/1996).

Katz (1991), ao considerar que a escrita de Schreber tenha sido uma tentativa de dar voz a algo inarticulado, entende que a escrita possa ser uma defesa contra a desintegração psíquica de modo a que, mesmo sendo um sintoma, ao se instalar no psíquico, arrime o sujeito e dê sentido à sua existência. A formulação teórica elaborada por Lacan (1955-1956/1985), na década de cinquenta passada, a respeito da função simbólica paterna – cuja foraclusão é condição da psicose – é elaborada no entrelaçamento com os elos imaginário e real e, nessa trama estrutural, o sintoma vem a se constituir. Nessa época, o texto de Schreber foi para Lacan, como para Freud, a nascente da qual jorrava a teoria sobre a psicose. Vinte anos depois, em outro seminário clínico-teórico, Lacan (1975-1976) encontrará na literatura do escritor James Joyce o território no qual irá avançar em direção a inquietantes e instigantes questões a respeito do real na constituição subjetiva, bem como endereçará a clínica para esse território.

James Joyce, com sua incansável escrita, acabou por atacar de maneira implacável as palavras que lhe eram impostas e que, de maneira semelhante às vozes de Schreber, apresentavam-se a ele todas as manhãs. Triturar as palavras e destruí-las, dissolver a linguagem e transformá-la numa nova língua em sua escrita nada usual e ordinária (Lacan, 1975-1976, p. 54- 93) arribou James Joyce do naufrágio no mar profundo da psicose, o que não aconteceu com sua filha. Mas aqui cabe uma questão a respeito do lastro que o susteve e faltou à filha, fazendo-a sucumbir à esquizofrenia. Como Joyce reconhecia, a fagulha de seu talento foi transmitida a ela. No entanto, se ela escrevia suas lettrines [letrinas]1 de forma tão semelhante às dele, por que nela essa fagulha “desencadeou uma fogueira no seu cérebro” (Ellmann, 1989, p, 801) que a levou a um inferno sem volta? Ou ainda, o que fez então que um pudesse mergulhar2 no lago da escrita sem se afogar e outro fosse tragado ao profundo das águas escuras do oceano, como o Presidente Schreber? A que estatuto pode-se atribuir a escrita de James Joyce que não pode ser atribuído às escritas de sua filha e de Schreber?

Para abordarmos essa questão metapsicológica, recorreremos a algumas passagens significativas da obra de Lacan, sobretudo no que diz respeito à sua construção psicanalítica da psicose. Percorreremos as questões da formação do sujeito a partir do enlaçamento do constructo teórico Imaginário, já elaborado a partir da década de 30 passada, com o Simbólico cristalizado em seus seminários na década de 50, e do Real a tomar forma em sua teoria e clínica psicanalíticas a partir dos anos sessenta. Decorrente disso, poderemos abordar as questões que a escrita de James Joyce trouxe para o pensamento clínico de Lacan e seus desdobramentos para a psicanálise.

A equação simbólica paterna em Lacan a partir do espelho do Outro.


Apoiada na concepção do estádio do espelho, a função simbólica toma seu lugar na teoria lacaniana e, fundamentado em pesquisas comparativas sobre o comportamento dos bebês e dos chimpanzés, Lacan (1938) discorre sobre as consequências da prematuridade orgânica do nascimento sobre o psiquismo infantil: um corpo despedaçado e ainda fragmentado que encontra uma unidade fictícia refletida no espelho do outro. A contribuição de Lacan, com a formulação do Estádio do Espelho, está em ultrapassar a simetria dos fantasmas maternos na formação do Édipo e trespassá-la com a “aparição primitiva do significante” (Lacan, 1955-1956/1985, p. 172), a partir da qual o sujeito vem a se estruturar.

