Freud sempre se preocupou com coisas
simples, característica dos gênios: achar o novo no que todo mundo vê, mas que
não enxerga. Entre suas simplicidades, ele escreveu dois artigos em 1908 que
sempre me chamaram a atenção pelo tema que abordam e que assim eu resumiria:
por que tem tanta gente chata no mundo, aquela que começa a contar um caso e já
vai dando sono, e tem gente interessante, que contando a mesma história nos
desperta e interessa?
Os dois textos são complementares, chamam-se:
A Novela Familiar do Neurótico (Romances Familiares) e O Poeta e o Fantasiar
(Escritores Criativos). Bastam os títulos para termos uma ideia da anteposição
entre o neurótico e o poeta, para o vienense. Freud se pergunta o que diferenciaria
o poeta – no sentido geral daquele que cria e não só o que compõe versos – do
homem comum, genericamente, o neurótico. Seriam os temas que escolheriam para
tratar que marcariam a diferença entre atrativos e desinteressantes? Um só
falaria de coisas importantes e universais e o outro de sua vidinha? A resposta
é não, mesmo porque estamos sempre contando a mesma história, ou melhor,
tentando completar uma história esburacada, a nossa. O que os diferencia é o
tratamento dado ao texto. Um, o neurótico, é invejoso de sua história, ela é só
sua: o interlocutor tem que entendê-la tal qual, nos mínimos detalhes,
arriscando inclusive ter que responder a uma sabatina para provar a boa
atenção. O que ele teme é que vejamos suas fantasias pessoais naquilo que nos
diz. “Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes ao tomar
conhecimento de tais fantasias”, escreve o psicanalista. O escritor criativo,
por sua vez, “quando nos apresenta suas peças, ou nos relata o que julgamos ser
seus próprios devaneios, sentimos um grande prazer, provavelmente originário da
confluência de muitas fontes.” Freud conclui da seguinte maneira sua reflexão
sobre o efeito que um texto interessante nos causa: “A satisfação ...
talvez seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali em
diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou
vergonha.”
Sabido o que diferencia um relato do
outro, fica a pergunta de como consegui-lo. Partindo da questão da
auto-acusação, analisemos. A primeira idéia, a mais banal – e equivocada –
seria dizer que o poeta, sempre no amplo sentido, é um desaforado, um
sem-vergonha. Nada disso. Melhor será notar que o poeta está mais livre do peso
da expectativa do outro sobre ele, que um homem comum. Ele não fica tentando
controlar como o outro vai entender o que ele diz; seria até engraçado imaginar
a cena de um escritor que tentasse ao mesmo tempo escrever e impor como deveria
ser interpretado. O poeta não teme o mal-entendido porque aprendeu que ele não
é um erro, é estrutural da espécie humana, como demonstrou Lacan. E se a
segurança não vem do “o que o outro vai pensar de mim”, de onde ela vem?
Exatamente da certeza constitutiva do mal-entendido que o faz trocar o
julgamento do outro, frente ao qual somos invariavelmente culpados, por uma
responsabilidade singular, que o leva a criar histórias que recobrem
frouxamente o espaço do sem palavra. ´Poeta´ vem do termo ´poiesis´,
justamente: criar, inventar, fazer. Por uma história de um neurótico, ninguém
passa, só assiste; por uma história de poeta, muitas outras histórias passam.
Com sua posição de responsabilidade ética, e por sua estética aberta, generosa,
o poeta faz com que nós também nos livremos das auto-acusações acachapantes e
nos arrisquemos a inventar soluções mais singulares a nossos desejos.
Deixo para comentar futuramente um
terceiro tipo de texto, o psicótico. Seria, falando brevemente, aquele escrito
sem pé nem cabeça, do qual só se depreende ruído de palavras e nenhum efeito de
sentido. Adianto que não se deve confundir texto psicótico, com o quadro
psicopatológico. Escrito psicótico não é aquele escrito por um psicótico.
E, para finalizar, uma lembrança.
Com facilidade podemos extrapolar o que comentamos sobre os textos, para os
relatos das pessoas em geral. Quem diria que, além de nos explicar, Freud deu
dicas para um mundo menos chato?!
JORGE FORBES
(Artigo publicado em “Psique –
Ciência e Vida”, n° 58, Outubro de 2010).
FONTE: site do autor.
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