Há um risco de sermos
enganados quando o debate toma o rumo da convergência.
Por: Renato
Janine Ribeiro
Há um risco de sermos enganados quando o debate
toma o rumo da convergência. Num momento alto da obra de Platão, um sofista
ataca o diálogo socrático, que pareceria justamente a forma mais igualitária de
cooperação intelectual: “Como és autoritário, Sócrates!” Haveria um
autoritarismo embutido na condução delicada, gentil, mas nem por isso menos
perigosa, dos argumentos pelo grande mestre da Filosofia. Daí, nasce toda uma
escola de desconfiança em face dos diálogos. Os desconfiados incluem certamente
Nietzsche, talvez Pascal, com certeza os psicanalistas. Eles não querem seguir
uma argumentação. Esta, com toda a sua aparente limpidez, oculta emboscadas
terríveis. É melhor pensar a linguagem, não como o lugar da cooperação e da
compreensão mútuas, mas como o do engano, proposital ou não, do outro ou de nós
mesmos. O mais óbvio, disse-me uma vez um psicanalista, não é nos entendermos.
É não nos entendermos. É nos entendermos errado. E isso não só em relação ao
outro, mas a gente mesmo. Eu mesmo posso não saber o que estou pensando, o que
estou dizendo.
Daí, uma das práticas mais notáveis da Psicanálise,
que consiste no divã e em tudo o que ele implica. Um psicanalista, quando
recebe você, não está iniciando um diálogo. Se alegar que você tem complexo de
Édipo (ou o que quer que seja), justificando sua afirmação com o que você disse
ou fez, adeus, análise. Ele se colocará no nível do paciente e transformará o
que seria um procedimento ímpar de experiência humana numa mera conversa.
Nenhuma mudança ocorrerá. Agora, se ele fizer silêncio, se se recusar a responder,
a justificar, a esclarecer, ele poderá – notem bem, poderá, porque nada disso
está garantido – fazer com que o paciente descubra, por si mesmo, que se
empenhava em enganar o analista, em enganar a si próprio, em apenas conseguir
justificações para continuar como estava. O divã, dizia eu: ele evita que o
paciente controle o analista, ele impede que entre os dois se promova um
diálogo ou conversa ou conversação ou negociação. Todas essas opções trairiam a
análise. Todas estariam baseadas na crença de que as duas partes estão no mesmo
caminho, na mesma direção. Justamente, não estão. Meu analista pode ter as
melhores intenções do mundo, mas ele é ele e procura seus próprios objetivos –
inclusive, ganhar dinheiro. É à medida que eu descubra quais são os meus
objetivos, qual é minha diferença específica, que poderei encontrar algo que é
mal definido, que ao longo do tempo a Psicanálise nomeia de formas muito
diferentes e que, sobretudo, ela talvez não seja muito apta a proporcionar –
quer se chame cura, tratamento, alta, final, sentir-se melhor, aceitar-se como
é. Para cada um desses nomes, há textos canônicos, inclusive do próprio Freud,
que podem sustentá-lo.
Não é fascinante esse ponto de partida e, digamos,
toda essa trajetória? Partirmos do misunderstanding, do engano quanto ao que
foi dito, é interessante. Manter-se no risco da má compreensão é uma tarefa
difícil. Segui-la sempre, suportar o fato de que sempre estaremos entendendo
mal tudo, inclusive a nós mesmos, exige quase um super-homem nietzschiano.
Essa, provavelmente, a força da Psicanálise.
Mas também o seu risco. Porque, para ir por esse
caminho, o analista não pode dialogar. O que é sua força é também seu perigo.
Quem diz, afinal, que ele tem razão? Quem diz, tudo levado a seu termo, que a
análise adiantou? Ninguém tem segurança disso. E talvez por isso a Psicanálise
dê os resultados mais diversos. Há quem saia dela com um novo vigor, sabendo
assumir tudo o que o destino lhe reserve. E há quem a encerre sem ter ganhado
nada. Mas provavelmente ambos os finais têm a ver com essa negação do diálogo,
que não é fortuita, mas essencial à Psicanálise.
Fonte: site da Revista Filosofia.
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