Para introduzir o lugar do simbólico na estruturação do psiquismo do sujeito, em seu seminário sobre a psicose Lacan (1955-1956/1985) traz ao debate uma questão espinhosa presente no interior da teoria freudiana, a saber, de um lado, a existência do objeto primitivo na primeira relação mãe-criança e, de outro, a formulação do autoerotismo primordial que excluiria o mundo exterior e, portanto, o objeto. Na concepção lacaniana, esse mundo exterior a que chamamos realidade “é marcado de saída pela aniquilação simbólica” (Lacan, 1955-1956/1985, p. 171). Essa marca simbólica que se imprime na realidade da criança desde o princípio é dada pela alternância da presença e ausência maternas a que se refere Freud em suas concepções sobre o além do princípio do prazer (1920/1996). Antes que a criança possa falar, este jogo do aparece- desaparece é um significante que a insere numa ordem simbólica. Desta forma, o significante presença-ausência, posto desde a origem, é, para Lacan (1955-1956/1985, p. 172), algo que “implica a linguagem”. E essa concepção estrutural do simbólico tal como Lacan a coloca – a realidade imantada pelo simbólico, pela linguagem, pelo Outro – é fundamental para entendermos como ele articula sua teoria das psicoses.

Em sua comunicação para o Congresso Internacional de Psicanálise de 1949 (1998, p. 97), Lacan formula, de maneira muito clara, a tese segundo a qual a “matriz simbólica do eu” encontra seu ponto de ancoragem no espelho imaginário cujo plano é dado pelo outro. A prematuração específica da criança, expressa no estado de insuficiência de seu corpo despedaçado em sua dependência vital de quem dela cuida, a levam, numa dialética temporal, a uma antecipação ortopédica de uma totalidade fictícia, dada pela “identificação com a imago do semelhante” (Lacan, 1949/1998, p. 99-101). Contudo, essa alienação primordial na imagem do outro, matriz do eu, é apenas o início de um rastro espectral de identificações no decorrer do qual o eu passa pelo “drama do ciúme primordial” que o liga a “situações socialmente elaboradas” (Lacan, 1949/1998, p. 101). Lacan também escreve sobre algo importante que terá seus desdobramentos na clínica da psicose, haja vista o lugar que o desmoronamento do mundo externo ocupa nesta psicopatologia: a constituição da realidade, num processo normal, dá-se no tempo do Édipo, e as identificações com a figura paterna vêm roubar a cena daquela primitiva identificação narcísica que forma o eu ideal.

Em “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” (1957/1998), Lacan lança mão da álgebra e constrói uma topologia da estruturação psíquica do sujeito humano. Em um primeiro momento, elabora a noção de um eu imaginário, aí denominado “objeto a’” – cujo paradigma especular fora posto nas décadas de 30 e 40 –, plasmado a uma identidade fálica (de ser aquilo que completa a mãe). Essa matriz do eu reflete a imagem do semelhante ou objeto a, o qual é correlato ao objeto originário e único que Freud identifica como a mãe originária. Nesse momento, enraíza-se o primeiro esboço de um sujeito, de um eu (moi), reflexo da imagem especular originária – a criança, na linguagem lacaniana, é o falo da mãe. Mas ainda que seja especular esta relação dual é permeada pelo Outro, pela linguagem significante – aporte do tesouro da cultura que antecede o sujeito. Num outro tempo, essa topologia especular será atravessada pela vivência edípica e, aí, todas essas formas especulares serão realocadas e ganharão novas configurações. O pai, representado simbolicamente pelo Nome-do-Pai (1957/1998, p. 559), reinará nesse terreno até então imaginário e coroado pela criança como falo da mãe. Esse reinado será regido pelo pai com o cetro da divisão e subtração: a lei paterna é o coeficiente da divisão do sujeito, e seu resto – o objeto a originário, suporte da primeira imagem especular – fará sempre, na construção metapsicológica de Lacan, suas tentativas de ser inscrito e de nunca se inscrever. É uma aritmética elementar: o sujeito é dividido pela Lei e vem a resultar num sujeito barrado, cindido; desta divisão sobra um resto (o objeto a) que, como tal, é subtraído do Sujeito pela própria lei paterna.

