Por: Bernardo Carvalho
No
recente “The Angel Esmeralda”, que reúne os contos de Don DeLillo publicados
entre 1979 e 2011, há uma história, de 2002, inspirada na série de quinze
quadros em preto e branco que Gerhard Richter pintou sobre o chamado “Outono
Alemão” — a escalada de atos terroristas que desencadeou, em 1977, uma crise
sem precedentes na Alemanha do pós-guerra. A série intitula-se “18 de Outubro
de 1977″ e se refere à data na qual, no ápice da crise, três membros da Facção
do Exército Vermelho (RAF), grupo guerrilheiro de esquerda popularizado como
Baader-Meinhof, foram encontrados mortos em suas celas, na prisão de segurança
máxima de Stammheim, em Stuttgart, onde cumpriam pena.
O
conto de DeLillo chama-se “Baader-Meinhof” e trata do encontro casual entre um
homem e uma mulher na galeria onde a série de pinturas está exposta, em Nova
York. A mulher nota a presença do homem atrás dela, enquanto admira o retrato
de Ulrike Meinhof morta, em 1976, com a marca da corda que a enforcou no
pescoço. A princípio ingênua, despreocupada e inconsequente, obnubilada pelo
desejo e pela solidão, ela acaba levando o desconhecido para casa. E só vai se
dar conta do risco, que desde o início assombrava o leitor com a expectativa de
estereótipos e clichês, quando o encontro já estiver a ponto de se desvirtuar
em cena de terror.
Os
quinze quadros que compõem o “18 de Outubro de 1977″, de Richter, estão
expostos até maio numa sala da Alte Nationalgalerie, como complemento da
retrospectiva (sensacional) do pintor na Neue Nationalgalerie. “Gosto de tudo o
que não tem estilo: dicionários, fotografias, da natureza, de mim mesmo e de
minhas pinturas. (Porque estilo é violência, e eu não sou violento.)”, Richter
declarou no início da carreira, em 1964. Desde então, fez outras tantas
declarações provocativas e contraditórias, que podem ser lidas como denegações,
no sentido psicanalítico do termo.
Basta
ver a retrospectiva (extremamente bem montada) da sua obra para entender que a
variedade (a suposta falta de estilo) obedece a um ciclo de questões,
inquietações e temas recorrentes, com uma assinatura muito reconhecível. A
rigor, não existe ação humana que não seja violenta (e não é por acaso que o
pobre monge e o eremita vão se isolar na montanha, fazendo o elogio da inação).
Como escreveu Sebald, em “Os Anéis de Saturno”, a presença do homem no planeta
se inaugura com a queima de combustíveis fósseis. Não há como sobreviver sem o
fogo. E o fogo, que mantém a vida, será também a sua destruição. É dessa
consciência trágica que nasce a arte.
Esses
dois paradoxos (o deliberado despojamento de estilo, transformado
necessariamente em estilo, e a humanidade condenada à violência, por mais que
lute contra esse estigma) dizem muito sobre a escrita e os livros de Don
DeLillo. Trata-se de um autor que sempre se interessou pelo terrorismo e que
sofreu nos últimos anos com a caretice de um tempo obcecado pelos bons
sentimentos transmitidos por belas palavras. Está aí algo que uma linguagem
“sem estilo” não pode fazer. E, talvez, por isso mesmo, ela seja, como a obra
de Gerhard Richter, tão adequada para tratar do que há de mais contraditório,
aterrorizante e trágico por trás das melhores intenções.
Por
falar nisso, uma amiga que dá aulas de português para adultos estrangeiros numa
escola pública aqui perto de casa andou adotando passagens deste diário para
discussão com os alunos em sala de aula. E me preveniu outro dia do risco de
passar perto da escola e ser apedrejado. Como estou determinado a sobreviver e
já tenho até passagem de volta para o Brasil, comprada pra daqui a dois meses,
quando termina minha temporada berlinense, achei que era uma boa ocasião para
interromper este diário, quase um ano depois do seu início. E antes que seja
tarde. Um abraço.
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O último texto publicado por Bernardo Carvalho na sua coluna Diário de Berlim, do BLOG DO I M S (Instituto Moreira Sales). Com uma percepção delicada e sincera, Bernardo narrou em vários textos seu mergulho de um ano na cultura alemã. Um ótimo diário de viagem. Vale a pena passar no Blog e ler os outros. (Maria Holthausen)
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