quinta-feira, agosto 06, 2020

CLARICE LISPECTOR: um ensaio de A Hora da Estrela





A HORA DA ESTRELA




A Hora da Estrela é um dos treze títulos do livro publicado em 1977 por 

Clarice Lispector, ano de sua morte. Entre as densas 87 páginas, suas 

palavras me desconcertavam. Afastei-me de início e meditei no que lia:

“O registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante esse espalhado por todos os países. Aliás foi ele quem patrocinou o último terremoto em Guatemala. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de unhas, de sabão Aristolino e plástico mastigado. Tudo isso não impede que todos o amem com servilidade e subserviência. Também porque - e vou dizer agora uma coisa difícil que só eu entendo - porque essa bebida que tem coca é hoje. Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente.” (p. 23)

A página me capturou. Sentia isso me absorvendo como refrigerante. O prazer das palavras causavam efeito corrosivo, como o som das bolhas de CO2. Desejei veementemente uma coca gelada para me dar conta do que lia.

A narrativa da Hora da Estrela pode ser identificada em três planos. Em primeiro lugar, Rodrigo SM o narrador, voz masculina a partir da qual Clarice traz luz às palavras, demonstra-se um sujeito inquieto e disposto aos seus últimos recursos pra dar forma ao que quer contar. Um sabor amargura suas palavras, ferida que o leitor pode tocar pela corrosão das passagens, tais como aquela em que me vi absorto outrora. Talvez uma mágoa curtida vagarosamente em compota que passou do tempo, enclausurada. Rodrigo SM desaba entre as páginas, como quem não aguenta mais e precisa falar. Precisa falar da nordestina Macabéa.

Prometendo-se esquivar do sentimentalismo, ele conta da sua personagem. Sua voz reflexiva, por um lado, agita-se entre as páginas desenhando, por outro, Macabéa envolta em silêncio. Um dos títulos da obra, sugestivamente é Ela não sabe gritar.

A partir de então abre-se a segunda camada narrativa, ao som de um violinista triste, do rufar de tambores e explosões. Macabéa é criada, porque ela própria é uma sujeita sem história. Não fosse Rodrigo passaríamos sem registro de sua existência. Vinda de Alagoas para o Rio de Janeiro, ocupava função que achava importante. Era datilógrafa, gostava da sonoridade. Encantou-se por Olímpico de Jesus, seu namorado, e considerava metalúrgico e datilógrafa um belo casal.  Chovia sempre que se encontravam e Olímpico

dizia-lhe: "você só sabe é chover". Apesar de seus deboches (não via ele graça na mulher), ela não dava importância. Decerto só sabia chover. Sem demonstrar anseios, Macabéa vivia com pequenos prazeres, como ouvir a rádio relógio. Ficava assim, à mercê do que desejavam os outros, fossem o namorado, Glória a colega de trabalho, a tia que a criara ou o próprio Rodrigo, que parece ter nas palavras as rédeas da personagem.


Tola? Talvez, um adjetivo pra qualifica-la. Apesar de não questionar a ordem das coisas, em raros momentos Macabéa esboçava questões que ficavam sem resposta. Que queria dizer o nome de Olímpico? Ele não sabia, mas irritou-se quando fora interrogado por ela (porque ele mesmo não tinha resposta). É possível lembrar, no contraste entre os dois enamorados, a ignorância socrática. Macabéa, apesar de tudo, estava sensível ao erro, a questões que ficariam para sempre em aberto. Olímpico, um oposto. Não admitia faltarem-lhe as respostas. Considerava-se muito sabido.

“-...Que quer dizer cultura?

- Cultura é cultura, continuou ele emburrado. Você também vive me encostando na parede.

-É que muita coisa eu não entendo bem. O que quer dizer ‘renda per capita’?

-Ora, é fácil, é coisa de médico.” (p. 50)


“O que irrita na ignorância é precisamente isto: há pessoas que não são distintas nem sensatas, e declaram-se satisfeitas. Ora, quem ignora que lhe falta algo, não sente necessidade de nada [...] Filosofa quem se encontra entre esses dois extremos, Eros é um deles.” (Platão, O Banquete, 204a - 204c).


Eis que Rodrigo SM retorna, justamente em posição intermediária entre o saber e o não saber. Que tanto o angustiava? E por que canalizava em Macabéa seus sentimentos? De sua impertinência floresce uma inflexão narrativa, em que o texto fala de si. O processo da escrita é tematizado em meio a sua dor e compõe, em uma terceira camada, a metalinguagem. O que Rodrigo sentia falando da nordestina estava além dele, o transpassava. Era preciso falar.

"Estou absolutamente cansado de literatura. Se ainda escrevo é porque nada mais tenho a fazer no mundo enquanto espero a morte." (p. 70)


Em minha leitura, perguntava-me se estaria ali a própria Clarice se colocando na história. Da dedicatória no início do livro; do nome da personagem rogado em promessa de seu nascimento a Nossa Senhora da Boa Morte, Macabéa; pela voz de um narrador corroído numa dor íntima.

Após o estalar do lacre de coca-cola, dei-me conta: aquele em minhas mãos era um livro de morte, da qual talvez Clarice suspeitasse, entre as páginas, em uma última novela. Entre a inquietante voz de Rodrigo e o conformismo cego de Macabéa, triunfa, no final, um destino estrelado.





Por: Mateus Cordova de Souza
Futuro psicólogo, aventureiro das palavras, da fotografia e da cozinha.

contato:
mateuscordovadesouza@gmail.com
Instagram: @_delakuti

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