É interessante notar que nessa topologia – nomeada como Esquema R (1957/1998: 559) – a realidade resulta tanto dos desdobramentos da imagem do semelhante (i) em figuras do Outro primordial (Outro Materno – M) como da formação de uma Identificação Ideal – correlato ao Ideal do Eu freudiano – que se desdobra daquela primeira imagem do semelhante e de seu reflexo – a primeira forma de eu (moi) –, cuja sustentação é dada pelo Nome-do-Pai. Outro fato a salientar é que Lacan encontra nesse jogo identificatório do espelho as origens de um supereu, correlato ao recalque: “Para definir no plano psicológico essa gênese da repressão, devemos reconhecer na fantasia de castração o jogo imaginário que a condiciona, e na mãe, o objeto que a determina” (1938/2003, p. 59-60). Lacan antecipa para momentos muito precoces, expressos na disciplina do desmame e do controle de esfíncteres, o aparecimento do superego – de uma forma fundamentalmente narcísica que só será ultrapassada no complexo de Édipo.

É em torno da questão de uma falha na constituição da realidade que será concebida a questão preliminar lacaniana para a estruturação de uma psicose. Sabe-se que em Freud a psicose se organiza numa falha da relação entre o eu e o mundo externo. Para empregar um termo que é próprio de Lacan, a realidade é, para o psicótico, provida de buraco (1955-1956/1985, p. 57), de uma falha estrutural que não é outra senão a foraclusão – Verwerfung – de algo que não pôde ser afirmado ao sujeito, portanto que não foi simbolizado e fará sua apresentação no real (Lacan, 1955-1956/1985, p. 98): recusa ou foraclusão da lei paterna, da metáfora paterna.

É, então, no eixo da Verwerfung freudiana que Lacan irá orientar toda a problemática da psicose: a recusa – Verwerfung – remonta à questão da castração e evoca a recusa da diferença entre os sexos, recusa da diferença entre o eu e o isso, recusa da diferença entre interno e externo, em suma, recusa que aponta sempre para a exclusão de qualquer tipo de diferença. A partir disso, Lacan irá dar uma especificidade à Verwerfungforclusion – na medida em que a fará operar nos termos do Real, do Simbólico e do Imaginário. A recusa deve ser compreendida como uma falha no recalque originário – o buraco na realidade – que na obra lacaniana expressa uma falha na inscrição da metáfora paterna – algo que escapou à simbolização. O mundo fantasmático, os delírios e as alucinações criados pelo psicótico preenchem o buraco da realidade e fazem sua presença no real (Lacan, 1955-1956/1985, p. 98). Na contrapartida, a inscrição simbólica do pai, num processo normal, insere-se numa afirmação (Bejahung) primitiva que dará ao sujeito um destino diverso daquele que cai sob o golpe da foraclusão (Verwerfung).

Lacan atribuirá ao estatuto simbólico o conceito “nome-do-pai”, essa Lei Simbólica cuja afirmação fora do prazo legal criará um buraco na realidade, expresso em sua metapsicologia da psicose como forclusion e, como na etimologia judiciária, torna-se “impossibilitada de ser reclamada” (Burtin-Vinholes, 1953). Se a linguagem – o Outro simbólico, a função paterna – é algo que está presente desde sempre, cabendo a partir daí sua afirmação ou rejeição –, é como significante primordial que Lacan a situa na estruturação do sujeito. É neste sentido que a função paterna – esse significante primordial – “é fundadora do sujeito psíquico” (Dör, 1992, p. 96) e de sua realidade, e sem ela restaria o naufrágio na loucura.

Como vimos, não é o pai enquanto entidade real que torna possível a subjetivação da criança, pois sua ausência real “é mais do que compatível com a presença do significante” (Lacan, 1957/1998, p. 53). É enquanto função que o pai propiciará – na medida em que também esteja inscrita na mãe – à criança elevar-se da fragmentação corporal a uma unidade subjetiva (imaginária). É enquanto equação simbólica que essa função deve ser compreendida, e, na exata medida em que, enquanto lei organizadora do psíquico, a função paterna abre as portas à experiência edípica e também retira a criança da dualidade materna.

A ressignificação da equação simbólica: o quarto elo.

