Confira a coluna do jornalista Hélio
Schwartsman da Folha de São Paulo intitulada "A Cura Gay"
Texto
publicado no jornal Folha de São Paulo, em 01/03/2012, pelo jornalista Hélio
Schwartsman.
A
CURA GAY
O
clima é de guerra. De um lado, estão os gays e os Conselhos de Psicologia, em
suas vertentes federal e regionais, de outro, os cristãos, mais especificamente
o povo evangélico. O tema do embate é (aqui não há como evitar as aspas)
"a cura da homossexualidade".
O
certame teve início nos anos 90, quando militantes do movimento gay, em
particular a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (ABGLT), começaram a denunciar aos conselhos os autointitulados
psicólogos cristãos, que prometiam curar homossexuais.
A
ABGLT pedia punições a esses profissionais com base no Código de Ética do
Psicólogo, que, em seu artigo 2º, b, proíbe: "induzir a convicções
políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou
a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções
profissionais".
Em
1999, depois de alguns casos rumorosos na mídia, o Conselho Federal (CFP)
baixou a resolução nº 001/99, que não deixa nenhuma margem a dúvida:
"Art.
2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão
sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações
contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.
Art.
3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de
comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente
a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo
único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham
tratamento e cura das homossexualidades.
Art.
4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos
públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos
sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer
desordem psíquica".
Evidentemente,
a briga continua, mas agora no plano da opinião pública e do Legislativo. Além
de nos bombardear com e-mails sobre a "perseguição" a psicólogos
cristãos, os evangélicos tentam no Congresso aprovar um projeto de decreto
legislativo (PDC 234/11) para sustar artigos da resolução do CFP.
Vale
observar que o proponente da matéria, o deputado João Campos (PSDB-GO), também
tem projetos de decreto para derrubar a decisão do Supremo Tribunal Federal que
legalizou as uniões estáveis homossexuais e a que autorizou as marchas da
maconha.
A
iniciativa do parlamentar social-democrata (sim, há ironia no adjetivo) é uma
tremenda de uma bobagem. Da mesma forma que um médico não pode hoje sair por aí
dizendo que cura a doença de Huntington e um físico está impedido de afirmar
que faz o tempo correr para trás, um psicólogo não pode proclamar que possui
terapias efetivas contra o que seu ramo de saber nem ao menos considera uma
doença. Não se pode bater de frente e em público contra os consensos da
disciplina.
Não
existe algo como psicologia cristã, hidrostática católica ou cristalografia
judaica. Idealmente, juízos científicos se sustentam na racionalidade amparada
por evidências (mas a questão é mais complicada, como veremos ao final do
artigo).
É
claro que a ciência, ao contrário das religiões, não trabalha com dogmas. Um
pesquisador que pretenda provar que a homossexualidade é uma doença pode tentar
fazê-la em fóruns apropriados, como congressos e trabalhos científicos, e
sempre apresentando argumentações técnicas, cuja validade e relevância serão
julgadas procedentes ou não por seus pares. Se ele os convencer, muda-se o
paradigma. Caso contrário, ou ele abandona o assunto ou deixa de falar na condição
de psicólogo.
Como
cidadão, acredito eu, todos sempre poderão dizer o que bem entendem --além de
fazer tudo o que não seja ilegal. Padres e pastores vivem afirmando que a
homossexualidade é pecado sem que o céu lhes caia sobre a cabeça. É claro que a
ABGLT protesta e de vez em quando um membro do Ministério Público pode tentar
alguma estrepolia, mas isso é do jogo. Apesar de alguns atritos, a liberdade de
expressão vem sendo relativamente respeitada no Brasil nos últimos anos, como o
prova a decisão do STF sobre a marcha da maconha que o representante do PSDB
quer derrubar.
Vou
um pouco mais longe e, já adentrando em terrenos hermenêuticos menos sólidos,
arrisco afirmar que nem o Código de Ética nem a resolução do CFP impedem um
psicólogo de, em determinadas condições, ajudar um homossexual que busca
abandonar suas práticas eróticas.
Imaginemos
um gay que, por algum motivo, esteja profundamente infeliz com a sua orientação
sexual e deseje tornar-se heterossexual. O dever do profissional que o atende é
tentar convencê-lo de que não há nada de essencialmente errado no fato de ser
gay. Suponhamos, porém, que o paciente não se convença e continue sentindo-se
desajustado. Evidentemente, ele tem o direito de tentar ser feliz buscando
"curar-se". E seu psicólogo não está obrigado a abandonar o caso
porque o paciente não aceita a ciência. Ao contrário, tem o dever ético de
fazer o que estiver a seu alcance para diminuir o sofrimento do sujeito.
O
que a resolução corretamente veta é que o psicólogo coloque na cabeça de seus
pacientes a ideia de que ser gay é uma falha moral que pode e deve ser
revertida. Impede também que ele faça propaganda em que promete terapias
efetivas.
Dito
isto, não acho uma boa estratégia a do movimento gay de vincular a defesa dos
direitos de homossexuais a uma teoria científica. Este me parece, na verdade,
um erro grave.
Para
começar, a ciência está calcada em hipóteses que podem por definição ser
refutadas a qualquer momento. Vamos supor que o fundamento lógico para eu
recusar a discriminação contra gays resida na "evidência científica"
de que a homossexualidade tem componentes genéticos e ambientais, não sendo,
portanto, uma escolha que possa ser modificada. Imagine-se agora que alguém
demonstre de forma insofismável que tais evidências estavam erradas. O que
ocorre neste caso? A discriminação fica legitimada?
Não
é preciso puxar muito pela memória para lembrar que movimentos por direitos
civis e "ciência" (sim, fora dos manuais de epistemologia, ela é uma
atividade humana como qualquer outra que caminha ao sabor de circunstâncias
políticas e constructos sociais) já estiveram em lados diferentes das
trincheiras. Até 1990, a Organização Mundial da Saúde listava a
homossexualidade como uma doença mental. Os psiquiatras americanos faziam o mesmo
até 1977. Não sei se recomendava ou não o exorcismo, mas certamente autorizava
profissionais da saúde mental a tentar a "cura".
O
argumento contra a discriminação de minorias precisa ser moral. É errado
discriminar gays, negros e membros de qualquer seita religiosa porque não
gostaríamos de sofrer tal tratamento se estivéssemos em seu lugar.
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