Lembro de um evento psicanalítico ocorrido em
Porto Alegre, anos atrás, sobre “Masculinidade”. De repente, apareceu um
engenheiro por lá, adentrando o mundo dos psis. Ele queria entender, como
homem, a sua falta de lugar no mundo. Não sei se conseguiu, mas sua presença
foi um belo movimento para fora do território conhecido, onde as contas já não
fechavam, rumo ao insondável. Ainda tateando sobre esse tema tão fascinante,
penso que a melhor notícia para todos nós é a confusão sobre o lugar do homem.
Sobre isso, Laerte Coutinho, entrevistado no Roda
Viva(TV Cultura) de
20/2, fez uma grande observação: os homens nunca fizeram a revolução masculina.
Para começar, quem é
Laerte? Se você não ouviu falar dele, está perdendo uma revolução encarnada
numa pessoa. Antes, porém, é importante sublinhar que ele talvez seja o maior
cartunista brasileiro. Para mim, é um gênio. E não é uma opinião solitária. Não
aquele gênio banalizado dos manuais 171 vendidos nas livrarias, mas gênio
mesmo, daqueles que nasce um a cada muitos e muitos e muitos anos. Só para
recordar, são dele histórias em quadrinhos como “Piratas do Tietê” e
personagens como Overman, Deus e Fagundes, o Puxa-Saco. A minha vida, pelo
menos, seria mais pobre se eu não pudesse ler todo dia as tirinhas do Laerte
publicadas na Folha de S. Paulo.
Em 2010, Laerte passou a
se vestir de mulher – publicamente. Tipo ir à padaria de saia e meia-calça.
Laerte se tornou ora ele, ora ela, ele/ela no mesmo corpo e na mesma cabeça. E,
desde então, não para de dar entrevistas nas quais parte dos entrevistadores
tenta, com certo grau de ansiedade, encaixá-lo/a em alguma definição. A
novidade, no sentido libertador do novo, mesmo, é que Laerte se coloca para
além das definições. Nem acho que cross-dresser (homem que gosta de se vestir
de mulher – ou vice-versa – sem necessariamente ser gay) serve para
enquadrá-lo/a. Acho que todos nós ganharíamos – “héteros, gays, bissexuais,
transgêneros, travestis, transexuais, assexuais etc etc” – se abolíssemos a
necessidade de caber em algum verbete. Seres humanos não são como aqueles jogos
de montar para crianças pequenas, em que é preciso encaixar o retângulo no
retângulo, o triângulo no triângulo e assim por diante. A única definição que
vale a pena é justamente a indefinição. Sou aquele/a que é sem se dizer. Ou sou
aquele/a que é sem precisar dizer o que é.
E essa é a novidade de
Laerte, que é homem, é mulher, é masculino, é feminino e é também alguma coisa
além ou aquém disso. Que se veste de mulher, mas fala e caminha como um homem.
Que na infância gostava de costura e de futebol. Que vai jantar de saia e unhas
vermelhas com uma namorada, mas pode também ter um namorado. Que enfia um
pretinho básico sem se tornar efeminado. Que começa a entrevista de pernas
cruzadas e, lá pelas tantas, se empolga e abre as pernas sem se importar que no
meio delas more um pinto. Laerte é novo/a porque nos escapa. É um homem novo,
mas também pode ser uma mulher nova.
Em janeiro, Laerte foi
protagonista de uma polêmica ao ser repelido/a no banheiro feminino de uma
pizzaria paulistana por uma cliente que se sentiu incomodada com sua ambígua
figura. Surgiram então ideias esdrúxulas, como a de fazer um terceiro banheiro
para os que não se enquadrariam nas definições tradicionais. Se o terceiro
banheiro vingar, vou começar a frequentar os três, porque começo a achar uma
afronta a exigência de que eu tenha de me definir para fazer xixi. Por agora,
acho tão ultrapassado haver banheiros separados por qualquer coisa, que nem
pretendo me estender nesse assunto. Era apenas para contar um pouco quem é
Laerte para aqueles que ainda o/a estão perdendo. E desembarcar no tema que me
interessa mais.
A certa altura da
entrevista, ele/ela fez a seguinte observação: “Existiu a tal da revolução
feminina, que é um dos marcos da humanidade. O que não aconteceu é a revolução
masculina”. Laerte referia-se ao fato de que as mulheres já fizeram mil e uma
rebeliões e continuam se batendo por aí. Marlene Dietrich, por exemplo, causou
comoção por usar calças, mas isso em 1920! Quase um século depois, Laerte nos
empapa de assombro por ir ao supermercado de saia. Isso diz alguma coisa, não?