Nos seminários da década de setenta do século passado, um autor do romance moderno entra em cena no pensamento de Lacan: James Joyce. Ao voltar seu olhar para a vida e a obra desse escritor, Lacan revisita sua topologia dos nós e acrescenta a ela um quarto elemento, cuja estrutura é a de um nó borromeano, em cujo laço nenhum elo pode faltar. Com o auxílio de rodinhas de barbante, demonstra para seus ouvintes a maneira como, a partir da primeira rodinha, as outras, dobradas na forma de uma orelha, se enlaçam em sequência e a última delas se fecha na primeira, mantendo juntas todas as outras (Lacan, 1975-1976, p. 10). Contudo, basta que qualquer um dos elos seja seccionado para que todos os outros se liberem, desfazendo toda a estrutura. A representação gráfica do nó borromeano utilizada por Lacan deixa seus efeitos em sua concepção psicopatológica: se, na neurose, ter um sintoma é condição para manter juntos os três elos (RSI), na estrutura psicótica “há uma tentativa de ser o Sinthoma. Se isto funciona, a gente não delira; se não se consegue ser o sinthoma, então é o delírio” (Julien, 1999, p. 49).

A topologia borromeana de Lacan deriva de suas reflexões sobre a vida e a obra de James Joyce, potencialmente psicótico, no entanto sem nunca ter-se fraturado psiquicamente. A escrita de Joyce é o artifício-sinthoma por meio do qual sua verdade (Lacan, 1975-1976, p. 12) é articulada: ser filho de um pai bêbado e decadente, um pai que foi negligente em quase tudo e que se demite de sua função paterna, da qual decorre uma Verwerfung de fato (Lacan, 1975-1976, p. 85) leva Joyce a encontrar na arte sua sustentação fálica: “é nisto que sua arte é a verdadeira garantia de seu falo” (Lacan, 1975-1976, p. 6). Na busca infatigável do que lhe falta, Joyce encontra na escrita sua versão para o pai (perversion / père- version), esse santo homem/sinthoma (saint-homme – sinthome) que faz dele, Joyce, o sinthoma (Lacan, 1975-1976, p. 6; 54).

Para Lacan, nessa decomposição da língua em que resulta a obra joyceana a escrita ocupa um lugar de destaque. Ao criar sua linguagem escrita – de forma tão original ¬que escapa à compreensão e ao sentido – Joyce faz dela uma agulha com a qual espeta e captura o Real (Lacan, 1975-1976, p. 22) e, nesse movimento, acaba por criar a si próprio. Isso levou Lacan a atribuir à criação do nome próprio de Joyce, em torno do qual tudo gravita, o estatuto de ser seu sinthoma. No enredo de seu próprio nome, Joyce encontra uma “compensação da carência paterna” (Lacan, 1975-1976, p. 91). Não por acaso, ao colocar em verso de maneira tão lapidar a paternidade, tema recorrente em sua obra e em sua vida, Joyce perpetua, na mesma sentença, a presença de seu pai – homem alegre (joy) e fanfarrão, cepa de James sem nunca o ter sido de fato – e de si mesmo como o autor de seus dias: “Paternidade, teu nome é alegria”3.

Joyce, o sinthoma, ao enlaçar-se com o Simbólico de modo tão peculiar – quebrando as palavras, reduzindo a poeira as referências de sentido que sua língua materna lhe deu – cria um falso furo4 no limite do qual pedaços do Real (Lacan, 1975-1976, p. 112) são apreendidos com ardor (l’ardeur) em sua arte de dizer (l’art-dire) (Lacan, 1975-1976, p. 108) com a escrita.

Talvez, não haja nada mais escorregadio na teoria lacaniana que sua concepção do Real. Por certo que se, de um lado, esse caráter escorregadio expressa aquilo que é difícil em Lacan, por outro, expressa a própria qualidade do Real: a de ser inapreensível e indizível, posto que ele “é a pulsão de morte” (Lacan, 1975-1976, p. 114) e, como tal, impensável. A morte não se liga a nada e exclui dela qualquer referência de sentido. Ao triturar as palavras, a linguagem escrita de Joyce morde pedaços do Real e nela o não-sentido é levado ao extremo: agarra, com sua escrita, o não-sentido do Real.

