Dilema Ético
Dilemas e cartilhas
Contardo Calligaris
Na coluna da semana retrasada, "Para que serve a
tortura?" (www.migre.me/dwB4Y), propus um dilema moral. Uma criança
sequestrada está num lugar onde ela tem ar para pouco tempo. O sequestrador não
diz onde está a criança. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?
Entre os muitos leitores que me escreveram, menos de 10%
entenderam que eu estaria promovendo o uso da tortura; mesmo esses, em sua
maioria, usaram o dilema para pensar (com seus botões) no que eles fariam.
Na semana passada, na Folha, Vladimir Safatle e Marcelo Coelho
entenderam que meu dilema favorecia a tortura. No domingo, Hélio Schwartsman
tentou colocar alguma ordem nessa cacofonia.
Pena que nem Safatle nem Coelho fizeram o único exercício que um
dilema moral pede: o de pensar nos termos que ele propõe. Muito pior: ambos
declararam que não gostam de dilemas. Caramba!
Tentando não ser chato para quem não seguiu a controvérsia, aqui
vai:
1) Dizer que você é contra a tortura porque ela não funciona é
como dizer que a gente não deve assaltar o vizinho porque ele não tem dinheiro
no bolso.
2) Duvidar que a tortura funcione é um pouco covarde para com os
milhares de sujeitos, mundo afora, que foram forçados a entregar um nome ou a
assinar uma confissão e carregam, por isso, cicatrizes mais profundas das que
ficaram em seu corpo - sobre isso, leia-se "Exílio e Tortura", de
Marcelo e Maren Viñar (ed. Escuta).
3) Para nos induzir a pensar, um dilema moral deve nos empurrar
para uma posição diferente da de nossos princípios. Exemplo: o primeiro dilema
de Kohlberg é sobre alguém que precisa de remédios para o filho e só pode
consegui-los assaltando a farmácia. Esse dilema vale apenas para quem considere
que assaltar é errado.
4) Nota: Lawrence Kohlberg é o piagetiano que pesquisou a formação
e as estruturas do pensamento moral. Ele inventou e experimentou uma educação
moral pela prática dos dilemas (que eu saiba, é o único projeto de educação
moral que não se pareça com uma doutrinação). Sugestão: antes de falar de
dilemas, ler as obras principais de Lawrence Kohlberg - no mínimo, os
"Essays on Moral Development".
5) Um dilema nunca é um modelo para situações parecidas, pois a
vida real é sempre mais complexa. Mas o dilema é o formato padrão da
experiência moral moderna, na qual o que é justo é decidido não por
conformidade a uma regra, mas por nós, incertamente.
6) A infância é a idade tentada pelas cartilhas e pelos
catequismos, até porque é a época em que os representantes das certezas mais
tentam arregimentar as crianças - nos Balilla, na Hitler-Jugend, na Unión de
Jóvenes Comunistas etc. Não tem nada mais pueril do que uma certeza moral. A
maturidade é (ou deveria ser) a época da incerteza e dos dilemas.
7) O dilema estimula a moralidade porque nos encoraja a não
escolher por respeito a supostos princípios ou por medo de uma punição. Para
Kohlberg (e para mim), seja qual for a escolha, escolher pelo foro íntimo é
sempre mais moral do que escolher por obediência a uma cartilha.
8) A modernidade se pergunta quem é o homúnculo que pilota nosso
foro íntimo. Alguns, de Kant a John Rawls, apostam num homúnculo formal, parecido em todos nós, de maneira que
seja garantida a existência de uma cartilha moral universal.
Outros (com os quais me dou melhor) acham que quem escolhe são os
indivíduos concretos, em toda sua miséria. Há, aliás, uma certa grandeza humana
na desproporção entre o caráter "indigno" do que nos motiva e o
caráter eventualmente grandioso e generoso de nossos atos.
Explico: um sujeito concreto não tem os direitos humanos cravados
no peito pelo dedo divino; se ele for contra a tortura, será porque seu pai foi
torturado ou porque seu pai foi um torturador, porque seu colega do primário
arrancava as asas das moscas ou porque ele mesmo fazia isso, porque os pais lhe
disseram que não é para torturar, ou porque ele foi torturado pelos pais. Etc.
Etc.
10) Safatle chamou sua coluna "Questão de Método". Li
"Questões de Método", de Sartre, 47 anos atrás. E ainda me lembro da
lição: o recurso aos princípios esconde as particularidades concretas.
11) Em qualquer momento histórico, entre os homens de bem, que
resistem ao totalitarismo do momento, pode haver homens atormentados por
dilemas e também portadores de cartilhas opostas às dos opressores.
Mas, em qualquer momento histórico, entre os opressores e os
torturadores, só há portadores de cartilhas.
FONTE: Jornal Folha de São Paulo
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