Eu acho que não é nada
fácil ser homem hoje em dia porque não se sabe o que seja isso. Mas, se essa
dificuldade fez o engenheiro do primeiro parágrafo ousar se sentar na plateia
de um seminário de psicanalistas para se entender, esta é também a melhor
notícia possível para um homem. A princípio, os homens nunca precisaram fazer
nenhuma revolução para conquistar direitos porque supostamente tinham todos
eles garantidos desde sempre. Uma posição cômoda, mas apenas na aparência.
Podiam fazer o que bem entendiam. Desde que fossem “homens”. E aí é que morava
– e ainda mora, em muitos casos – a prisão. Podiam tudo, desde que fossem uma
coisa só.
Ser forte e competitivo;
sustentar a casa e a família; ter todas as respostas, muitas certezas e nenhuma
dúvida; gostar de futebol e de vale-tudo; dar tapas nas costas do colega; falar
bastante de mulher, mas jamais de intimidade; nunca demonstrar sensibilidades;
dar mesada para a esposa; fazer o imposto de renda; resolver o problema do
encanamento... Que peso incomensurável. Era isso ser homem por muitos séculos,
sem falar nas guerras. E era preciso estar satisfeito com isso porque, afinal,
você estava no topo da cadeia alimentar da espécie, ia reclamar do quê?
Acontece que, hoje,
nenhuma das características citadas define o que é ser um homem. Assim como
nenhuma característica – tradicional ou não – define o que é ser uma mulher. Do
mesmo modo que a anatomia também não é mais capaz de definir o que é ser um
homem e o que é ser uma mulher. E nem a escolha da carreira ou a posição na
sociedade. Se há algo que define o que é ser um homem e o que é ser uma mulher,
este algo está fora das palavras. E isso é o que torna Laerte fascinante: ele
se apropriou da confusão e tornou-se a indefinição.
Graças às mulheres, e
também aos homens que ousaram sair do armário (e aqui não me refiro somente à
orientação sexual), os homens começam a autorizar-se a vagar sem rumo por aí,
cada um do seu modo. Até porque não há caminhos já trilhados para seguir, já
que não é mais possível apenas refazer os passos do pai ou do avô – nem é
suficiente se contrapor totalmente a eles e segui-los pelo avesso. O que há são
vidas a serem inventadas.
É claro que muitos homens
se arrastam pelas ruas lamentando a perda de lugar. Sem saber o que fazer da
existência nem de si, alguns arrotam alto ou espancam gays na tentativa pífia
de mostrar que ainda sabem o que são. Perder o lugar e confundir-se não é
fácil, não é mesmo. Mas é um espaço inédito de liberdade. É possível arrancar o
terno de chumbo e descobrir que pele existe embaixo dele. E faz parte estar
ainda em carne viva.
Acho que os homens alcançaram, finalmente, um começo de emancipação. E espero que as mulheres tenham a grandeza de estar à altura desses novos homens que começam a surgir. E enfiem a saudade do macho provedor na lata de material reciclável. Porque há muitas mulheres que ainda suspiram de nostalgia do macho provedor, mesmo se achando modernas e liberadas. Pode até ser que esse seja um bom arranjo para alguém, mas já não há garantias. Faz parte da jornada amorosa acolher a confusão dos homens que amamos porque tudo deve ser mesmo muito novo e muito assustador para eles.
Uma amiga contava, dias
atrás, que seu marido passou uns tempos arrebatado pela agente do FBI da série
americana “Fringe” (ótima, aliás!). Ocorre que Olivia Dunham, a dita agente, é
uma loira linda, inteligente e destemida. E ocorre que o marido da minha amiga
não estava encantado no sentido erótico convencional: ele não queria transar
com Olivia Dunham, mas “ser” a agente do FBI.
Os leitores com menos
imaginação e ainda presos ao velho mundo pensaram nesse instante: o cara é gay.
Não, ele não é. Ele pode preferir transar com mulheres – e, no caso, faz minha
amiga muito feliz – e se identificar com a agente Olivia Dunham como outros se
identificam com os personagens sempre “muito machos” de Sylvester Stallone ou
até com o Neymar. Há espaço para tudo. E para todos. Se podemos ter fantasias
infinitas, para que se limitar, seja nós o que formos? Minha amiga, que é
sábia, achou muito divertido. E, assim, teve a experiência de namorar Olívia
Dunham algumas vezes. Ainda não é para qualquer um/a, mas que pena que não é.
Lembram da frase mítica?
“Uma terra onde os homens são homens, e as mulheres são mulheres”. Ufa, o
faroeste se foi e ninguém sabe bem o que é ser homem nem o que é ser mulher nos
dias de hoje. E não, os homens também não são de Vênus, nem as mulheres de
Marte. Ou será que era o contrário?
Se estivermos à altura do
nosso tempo, descobriremos que há infinitas possibilidades – e não uma só – de
sermos seja lá o que for. Como alguém disse no twitter: “Na vida, não
limite-se. Laerte-se!”.
Eliane Brum
FONTE: Revista Época
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