A escrita de Joyce escancara, através das metáforas empregadas, a inquietante relação de si mesmo com sua própria imagem. Lacan evoca uma passagem do Retrato do artista quando jovem na qual o personagem Stephen – desdobramento do próprio autor – é esfolado por seus colegas de escola e na volta para casa ele se interroga por que não os reprovara e nem sentira ódio como qualquer outro que amasse seu próprio corpo sentiria. A resposta metafórica do duplo de Joyce – “o desprendimento de algo como uma casca de fruta” (Lacan, 1975-1976, p. 133), a pele que se desgruda do corpo – aponta para uma dificultosa relação de si com seu próprio corpo e com a sua imagem da qual sempre procurou se esquivar. Não por acaso, para Lacan em Joyce é o elo imaginário que, originária e estruturalmente, desprende-se do simbólico desfazendo toda a cadeia e, como consequência, expurga daí qualquer referência de sentido. Na lógica da teoria lacaniana sobre a psicose isso poderia ter levado Joyce a ser um psicótico, talvez esquizofrênico, como Lúcia, sua filha, o que, de fato, no caso dele, não aconteceu.

Por quê? Porque a escrita de Joyce confecciona uma re-amarração entre o simbólico e o real, levando-a ao ponto extremo de uma linguagem destituída do sentido e da imagem. Lacan considera que a ausência do significado na obra de Joyce – fruto do rompimento entre o simbólico e o imaginário – põe a psicanálise aquém de qualquer possibilidade de analisar um homem como este. Como sinthoma que é, Joyce é, para Lacan (1975-1976, p. 114), “inanalisável”, tal qual o umbigo do sonho o é para Freud (1900/1996).

Assim, Lacan (1975-1976) irá tomar a escrita de Joyce como um paradigma para a análise, pois se a análise é uma resposta ao enigma do paciente, ela implica em que seja feita

uma sutura entre o simbólico e o imaginário. [...] É preciso que em alguma parte façamos um nó, o nó do Imaginário e do saber inconsciente, que aqui em alguma parte façamos uma costura, tudo isso para obter um sentido, o que é objeto da resposta do analista ao exposto pelo analisante ao longo de seu sintoma. Quando fazemos essa costura, ao mesmo tempo fazemos outra, esta aqui, entre precisamente o que é sintoma e o Real: por um lado ensinamos a costurar, a fazer costura entre o sintoma e o Real parasita do gozo, o que é característico de nossa operação. Tornar esse gozo (jouissance) possível é o mesmo que escreverei: é o mesmo que ouvir-sentido (J’ouis-sens). É de sutura e costura que se trata na análise. Porém é necessário dizer que as instâncias, devemos considerá-las como separadas realmente. Imaginário, Simbólico e Real não se confundem. Encontrar um sentido implica em saber qual é o nó e costurá-lo bem graças a um artifício (Lacan, 1975-1976, p. 52).

A obra freudiana a respeito da psicose aponta que há na fala do psicótico o predomínio das representações de palavras, as quais, em razão de seu desligamento das representações da imagem da coisa, são elas mesmas tomadas como coisas, completamente destituídas de sentido (Freud, 1915/1996). Isto pode ser ilustrado com uma passagem em que alguém pergunta a Joyce sobre um quadro da cidade de Cork. Joyce lhe responde dizendo que era Cork e a pessoa lhe diz que sim, que sabia que era uma praça de Cork, mas queria saber qual material a emoldurava; implacável, Joyce diz: Cork (cortiça). Esse enquadramento homonímico com a imagem está presente no emolduramento empregado em cada capítulo de Ulisses, um emolduramento, mais que de uma imagem, de seu próprio nome: um dia, conversando com Tuohy, seu amigo pintor, Joyce o interroga: “Você quer pintar a mim ou a meu nome? Tenho uma profundíssima objeção à minha própria imagem” (Elmann, 1989, p. 581).


Ellman (1989), conceituado historiador de James Joyce, assinala que era muito frequente seu abandono em crises de depressão e angústia como as vividas na época de sua passagem como funcionário de um banco em Roma: Joyce escreve a um interlocutor que estava “na hora de eu decidir se vou me tornar um escritor ou um paciente Cousins [...] continuar como estou no momento significaria minha morte intelectual” (Elmann, 1989, p. 304). Não é difícil imaginar o alcance que a morte intelectual teria para um homem que tentava edificar-se a si mesmo com sua arte: ela passaria uma rasteira em sua única possibilidade de se subjetivar e de construir para si mesmo um nome, ou ainda, de emoldurar Joyce, o nome, no quadro de sua vida. Sua escrita é a moldura dentro da qual se enquadra não a sua imagem, mas o seu nome.

