Nos primeiros anos da Rússia soviética,
parte dos revolucionários entendeu que chegara a hora de defender a cultura
popular contra o elitismo predominante nos círculos endinheirados. Com a nova
situação política, a produção vinda diretamente do povo poderia afirmar-se em
seu valor de face, sem precisar passar pelos julgamentos de valor de uma
pequena elite que parecia sonhar com os salões culturais dos grandes
centros europeus. Imbuídos da certeza de que a hora do povo chegara,
esses representantes do gosto popular defenderam a riqueza da expressão em suas
formas naturais, sem os delírios formalistas que apenas demonstravam um
pedantismo acadêmico sem vida. Pois, tal como na política, havia uma luta de
classes na cultura e, tal como na política, era hora de o povo fazer ouvir sua
revolução.
Essa
história vale ao menos para mostrar quão inconsequente pode ser a transposição
imediata de categorias políticas para o campo cultural. Os defensores da
cultura popular na Rússia soviética foram aqueles que deram ao mundo o realismo
socialista com sua miséria estética. Já do lado dos pretensos formalistas
estavam alguns dos maiores artistas que o século XX conheceu, como Malevich,
Kandinski e Maiakovski e Osip Brik, entre tantos outros. Por trás do discurso
da luta de classe na cultura havia a tentativa de escamotear o caráter
profundamente reacionário e conservador de várias produções da dita
espontaneidade da “cultura popular”.
Esse
exemplo ocorrido há quase cem anos vale ainda hoje. Duas
semanas atrás,CartaCapital apresentou uma capa na qual levantava
o problema do vazio da cultura brasileira na última década. Claro que não se
tratava de uma avaliação extensiva a respeito da qualidade das produções
artísticas. O problema retratado era a impossibilidade de se construirem
sistemas de conexão entre obras, o que permitiria a artistas partilhar uma
mesma tradição de questões. Será sempre possível encontrar alguns grandes
artistas isolados em qualquer momento da história brasileira. É fato, porém,
que a cultura brasileira há tempos não consegue criar continuidades, sequências
de trabalhos que fazem a linguagem artística avançar e que fornecem aos novos
artistas um horizonte de exploração.
Certos
críticos viram, no simples enunciado da questão, a prova de que mais uma vez figuras
imbuídas de profundo “elitismo cultural” desconheciam a riqueza subterrânea da
cultura popular brasileira. Esses leem todo debate cultural sob as lentes de
uma luta de classe simplória. Para eles, por exemplo, o simples uso do conceito
de “indústria cultural” para falar sobre certas produções de música de massa,
como o funk do DJ Marlboro, já é prova do academicismo que não sabe o que se
passa na periferia.
Melhor
seria, porém,
se certa desconfiança fosse injetada no uso dogmático de dicotomias como cultura
de elite/cultura popular. Pois, provavelmente, “cultura popular” seja um
sintagma que não faz sentido algum. Algo que tem valor apenas estratégico.
Logo, a depender do contexto, ele designa fenômenos completamente diferentes.
“Cultura
popular”pode se referir, por exemplo, a tudo o que é produzido por certos
sujeitos que vivem em lugares onde acreditamos que o povo está. Como se a
geografia fosse elevada à condição maior de valoração da produção estética.
Alguém deveria lembrar que só faz arte quem sabe tirar os pés do chão e parar
de olhar o mapa da cidade.
“Cultura popular” pode também nomear
certo folclore com aspirações de fundação de nacionalidades, como se a própria
produção do “folclore” não fosse uma construção recente e interessada, com a
idade do advento dos Estados-Nação. Por fim, ela pode servir para a indústria
cultural vender seus produtos com label de
autenticidade, um pouco como esses xampus de plantas amazônicas produzidos em
escala industrial pela Natura.
Um
debate liberado da “defesa da cultura popular” seria a primeira condição para
colocar de pé um processo de circulação entre formas estéticas e tradições que
hoje se encontra emperrado. O problema não é a universidade que não ouve
hip-hop (o que está longe de ser verdade), mas a periferia que não tem o
direito de conhecer John Cage. Um debate sem a carta forçada da “cultura
popular” seria também mais honesto, pois não resvalaria no expediente fácil de
criticar toda possibilidade de julgamento de valor estético com anátemas
vazios. Ele poderia se concentrar na estrutura dos julgamentos de valor na
situação histórica atual.
Texto do Prof. Vlademir Safatle
Fonte: Revista CartaCapital
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