Depressões - no original alemão Niederungen- é o livro de estreia de Herta Müller. Romena radicada na Alemanha, ganhadora do prêmio Nobel de Literatura em 2009, Herta representa uma voz importante entre os escritores contemporâneos de língua alemã.
Publicado em 1982, Depressões é uma coletânea de 15 contos, ou capítulos, narrados por uma garotinha. Através do olhar indiscreto e sensível da criança, o leitor acompanha os rigores da vida, em uma pequena aldeia rural da Romênia.
Caracterizado dentro do gênero dos romances autobiográficos, onde o autor autoriza-se a lidar com o processo de ficcionalização da própria vida, o que importa nesse modelo narrativo, não é a verdade dos fatos. “Não se trata de recuperar as lembranças autênticas, mas de construir formas possíveis do processo de rememoração”.
Em uma entrevista de 1989, a autora conta como começou a escrever o livro, “revelando a centralidade de seu autobiografismo e a escrita como resposta ou reação à sua experiência vivida”: [i]
Era uma escrita contra essa identidade, também contra esse vilarejo do banatosuábio, contra essa infância sem fala que oprimia tudo. Eu sempre só anotei experiências, não mais do que isso, na verdade. Eu não havia me proposto a escrever algo sobre essa região, sobre essa população, nunca tive a impressão de ter algo como uma responsabilidade em relação a isso ou quedeveria fazer algo em nome de algum grupo. Era a experiência que eu havia tido, era a minha história de vida. Eu reagi às minhas experiências e não erigi qualquer superestrutura para tal, não fiz qualquer construção para isso, e essa experiência também estou tendo aqui. Não me resta nada além de ter experiências diárias, ver coisas diárias e também aqui eu procuro reagir a essas coisas. (MÜLLER, 1989)
Lembrando-nos que o autor não é um sujeito isolado no mundo que pode reivindicar o que produz como sendo algo exclusivamente seu. Como qualquer sujeito, ele se constitui por uma série de desejos de sucessivas gerações, que se estruturam dentro de um momento cultural preciso. Fazendo uso, no seu processo de criação, de uma língua carregada de sentidos já instituídos, que o governa mais do ele pensa.
Em Depressões, a experiência diária esmiuçada nos pequenos detalhes - o olhar repressor da mãe, puxões e safanões da avó, idiossincrasias do avô, as traições do pai -, são elementos que constroem a narrativa. O olhar da criança capta sutilezas tal como uma câmara cinematográfica, levando o leitor a ver detalhes que às vezes o encanta, noutras o assombra.
Nesse movimento, o leitor torna-se cumplice dos afetos da narradora que também espanta-se com comportamentos que não entente. Sofre com a violência repressora dos adultos e aflige-se com a sutileza dos movimentos eróticos que capta durante à noite.
A infância vivenciada em uma comunidade rural é penosa, autoritária e desconfortável se comparada aos padrões médios das comunidades de classe média urbana. Durante a leitura, somos atravessados por uma espécie de presente absoluto com o qual já perdemos contato há muito tempo. A narradora limita-se a descrever situações estanques, sugerindo a impossibilidade de reatar a memória daquilo que foi recalcado. Como já mostramos acima, não se trata de recuperar e registrar lembranças verdadeiras, mas de refletir sobre a relação entre um saber não sabido ou um pensamento não pensado, e as formas possíveis do processo de rememoração no fazer literário.
Reconhecida pelo domínio com as palavras, Herta nos oferece um texto que é quase um poema. Quem sabe, para desconstruir os sentidos coagulados na língua e expor as convenções e perversões produzidas num ambiente de estranhamento cultural.
Amanhã é domingo e, na hora do almoço, tenho um coração e uma asa no prato.
Lindo domingo, bom apetite.
...
À noite o sonho entra na cama pela porta do quintal.
...
Maria Holthausen
[i]Rosvitha Friesen Blume, Herta Müller e o ensaísmo autobiográfico na
literatura contemporânea em língua alemã, Pandaemonium, São Paulo, v. 16, n. 21, Jun/2013,
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