A escrita de Joyce, tão essencial a seu ego (Lacan, 1975-1976, p. 131), funcionava como um escudo contra as “palavras impostas que o atacavam como balas de metralhadora(Julien, 1999, p. 51). Joyce foi incansável em fazer de sua escrita um reconhecimento de si próprio e, de acordo com Lacan, fazer-se um nome pela via do reconhecimento público. Através de sua arte louca e de sua luta extrema para conseguir um editor (Lacan, 1975- 1976, p. 50), tem seu nome reconhecido e garante um lugar no abrigo que o protege da tormenta que poderia arrastá-lo às águas de uma loucura sem volta, como a de sua filha. A cada dia renovada, a luta pelo reconhecimento público de seu nome foi o lastro que manteve sua embarcação em equilíbrio. O mesmo lastro ausente na embarcação de sua filha.

Para concluir: O inanalisável de Joyce - seu Sinthoma - como paradigma de uma análise possível para a psicose.


Adiante de seu tempo, Joyce descarna da linguagem qualquer substância que pudesse fazer o significado vibrar. Mas, como bem observa Colette Soler (1998), Joyce não se enclausurou no ininteligível. Os inúmeros enigmas esparramados por toda sua obra, endereçados aos comentadores e críticos, podem ser considerados como uma realização bem-sucedida de Joyce por impor aos leitores o valor significativo de seu trabalho literário. Par em par com o ato de escrever e quebrar as palavras, o desejo de Joyce de ser um artista que ocuparia todo mundo por alguns séculos é, nas palavras de Lacan, uma compensação ao pai que jamais ocupou de fato este lugar (Lacan, 1975-1976).

Assim, ainda que sua escrita porte a marca de uma fala psicótica e embora muitas vezes tenha sentido que o interesse por tudo que o comovia e o excitava o abandonara, Joyce nunca teve um surto psicótico. Esse fato tão intrigante levou Lacan, de forma tão apaixonante, a dedicar um seminário sobre a obra desse escritor, que está de tal modo nela imbricado, a ponto de ela ser o sinthoma no qual Joyce se esteia. A partir daí Lacan pôde abstrair consequências para o fim de toda análise. Se, de um lado, a análise se funda numa resposta do analista ao enigma do sintoma do paciente – em guarnecer o imaginário e o saber inconsciente do paciente com a linha do simbólico e pelos movimentos de transferência nos quais o sentido se amarra e a própria análise acaba por ser o novo sintoma para o paciente –, por outro, o fim da análise clama por dissolver toda a vestimenta de sentido na qual o sintoma da análise se ancora.

É neste ponto que o sinthoma de Joyce ganha o estatuto de paradigma para o final de uma análise. Descarnada de sentido, a escrita de Joyce vai direto ao osso do real e é também por isso que seu sinthoma difere do sintoma no qual o inconsciente resplandece. O sinthoma de Joyce, ao contrário, passa ao largo do inconsciente e é, nas palavras de Lacan, desabonado do último. O problema do final da análise, como assinala Colette Soler (1998), articula-se, em Lacan, ao fazer do sinthoma de Joyce um paradigma para o primeiro: o de ter lugar o gozo (jouissance) que arreda para longe, ou mesmo dissolve, o gozo-do-sentido (jouis-sens) (Lacan, 1975-1976, p. 52).

Longe de ser apenas um jogo de palavras entre jouissance e jouis-sens, o que se vislumbra no gozo sem o sentido, evocado da escrita de Joyce, é a possibilidade de que, no final da análise, o sujeito possa, a partir de si mesmo, tecer seu próprio fio para se enlaçar ao social, paradigmático ao esforço de Joyce em ver sua obra publicada. Isso dá o toque tão paradoxal ao sinthoma de Joyce: de um lado, solitário, passa horas a fio a fruir com aquilo que fazia com as palavras e nesse ato atinge o “gozo da letra” (Soler, 1998, p. 26), de outro lado, seu sinthoma o intima à publicação desse gozo privado, pois é através dela que “ele se faz um nome” (Soler, 1998, p. 26).

É notável a distinção feita por Lacan a respeito daquilo que, na verdade, é a suplência ao pai de Joyce, o executor de sua Verwerfung de fato. Soler (1998), em suas reflexões sobre a questão da análise e da suplência ao pai no sinthoma, coloca a escrita de James Joyce próxima do sintoma psicótico e não a reconhece, em si mesma, como uma suplência. Para essa autora, a suplência, em James Joyce, estaria restrita à publicação. Esta, agregada à escrita como sintoma, constituiria em James Joyce o sinthoma (Soler, 1998, p. 102). Contudo, não se pode desprezar que a impulsão do sujeito em imprimir algo em um papel, em sulcar um suporte – seja ele de que natureza for – é sua forma particular de se enraizar e de se inscrever como sujeito – ainda que, talvez, psicótico. Se é certo que a publicação foi uma suplência à ausência de fato do pai de James Joyce, não se pode negligenciar que ele, por assim dizer, respirava através da escrita, pois ela foi seu sopro de vida. Para além de uma escrita que revoluciona o sujeito na literatura contemporânea, o efeito criativo de sua escrita e de sua publicação permite a James Joyce inventar-se a si mesmo, tornando-se suplência para uma foraclusão de fato. As reflexões de Lacan sobre o literato abrem caminhos para o tratamento possível da psicose, a despeito da ausência da função paterna.

Referências Bibliográficas. 

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autobiográfico de um caso de paranóia. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. IV. Rio de Janeiro: Imago.
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Shakespeare, W. (1969). Hamlet. Obra completa, v. I. Rio de Janeiro: Aguilar.


NOTAS:
1. Letrina: “Letra monumental, em geral ornamentada com floreios, arabescos, etc. e que, presente já nos manuscritos medievais, inicia capítulo ou parágrafo de livro impresso”; Etim. Fran. lettrine (1625): “letra pequena colocada embaixo de uma palavra para indicar uma remissão”. Houaiss, A.; Villar, M. de S.; Franco, F. M. M. Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, 1a. ed.

2 James Joyce, a despeito da crítica desfavorável de C. Jung sobre Ulisses e da mágoa que isso lhe despertou, em seu desespero acata a sugestão de alguns amigos e procura a ajuda de Jung, vigésimo terapeuta de sua filha. A princípio Lúcia tem uma ligeira melhora, mas depois sucumbe à esquizofrenia. De acordo com Ellmann, mais tarde Jung teria comentado que “eram como duas pessoas descendo ao fundo de um rio, uma caindo, outra mergulhando”. Ellmann, R. James Joyce, p. 837.

3 Joyce, J. Epílogo aos “Espectros” de Ibsen. “Paternity, thy name is joy”: o nome
de seu pai é alegria-joy. Em Ellmann, R. James Joyce, p. 825-826. Esta sentença faz eco com os versos shakespearianos ditos por Hamlet: Fragilidade, teu nome é mulher (W. Shakespeare. Hamlet).

4 “Es en tanto que el sinthoma hace un falso agujero con lo Simbólico que hay una práxis cualquiera, es decir algo que resulta del decir, de lo que llamaría también, en este caso, el art-decir (l’art-dire) incluso para deslizar hacia el ardor (l’ardeur)”. Lacan, J. Seminário 23. El Sinthoma. (1975-1976). Versión crítica, para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires, p. 107-108. A concepção desse falso furo que é o real pode ser verificada: primeiro se faz uma rodinha de cordão unindo as pontas com nó de marinheiro; em seguida, pega-se outro pedaço de cordão, passa-se uma ponta numa extremidade da rodinha anterior, puxando-a até a outra extremidade, passe-a para fora e a una à outra ponta: o buraco é falso, pois, “não é nem o buraco de um nem o buraco de outro”. Nesse falso buraco apreende-se um pedaço do real.


IN: Tempo psicanalítico - vol.46 no.2 Rio de Janeiro dez. 2014

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